Devidamente trajado de azul e branco, João Miguel da Costa expressa sua paixão pelo Aimoré. A casa onde mora, em São Leopoldo, não fica longe da sede do clube. Porém, o trajeto de carro, que duraria pouco mais de cinco minutos, fica mais extenso porque, no caminho, ele ainda passa para recolher o filho e a esposa. Pelo menos esse é o itinerário em dias de semana, quando o fotógrafo de 53 anos, que trabalha na própria residência, encerra o expediente mais cedo para levar a família ao Estádio Cristo Rei.
— Uma vez me perguntaram por que eu torcia pelo Aimoré. Respondi: "Torcer para time grande é barbada!" — dispara ele.
É com este espírito que o homem voltará ao estádio neste domingo (9), quando sua equipe terá o Grêmio, de Renato Portaluppi, como adversário pela quinta rodada do Gauchão. Aliás, foi em um confronto desta magnitude que ele percebeu o amor pelo Índio Capilé.
— Em 1984, meu padrinho, que era colorado fanático, me levou para assistir a um jogo entre Aimoré e Inter no Cristo Rei. Mas, quando sentamos na arquibancada, eu vi o Aimoré em cima, perdendo gol, e comecei a xingar os jogadores do Inter. Ele levantou e me perguntou: "Tu está torcendo contra o Inter?". Eu disse que sim e ele retrucou: "Então, tu não vai voltar comigo para a casa". Fiquei empenhado lá e tive que voltar a pé, porque ele não me levou de volta. Ali eu vi que não tinha jeito: eu seria torcedor do Aimoré pelo resto da vida — conta.
O batismo deu certo. Dali em diante, o então adolescente cresceu frequentando o lado dos mandantes na arquibancada do Cristo Rei, e passou a influenciar todos a seu redor para torcerem juntos pelo clube da cidade. Porém, a tarefa é árdua. A proximidade com Porto Alegre (35 quilômetros de distância), faz com que o time fique espremido entre os gigantes da Capital. Dos pouco mais de 200 mil habitantes do município, apenas 623 são sócios do Aimoré (171 estão adimplentes).
— Infelizmente, São Leopoldo não dá o devido apoio ao clube, que sofre muito com isso. Tem meia dúzia de sócios, e alguns só se associam para não pagar ingressos. Conheço vários aqui que reclamam dos valores na bilheteria. Mas, se tiverem que ir ver Inter ou Grêmio contra um time do interior de São Paulo, pagam estacionamento, ingresso, vão e nem reclamam. Isso chateia a gente — comenta.
Uma das primeiras pessoas influenciadas a seguir o Índio Capilé foi a namorada, que viria a se tornar sua esposa, Tina Soares da Costa. Natural de Rosário do Sul, ela logo foi convertida de colorada simpatizante à fanática aimoresista.
As pessoas pensam que mulher não entende de futebol, mas eu estou vendo o individualismo de alguns jogadores e acabo xingando.
TINA DA COSTA
comerciária
— Lá em Rosário, o pessoal torce pela dupla Gre-Nal. Minha paixão pelo Aimoré veio através do João. Começamos a ir juntos aos jogos e o clube uniu nossa família — relata a comerciária de 47 anos.
Mesmo não sendo do Vale do Sinos, Tina vive no município há três décadas. Ou seja, tempo de sobra para se tornar tão ou mais apaixonada pelo clube do que o marido. Em dia de jogos, ela se destaca entre os torcedores na arquibancada. Não apenas por usar a camisa rosa, confeccionada pela direção para o público feminino, mas pelos ânimos exaltados enquanto a bola rola no gramado.
—Às vezes, ele (João) me pede calma, mas eu me indigno, xingo o juiz. Algumas injustiças dão raiva. As pessoas pensam que mulher não entende de futebol, mas eu estou vendo o individualismo de alguns jogadores, que o cara pode tocar a bola para o outro e não toca, e eu acabo xingando — se diverte ela.
Diante de tamanho entusiasmo, seria natural que o único filho do casal acabasse igualmente atingido pela flecha do Índio Capilé. Mas demorou para que Guilherme Soares da Costa se entregasse de corpo e alma ao clube.
— A minha paixão começou lá por 2008, quando meu pai me levou pela primeira vez ao Cristo Rei. Até então, eu só ouvia falar do time, porque eu nasci em 1994 e o clube fechou as portas em 1997. Então, eu era muito pequeno. Mas agora que reabriu, sempre que dá, a gente está lá — revela o auxiliar de eletricista, que na década de 1990 torcia para o Grêmio.
O reflexo da década em que o clube encerrou temporariamente suas atividades profissionais se dá na arquibancada. O próprio Guilherme, por exemplo, é um dos poucos torcedores que se aproximam dos 30 anos.
— São poucos os jovens dentro do estádio. Tem uma leva de pessoas da terceira idade, de cinquenta anos para cima, e outros muito jovens. E aí ficou um vão no tempo, esse buraco na geração — analisa Guilherme.
Elite do futebol
Foi em um confronto contra o mesmo Grêmio, adversário deste fim de semana, que Tina sentiu pulsar o coração mais forte. As duas equipes se enfrentavam pela Copa Metropolitana de 2013. Atletas da equipe sub-20 representavam o Tricolor. A vitória do Aimoré veio nos acréscimos, com gol de cabeça do goleiro Rafael Dal Ri.
