O dia começa cedo para a família Novelini. Por volta das 7h, o casal Emerson e Angelita levanta, prepara um chimarrão e, uma hora depois, abre a ferragem que mantém no primeiro andar da casa, na zona central de Pelotas. Parece apenas mais uma família da cidade, mas que em dia de jogo no Bento Freitas modifica a sua rotina para se adaptar ao Xavante.
Quem chega da rua enxerga do lado de fora uma bandeira do Brasil-Pel pendurada na sacada, acima da fachada da loja. Por conta disso, não são poucas as vezes em que um vizinho passa e buzina para o dono do estabelecimento — alguns, inclusive, são rivais, torcedores do Pelotas, praticando a famosa "flauta".
— Aqui, eu não uso a camisa do Brasil. Como sou comerciante, eu digo para o pessoal que aqui não tenho religião, lado político ou time de futebol. Tenho clientes — conta Emerson, que, do lado de dentro do balcão, assume um tom mais sério, mas sem esconder a garrafa térmica nas cores vermelha e preta com que serve o mate ao longo da manhã.
Esta seriedade toda destoa ao sair da loja. Basta subir o longo lance de escadas, localizado entre o portão e a garagem de casa, e acessar o segundo piso para se sentir em um verdadeiro museu xavante. Na coleção do homem de 43 anos, há produtos variados com o símbolo do Brasil-Pel, desde toalha de banho, canecas, copos, capa para o telefone celular, bonés, além é claro de uma dezena de camisas do time, enfileiradas em cabides dentro do guarda-roupa.
— Não é tu que escolhes o Brasil, é ele que te escolhe. Tu choras sem saber porque estás chorando, ris sem saber porque está rindo. Eu costumo dizer que apenas dois estádios no mundo têm alma: o Bento Freitas e a Bombonera. É inexplicável — sentencia.
Não é tu que escolhe o Brasil, é ele que te escolhe
EMERSON NOVELINI
comerciante
Por isso, em dias de jogos, as coisas mudam completamente de figura. A mulher e os dois filhos (Ariel e Caliel, de 22 e 14 anos) também são torcedores, mas nada se compara ao seu fanatismo. Emerson se orgulha de um feito alcançado no ano passado: foi a quase todos os jogos do time como mandante. Só falhou uma única vez.
— Era aniversário de uma prima minha e ela disse que se eu não fosse, nem precisava mais falar com ela. Tive que faltar ao jogo, né? — recorda ele, às gargalhadas.
Apesar de toda essa confiança, o comerciante executa um ritual para dar sorte à equipe antes de sair de casa e rumar para o Bento Freitas. Depois de pegar o inseparável rádio a pilhas, para em frente a um quadro com a imagem de Jesus Cristo, que enfeita a parede da cozinha. Empina um copo d'água com rapidez e, em seguida, faz o sinal da cruz, como se estivesse pedindo a bênção.
— O homem fica nervoso, tchê! Tem que tomar um copinho de água e se benzer para sair nos trinques. Se chegar à porta e lembrar que não tomou a água, ele volta — conta o filho Ariel.
A paixão pelo Xavante provoca risadas na família inteira a cada história contada. A esposa Angelita, por exemplo, admite que torcida pelo Rubro-Negro antes do início do namoro, há mais de 20 anos, mas não de maneira tão fervorosa.
— Eu já era torcedora, mas depois, com a família, fiquei muito mais por acompanhá-los — conta ela.
Neste domingo (26), quando o Brasil-Pel for estrear em casa, diante do Grêmio, ela poderá rumar tranquilamente com a família. Em finais de semana, é assim: os quatro vão juntos ao estádio. Mas quando a partida é no início da noite, em dia de semana, a mãe é quem se sacrifica para encerrar o expediente na loja, enquanto os filhos acompanham o pai rumo à Baixada.
— Fico escutando o jogo no rádio e os espero com uma sopa de lentilha, um carreteiro, uma massinha com guisado. Tudo para recebê-los e comemorar depois do jogo — descreve.
Em uma dessas jornadas de retaguarda, Angelita recebeu um telefonema inusitado. O marido ligara irritado, pedindo para que ela fosse buscá-lo no estádio. O Brasil-Pel enfrentava o Londrina, às 11h de um domingo, pela Série B, e, já no fim do segundo tempo, perdia por 1 a 0.
— Passei duas horas com a cara colada na grade, no sol, todo torto, porque estava lotada a arquibancada. Achei que não tinha mais jeito, que o time ia perder. Quando botei o pé para fora do estádio, o Brasil empatou. Andei mais uma quadra, ele virou o jogo. Quando cheguei no carro, saiu o terceiro. Até achei que a rádio estava repetindo o gol. Percebi que o problema era eu mesmo — relembra Emerson.
Longe de casa
Para o Gauchão deste ano, no entanto, a família Novelini terá de se acostumar a conviver com um integrante a menos. Há pouco mais de um mês, Ariel, o filho mais velho, saiu para morar junto com a namorada Eliza. Ao menos, a distância não é tão grande. Basta dar uma volta no quarteirão para que todos se reencontrem e rumem para o estádio juntos, como nos velhos tempos.
— Agora que eu saí de casa, não tenho mais essa barbada. Faz pouco tempo, mas vou ter que me acostumar sem a lentilha da mãe — brinca o jovem, estudante de direito.
