A série DNArquibancada apresenta 12 matérias, uma para cada equipe que disputa o Gauchão 2024, e a relação visceral de pessoas com os clubes do coração. Nelas, aparecerão personagens do passado e do presente. Gente muito conhecida e outros que são anônimos para muitos, mas que resumem em sua personalidade a identificação máxima com o seu time de coração. A 10ª reportagem conta a história de Vicente Rao, torcedor do Inter responsável por criar a primeira torcida organizada do Rio Grande do Sul.
Quantas pessoas podem existir em um único corpo? Jogador, torcedor fanático, dirigente, Papai Noel, Rei Momo, líder sindical. Podem parecer vários, mas todos são Vicente Rao, um dos grandes ícones entre os colorados. A multiplicidade marca a vida deste homem que se considerava o torcedor número 1 e o jogador número 12 do Inter.
Existem aquelas coincidências da vida das quais nem Rao escapou. Assim como o Inter, nasceu em um 4 de abril. Veio ao mundo precisos 365 dias antes de o clube que marcaria a sua vida ser fundado, mas os dois levariam alguns anos e uma guerra para se aproximarem.
Nascido em 1908 e filho de italianos, ele foi ainda criança, em 1914, para Itália. A família viveu até o fim da Primeira Guerra Mundial na cidade de Polistena, na região da Calábria, no peito do pé da bota formado pelo mapa do país. A partir de sua volta à cidade, os laços com o Inter são atados.
Sua associação ao clube se deu em 1926. Esforçado, fazia parte do segundo quadro colorado, o que seria hoje uma espécie de Inter B. Em abril daquele ano, estreou diante do Americano. Então, o acaso apareceu. Dono absoluto de uma posição no meio-campo da equipe principal, Lampadinha se lesionou. Na semana seguinte, Rao fez sua primeira e única partida pela equipe principal colorada. Com direito a gol no 4 a 1 sobre o São José. Ele ficou até 1934 no segundo quadro.
Se com a bola nos pés teve contribuição escassa, nas arquibancadas fez mais do que a diferença, fez uma revolução. Em 1940, foi convidado a organizar o Departamento de Propaganda e Cooperação, o que é considerado a primeira torcida organizada do Rio Grande do Sul. Trouxe ao futebol elementos como faixas, cartazes e o espocar dos fogos de artifício na hora que os 11 do Colorado entravam em campo.
— Na época, era chamado de torcida sincronizada. A ideia do Rao não era impor uma forma de torcer. Ele aproveitou a espontaneidade (da torcida) e deu uma dinamizada nisso — conta o historiador Raul Pons.
Mais adiante na linha do tempo, organizou as Escolas de Futebol do Internacional, que seria a precursora das categorias de base coloradas. Nessa empreitada, trabalhou ao lado de Abílio dos Reis, um dos mestres na arte de formar jogadores. Apesar de toda a dedicação ao Inter, nunca foi conselheiro do clube.
Sua proeminência se expandia para outras áreas. Tinha grande dedicação ao Carnaval e à questão sindical. Entre 1951 até a sua morte na década de 1970 (não há certeza do ano de sua morte) foi o Rei Momo de Porto Alegre. Mas não era tudo. Encontrou tempo para ser o Papai Noel oficial de Porto Alegre a partir de 1957.
— Ele era distinto de qualquer outra figura. Conheci muitos Rei Momos no país inteiro, nenhum com esta pujança, esta personalidade. O Vicente Rao é a personificação dessa ideia de alegria do povo e de participação em um clube de futebol com a proposta de agitar a arquibancada. Fazer com que o amor que se tem com os 11 que estão em campo tenha razão de ser — comenta o jornalista Cláudio Brito.
O bom humor era a sua marca na folia. Em 1932, participou de uma banda que criava músicas humorísticas. Naquele ano, Rao ganhou o prêmio humorístico do Carnaval de Porto Alegre. Na época, ainda atuava no segundo quadro do Inter.
Bancário, Rao encontrou tempo para se dedicar à categoria. Foi líder sindical até os anos 1970.
— Ele foi muito dedicado em todas as áreas em que se envolvia. Em 1962, foi eleito presidente da Federação dos Bancários. Logo depois do golpe, foi preso por essa passagem na vida sindical. Responde processo até 1970, quando encerra a carreira sindical — conta Pons.
Vicente Rao foi de tudo um pouco, mas acima de tudo, foi colorado.