— O time estava perdendo, empatou o jogo e o nosso goleiro estava com cinco pontos na cabeça. Ele foi para a área do Grêmio e, aos 47 ou 48 minutos do segundo tempo, tascou um gol. Aquilo ali, para mim, foi o máximo. Ainda mais contra a dupla Gre-Nal, né? O Aimoré virou o jogo e nós saímos em estado de graça — recorda a mulher.
Essa foi apenas uma das vezes em que a família viveu uma grande celebração no Cristo Rei. Também em 2013, os três foram ao estádio para se emocionar com o retorno à elite do futebol gaúcho.
nDepois de vencer o jogo de ida contra o Riograndense, em Santa Maria, por 3 a 2, o Aimoré precisava apenas de um empate para sacramentar o acesso. Porém, na noite fria de 21 de julho, em casa, saiu atrás no placar. A tensão persistiu até os 34 minutos do segundo tempo, quando Luanderson decretou o 1 a 1. O clube, que não disputava a Série A do Gauchão desde 1994, voltaria a figurar entre os melhores do Estado outra vez.
Foi um jogo que me marcou muito, porque conseguimos o acesso depois de 19 anos.
GUILHERME DA COSTA
auxiliar de eletricista
— Eu não contei nem para ele, mas foi a primeira vez que vi meu pai chorar por causa de futebol — revela Guilherme — Foi um jogo que me marcou muito, porque conseguimos o acesso depois de 19 anos e era a primeira vez que eu iria ver meu time na primeira divisão — completa.
Até hoje, o filho guarda uma foto daquela partida no celular. Ao lado do pai, segurando a bandeira do Aimoré, os dois escancaram um sorriso que vai de orelha a orelha.
Com tantas histórias no estádio, é até difícil escolher uma que seja unanimidade entre todos eles. Cada dia de jogo é uma experiência nova a ser vivida com intensidade.
— Um time do Interior é praticamente uma família. Tu chega lá e conhece todo mundo. Aonde tu vai chegando, vai cumprimentando, vai brincando com alguém. E a gente gosta dessa resenha de ir antes para os jogos. Nos fins de semana, chegamos até uma hora e meia antes. Comemos um pastel, tomamos uma cerveja e, depois, é só festa — resume João Miguel.
Rivalidade com o "Noia"
Sem nenhum outro clube profissional em São Leopoldo, o Aimoré precisou buscar um rival na cidade vizinha. Pouco mais de oito quilômetros (ou 10 minutos de viagem pela BR-116) separam o Cristo Rei do Estádio do Vale, casa do Novo Hamburgo. É contra o "Noia", como é apelidado o clube, que os aimoresistas alimentam uma disputa histórica que, por vezes, beira o ódio.
— É uma rivalidade até maior do que a de Grêmio e Inter. Bah! Só dá briga. Antes não tinha tanta violência. Eu cheguei a ir a alguns jogos no antigo estádio deles, no Santa Rosa. Era bacana, mas agora não dá — recorda João Miguel.
Dentre as tantas confusões recentes protagonizadas entre membros de torcidas organizadas das duas equipes, uma acabou em morte. Na noite de 1º de fevereiro de 2015, o novo-hamburguense Maicon Douglas de Lima, de 16 anos, foi assassinado a tiros na Estação Santo Afonso, do Trensurb. Dias mais tarde, um policial militar admitiu ter disparado a arma por ter se sentido acuado em meio ao tumulto e foi afastado da corporação.
Um time do Interior é praticamente uma família. Tu chega lá e conhece todo mundo,
JOÃO MIGUEL DA COSTA
fotógrafo
Menos mal que nem todas as histórias são de guerra, há também casos de amor. E um deles se passa na própria casa de João Miguel. Há sete meses, o fotógrafo viu a família ganhar mais um componente: a nora Carin da Costa, de Novo Hamburgo.
— Ela não gosta muito de futebol. Simpatiza com o Noia por causa do pai dela, que já é falecido — minimiza o filho Guilherme.
Mesmo que não tenha se rendido ao Aimoré, Carin já deixou a rivalidade de lado para dar demonstrações de amor. No último Natal, por exemplo, mandou fazer, de presente para o marido, uma bandeira do clube são-leopoldense com os dizeres "Contigo ninguém acaba". Porém, ainda não frequenta os jogos do clube.
— Ela acha uma loucura. Esses dias a gente foi ao cinema, mas ela ficou braba porque eu ficava no celular, olhando como estava o jogo do Aimoré — relata Guilherme.
Recentemente, uma das vitórias da família foi levar o sobrinho de Carin, o pequeno Caio, 12 anos, ao Cristo Rei. João Miguel chega a dizer que "ele está virando Aimoré".
— O pai dele é de boa. Torce pelo Noia, mas é mais gremista mesmo — conclui Guilherme.
Por fim, a família dá demonstrações de que tem as portas abertas para recepcionar qualquer um que queira se converter em um torcedor aimoresista. Desde que não seja vira-casaca.
— Um amigo meu me mandou uma mensagem pedindo ingresso para o jogo do Aimoré, e perguntando se era barato. Respondi que era barato para quem era sócio e ainda disse: "Para quê tu quer ingresso se esses dias eu te vi com uma camisa do Noia?". Ele não respondeu mais nada — conta João Miguel, às gargalhadas.