Eu já era torcedora, mas fiquei muito mais por acompanhar eles
ANGELITA NOVELINI
comerciante
A paixão pelo Brasil-Pel começou a ser incentivada desde cedo. Quando tinha apenas oito anos, Ariel passou a frequentar os jogos do Brasil-Pel. Agora, vê o irmão Caliel passar pelo mesmo batismo.
— O Brasil sempre foi uma coisa que nos uniu bastante. É bom sentar no sofá e ver um jogo de Premier League, mas não é igual a ir no estádio, passar trabalho. Às vezes, ver uns caras ruins jogarem. Mas sai um gol, o jogador ruim vira craque e tu fazes amizades. Todo pai devia passar isso para o filho — empolga-se Ariel.
São tantas histórias vivenciadas nas arquibancadas do Bento Freitas que a família passaria uma noite inteira relembrando os momentos. Uma delas se deu no Gauchão de 2014, quando a equipe atropelou o Passo Fundo, goleando por 4 a 0, com três gols do centroavante Gustavo Papa.
— Teve uns 10 minutos de temporal, que parecia que atiravam a água de bodoque na gente. E aí começou aquele jogo lindo de Gauchão, com bico para todos os lados, bola parando na água, os jogadores escorregando. A gente já passou por algumas coisas naquele estádio — recorda Emerson.
— Fomos comer um churrasquinho, aquele tradicional churrasquinho de estádio que não tem igual, e era um suco de carne — completa Ariel.
Com a ajuda dos quatro, aliás, o clube viveu uma história recente de reconstrução. Até 2013, o Xavante figurava na segunda divisão do Campeonato Gaúcho. De lá para cá, foi subindo degrau por degrau e se orgulha de estar na Série B do Brasileirão.
— Parece um sonho, porque o Rogério Zimmermann chegou com o Brasil na Divisão de Acesso. Não tinha nada mais do que isso para disputar. Ele montou um time, subimos para a primeira divisão do Gauchão, saímos da Série D para a C, depois para a B. No meio disso, ainda conquistamos dois campeonatos do Interior. Foi tudo muito rápido. É até difícil de entender — relata Emerson.
Mas nem sempre eles estiveram juntos na arquibancada. Há uma década, Emerson ainda não possuía a ferragem e trabalhava como caminhoneiro.
— Nas minhas folgas, quando estava em Pelotas, assistia aos jogos. Mas quando eu estava viajando, ele era os meus olhos — comenta Emerson.
Assim foi quase durante toda uma década. Quando podia, o pai ligava para a casa para conversar com o filho, que passava um relatório sobre o que havia visto em campo.
— Eu era o procurador dele — brinca Ariel.
Acidente
Logicamente, por ser tão apaixonada pelo Brasil-Pel, a família Novelini sofreu junto com a nação rubro-negra no 15 de janeiro de 2009. Após um amistoso com o Santa Cruz, em Vale do Sol, a delegação do Brasil-Pel retornava para a cidade quando o ônibus despencou de uma altura de aproximadamente 30 metros, no anel rodoviário que conecta a RS-471 com a BR-392, em Canguçu. O acidente, além de deixar dezenas de feridos, vitimou o atacante e ídolo Cláudio Milar, o zagueiro Régis e o preparador de goleiros Giovani Guimarães.
Para Emerson, que àquela época trabalhava como caminhoneiro, havia um motivo a mais para aflição. Voltando de uma viagem a Joinvile, o homem parou no posto fiscal de Torres e recebeu a notícia de que um ônibus com um time de futebol havia tombado na estrada.
Eu vejo como a maior história de superação do futebol brasileiro
ARIEL NOVELINI
estudante de Direito
— Meu irmão é motorista de ônibus e trabalha na empresa que prestava serviço para o Brasil. Quando soube que era o Brasil, fiquei apavorado, porque pensei que era meu irmão que estava dirigindo. Além do sofrimento de torcedor, tive toda a angústia de saber se era ou não o meu irmão. Só fui falar com ele na manhã seguinte, mas ele estava em São Paulo — lembra Emerson, baixando o tom da voz, visivelmente emocionado.
A informação de que o irmão não estava envolvido na tragédia atenuou o pânico, mas não estancou o sofrimento. Chegando a Pelotas, Emerson levou a mulher e os filhos ao estádio, onde aconteceram as homenagens e o velório coletivo, e posteriormente ao cemitério, para se despedirem dos profissionais do clube.
— Fechou toda a rua. Aquele dia não tem explicação. O estádio é um lugar para se comemorar ou até chorar com uma derrota, mas não com três caixões no gramado. Não é para isso. Não é feito para velar ninguém — acentua.
Por histórias como essa que ele se tornou ainda mais fanático pelo Brasil-Pel. Há um consenso entre os quatro de que, para ser torcedor xavante, é preciso saber sofrer. Seja para superar dores profundas como esta ou para esperar por um gol sofrido que demora a acontecer. A promessa nunca é de um jogo fácil, com atuações de encher os olhos. Pelo contrário, a trajetória é como a da família Novelini, que encara as dificuldades do dia a dia com valentia.
— Atingir o patamar que o Brasil atingiu depois de perder os principais jogadores, se reerguer depois de chegar ao fundo do poço. Eu vejo como a maior história de superação do futebol brasileiro — conclui Ariel.