Já passava das 23h30min de quarta-feira (29) quando o celular de Fernando Dillmann começou a receber inúmeras mensagens sem que ele percebesse. Em sua casa, no bairro Lindoia, na zona norte de Pelotas, ele havia escutado pelo rádio toda a repercussão da derrota do seu time para o Ypiranga, pela terceira rodada do Gauchão — que inclusive causou a demissão do técnico Picoli. Por isso, de cabeça quente, escutou as entrevistas pós-jogo e foi dormir. A esposa Irondina Bervaldt e a filha Fernanda já haviam deitado mais cedo. No dia seguinte é que visualizaram as dezenas de notificações no Whatsapp.
— Acordei às 5h30min da manhã e meu celular estava cheio de mensagens de amigos me perguntando se a gente estava bem, se estávamos no ônibus. Foi aí que fui em busca das informações e fiquei sabendo da notícia — relata o analista fiscal de 46 anos.
A preocupação dos amigos fazia sentido. Há mais de três décadas, Dillmann é figura conhecida entre os áureos-cerúleos, seja no Estádio da Boca do Lobo ou nas excursões pelo Estado. Não foram poucas as vezes em que dividiu poltronas com muitas das pessoas que ficaram feridas após o capotamento de um ônibus com torcedores do Pelotas, no km 70 da RS-135, em Erechim. Apesar de a amizade vir de longa data, a informalidade da arquibancada faz com que eles muitas vezes não saibam o nome uns dos outros. Atendem somente por apelidos, como "Sabugo", "Rato" e "seu Zé".
— Aquela turma que foi a Erechim está sempre junto. Em uma excursão no ano passado, tinha dois senhores de idade do meu lado. Tinham dificuldade até de subir no ônibus. Mas a gente acaba indo, é muito amor pelo clube. Agora é torcer pela recuperação de todos para poder dar um abraço já no próximo jogo — comenta Fernando.
A descrição do "senhor de idade" pode perfeitamente encaixar em Eldor Stigger, de 89 anos, um dos torcedores que, após o acidente, teve de ser internado na UTI do Hospital de Caridade de Erechim com fraturas em costelas e na vértebra t-9 da coluna, além de uma perfuração do pulmão. Mas também havia jovens, como Bruna Albuquerque, de apenas 20 anos, que regulam de idade com a filha de Dillmann. Estudante de Direito, Fernanda Bervaldt Dillmann tem acompanhado o pai em excursões nos últimos anos. No domingo passado, por exemplo, os dois foram a Porto Alegre para o jogo com o Inter, no Beira-Rio.
Eu só não fui (a Erechim) porque estava trabalhando. Se estivesse de férias, certamente eu estaria lá
FERNANDO DILLMANN
analista fiscal
— Minha paixão pelo Pelotas começou por influência do meu pai que, desde que eu era criança, me leva na Boca do Lobo. Então, cresci indo para o estádio. Hoje o futebol é nosso momento de lazer e eu gosto muito porque me aproxima dele — fala a jovem de 21 anos.
Pai e filha atendem ao perfil daqueles torcedores que, na última quarta-feira, cruzaram o Rio Grande do Sul, viajando por mais de 10 horas, para simplesmente acompanhar o time do coração.
— Chegaram a me ligar, dizendo que faltavam alguns lugares no ônibus. Sei de gente que pagou mas não foi. Comprou mais para contribuir mesmo. Eu só não fui porque estava trabalhando. Se estivesse de férias, certamente eu estaria lá — conta Fernando.
O amor de Dilmann pelo Pelotas começou quando tinha apenas 11 anos e pediu aos pais para ser matriculado na escolinha de futebol sete do clube. Por um tempo, insistiu no sonho de ser atleta até chegar à categoria juvenil, quando então percebeu que a qualidade técnica não era tão afinada. Encontrou outra solução: reuniu alguns companheiros igualmente apaixonados para formar a torcida organizada Febre Amarela.
Há alguns anos, pôs na cabeça a ideia de confeccionar cachecóis nas cores azul e amarelo. Inspirado nas mantas que os torcedores europeus exibem em jogos da Liga dos Campeões, foi procurar na internet alguém capaz de fabricar uma do seu time. Encontrou um cidadão em Portugal, tão fanático quanto ele, mas pelo Braga. Na primeira encomenda vieram 100 faixas, mas a demanda entre os amigos foi enorme. Por isso, mandou trazer mais 500 itens do Velho Continente. Hoje em dia, esta é uma das indumentárias que tremulam nas arquibancadas da Boca do Lobo.
— A gente não tem como dizer o que é ser Pelotas. Ser Pelotas é tudo. É alegria, emoção, nas horas boas e más. Tu vai para lá e te transforma — conclui ele.
Jogando em casa
Apesar de viajar para acompanhar o Pelotas, Dillmann tem seu time escalado sem desfalques quando atua dentro de casa. Na Boca do Lobo, além da filha Fernanda, ele conta com a companhia da esposa Irondina Bervaldt. Tamanha é a devoção da família pelo clube que não poderia ter sido em outro lugar que cruzou olhares com a mulher pela primeira vez.
— Eu conheci ele em um jogo do Pelotas e já começamos a namorar. Eu comecei a torcer pelo time e estamos juntos até hoje — revela a cabeleireira de 52 anos.
