Técnico do Grêmio, Roger Machado é um dos poucos treinadores negros na elite do futebol brasileiro. Perguntado sobre o racismo no país, declarou que pessoas se sentem autorizadas a se manifestar de forma preconceituosa a partir de posturas e "pontos de vista do líder da nação". Sem citar o nome do presidente Jair Bolsonaro (PL), o treinador acredita que exista "um processo relacionado com uma cultura de ódio" que teria ganho força "nos últimos quatro anos no Brasil".
Com passagens por Palmeiras, Fluminense e Atlético-MG, Roger conta que sofre com o racismo estrutural de um país que aclama jogadores negros, mas coloca obstáculos para os que querem ser treinadores.
No jogo contra Operário-PR, na quarta (27), Roger foi alvo de ações hostis da torcida da equipe paranaense. Segundo o técnico, os torcedores adversários ofenderam sua família.
— Em 30 anos de futebol, adaptado a esse ambiente como visitante, é a primeira vez que eu vejo em coro minha família ser xingada. Hoje eu me senti extremamente ofendido aqui em Ponta Grossa. Em coro, gritaram o nome da minha esposa e das minhas filhas com adjetivos pejorativos — revelou Roger após o jogo.
Confira a entrevista da agência de notícias francesa AFP com uma das vozes mais ativas do esporte brasileiro contra a discriminação racial.
Por que há tão poucos treinadores negros no Brasileirão?
O futebol revela o que somos como sociedade. A representatividade da população negra em outras áreas é muito parecida com a do futebol. Quando negros e brancos decidem ascender na pirâmide social, os filtros começam a aparecer. São os filtros da ideologia que criou o racismo e que atribui ao negro uma condição de menor inteligência, menor capacidade de liderança e gestão, justamente as competências de um treinador de futebol.
Quais atos racistas você enfrentou até se tornar treinador?
O racismo velado, à brasileira, construiu falso mito de uma "democracia racial" na qual, em teoria, não havia racismo nem preconceitos no Brasil. A discriminação sistemática, estrutural, é outra, mais complexa. Nos meus primeiros trabalhos como treinador, muitas vezes, quando era demitido, questionavam a minha capacidade de gerir grupos, sendo que essa era uma das grandes capacidades que eu sempre tive como jogador, como liderança, como capitão.
ONGs alertam para o crescimento de atos racistas nos estádios brasileiros. Você tem percebido isso?
Aumentam da mesma forma que os atos discriminatórios na sociedade. (...) Os que acreditam estar perdendo parte de seus privilégios nessa rede que o racismo construiu durante 500 anos reagem de forma mais agressiva. É um processo relacionado com uma cultura de ódio que vivemos com muito mais força nos últimos quatro anos no Brasil. Mas não é uma situação regional, é global.
Bolsonaro é responsável?
Os indivíduos (racistas) que estavam escondidos (porque a sociedade os reprimia) se sentem autorizados a se manifestar segundo as posturas e pontos de vista do líder da nação, (porque estes) são convergentes. Temos que resistir, porque sua intenção é que retrocedamos, e isso não podemos permitir.
Atletas e treinadores deveriam se posicionar mais fortemente?
Como atletas, somos treinados para não sairmos do campo (...) Há muitas formas diferentes de se manifestar. A questão é que a maioria de nós, lamentavelmente, tem nível de escolaridade mais baixo porque o país não privilegiou nossa educação plena. Isso também impacta na nossa consciência (...) em nossa construção ideológica para debater esses assuntos.
É possível eliminar o racismo do futebol?
Imediatamente, não. Mas é possível se começarmos a discutir o assunto abertamente, sendo conscientes de que haverá maiores atos de discriminação por um movimento de resistência. Haverá um grupo que não vai mudar porque acredita ser de uma raça superior (...) Mas isso já foi discutido para outros assuntos, como quando a mulher decidiu ocupar novos espaços na sociedade. O preconceito foi muito forte. No entanto, houve coragem para debater o tema. O que não podemos é ficar escondidos atrás do mito da "democracia racial" no Brasil.