Tímida, ela fala bem menos que o marido. Porém, já deu demonstrações de amor na surdina. Em um aniversário do marido, enquanto ele trabalhava, Irondina procurou os dirigentes do Pelotas e pediu para que alguns atletas fossem dispensados e comparecessem a uma festa surpresa em sua casa. E não é que o clube permitiu?
— Minha família é de São Lourenço do Sul e sempre que alguém está de aniversário a gente reúne todo mundo, solta foguetes, faz uma grande festa. Mas eu estranhei que quando cheguei do serviço, não tinha nenhum carro na frente de casa. Então eu entrei e, para minha surpresa, estavam lá todos os meus parentes e alguns jogadores do Pelotas. Depois, fiquei sabendo que ela havia planejado tudo — diz Fernando.
Fico nervosa por causa deles. Se o Pelotas está mal, fico triste também
IRONDINA BERVALDT
cabeleireira
Natural de Turuçu, município situado há pouco menos de 50 quilômetros de Pelotas, Irondina frequentava os jogos do "Lobão" nos anos 1990 para acompanhar os amigos. Com o passar dos anos, trocou de parceria, ganhando a companhia do marido e da filha. Atualmente, apesar de não se dizer fanática pelo Pelotas, sofre tanto ou até mais do que os familiares.
— Fico nervosa por causa deles. Olho para eles e, se o Pelotas está mal, fico triste também — explica ela.
Mas não é exatamente o que se vê no campo. Dez minutos antes da equipe sair do vestiário, ela já está roendo unhas. Depois, enquanto a bola rola, cruza os dedos das duas mãos, fazendo figas intermináveis. De tão aflita, chega a irritar a filha.
— Se o Pelotas está ganhando, ela dá um jeito de deixar a gente mais nervosa. Fica dizendo que o Pelotas está jogando mal, que vai perder. Mas quando ela vê que a gente realmente está chateado, ela para — relata Fernanda às gargalhadas.
Mas Irondina não está sozinha nesta. O próprio marido, antes do time ingressar no gramado, pede a benção aos céus, fazendo o sinal da cruz e beijando a aliança na mão esquerda.
— Tu tem que falar que tu te benze todo — acusa a esposa.
O conjunto de ações pertence à liturgia que é acompanhar os jogos do Pelotas. Antes de mais nada, eles encontram os amigos no Parque Dom Antônio Zattera, localizado em frente ao estádio e repetem o ritual: comem um churrasco, bebem um chopp e debatem as chances de vitória na batalha que virá em seguida.
— O Estádio da Boca do Lobo é a nossa segunda casa. A gente entra no estádio uns 30 minutos antes da partida e vamos para o mesmo local. É um lugar sagrado que a gente sempre fica — conta Fernando.
Conquista da Recopa
Apesar da má largada no Gauchão deste ano — o time conquistou apenas um ponto nas três primeiras rodadas —, a família já iniciou a temporada de 2020 vivendo fortes emoções. No dia 19 de janeiro, vibrou quando o goleiro Douglas defendeu a cobrança do zagueiro Rodrigues, que rendeu a conquista da Recopa Gaúcha nos pênaltis contra o Grêmio.
— Já vi muita gente aparecer no estádio com a camisa do Inter ou Grêmio, e os torcedores pedem para tirar a camisa. Quem é Pelotas não torce pela dupla Gre-Nal — sentencia Fernando.
A coisa que mais gosto de fazer na vida é ir no jogo do Pelotas. Com eles (pai e mãe), de preferência
FERNANDA BERVALDT
estudante de Direito
Contudo, toda a festa protagonizada não chegou nem perto do que se viu em 2014. Naquele ano, a equipe disputava contra o time B colorado, treinado por Clemer, a primeira edição do torneio. Com a camisa vermelha estavam jovens atletas que, posteriormente, ganhariam destaque, como o goleiro Alisson, o lateral Cláudio Winck e o volante Rodrigo Dourado.
Para os anfitriões, o cenário era totalmente adverso. Ao final do primeiro tempo, caía uma chuva muito forte, o Inter vencia por 2 a 0 e o Pelotas, com um jogador expulso, atuava com um a menos. Porém, na base da raça e da força, o "Lobo" promoveu a virada para 3 a 2 e levantou a taça. Os portões foram abertos e centenas de torcedores invadiram o campo para festejar o título. Entre eles, claro, lá estava a família de Fernando.
— Eu estava com um problema no pé e não podia nem calçar tênis. Então, eu estava de chinelo. Quando viramos o jogo, o estádio foi abaixo. Aquilo foi uma emoção. Eu tenho umas fotos até hoje, saí na capa do jornal aqui da cidade segurando o chinelo na mão, fiz volta olímpica e não senti dor nenhuma. Minha filha disse: "Mãe, a partir de hoje o pai sarou o pé". Mas o jogo do Pelotas cura tudo! — resume Fernando.
— Ele não tinha opção: eu ia invadir o campo sozinha ou ele ia comigo. Então, ele deu um jeito e foi lá comigo comemorar. Nem reclamou de dor — recorda a filha.
A cena descrita por eles explica por que torcer pelo Pelotas é encarado como uma religião. No caso da família áureo-cerúlea, a idolatria pelo clube pode operar até mesmo milagres.
— Hoje posso dizer que a coisa que mais gosto de fazer na vida é ir no jogo do Pelotas. Com eles (pai e mãe), de preferência — resume a jovem.