Doutora em Educação pela Michigan State University, nos Estados Unidos, Maria Beatriz Moreira Luce, 75 anos, é professora titular de Política e Administração da Educação na UFRGS e docente no Mestrado Profissional em Educação da Universidade Federal do Pampa (Unipampa). É a professora mais antiga da história da Faculdade de Educação da UFRGS (Faced) e uma das primeiras pesquisadoras do campo da educação no Brasil em atividade. Após mais de 50 anos lecionando na UFRGS, ela se aposentou em 2023, quando completou a idade da aposentadoria compulsória, mas não parou de dar aulas e orientar trabalhos – segue na instituição como professora convidada. A pesquisadora vem trabalhando com temas ligados à democratização do acesso à educação e à formação de professores no país. No Ministério da Educação, foi Secretária de Educação Básica; e no Conselho Nacional de Educação, foi conselheira nas câmaras de Educação Básica e de Educação Superior.
Como a senhora decidiu que queria ser professora?
Eu sou de 1948. Estudei no Instituto de Educação, mas na realidade eu entrei no curso normal sem pensar em ser professora. Foi influência da minha mãe, que queria que a gente fizesse um curso profissionalizante. Ela era viúva e tinha quatro filhos, sendo as três primeiras mulheres, e queria que a gente começasse a trabalhar cedo. Foi um bom encaminhamento profissional, acabei gostando muito. Quando terminei o curso, fui convidada para fazer entrevista em uma escola nova que estava abrindo em Porto Alegre, com um projeto pedagógico inovador. Então, aos 19 anos, comecei a dar aula no Colégio João XXIII, primeira experiência profissional como professora. Cheguei a dar aulas particulares antes.
Quando a senhora entrou na universidade? Conte um pouco dessa relação de longa data com a UFRGS.
Minha história com a Faced começou em 1968, quando passei no vestibular. Fiz Pedagogia e me formei em 1971. Embora fosse um curso de quatro anos, consegui concluir em três, porque fui muito incentivada a começar o mestrado logo em seguida. A faculdade tinha recém sido criada, após a reforma universitária de 1968. Então, a Faced foi instituída em 1970, e começaram a preparar o projeto do curso de mestrado em 1971.
Como foi sua trajetória na pós-graduação e quando começou a dar aula na Faced?
Terminei a Licenciatura em Pedagogia em 1971 e logo iniciei o mestrado, em janeiro de 1972. Vários dos meus colegas eram meus professores. Na época, a principal razão de fazer mestrado e doutorado era porque os professores universitários não tinham pós-graduação. Não era uma exigência, apenas os poucos que tinham saído para o Exterior tinham pós-graduação. Então, iniciei em janeiro de 1972 meu mestrado na Faced e já comecei a dar aulas na faculdade como professora substituta. Mas acabei concluindo o mestrado nos Estados Unidos, na Michigan State University. Na época, eu tinha começado a namorar o Fernando Bins Luce, que é meu marido até hoje. Ele recebeu uma bolsa para o mestrado em Administração e eu fui junto, fui aprovada no mestrado lá. Logo depois de concluir o mestrado fiz minha admissão no doutorado na mesma universidade, passei nos exames e deu certo. Mas eu fiz um intervalo de dois anos, vim para o Brasil, porque consegui um trabalho na Fundação de Economia e Estatística (FEE). Naquela época, quem tinha mestrado já podia dar algumas disciplinas, só não podia orientar as dissertações. Então, cheguei a dar aulas na Faced paralelamente. Depois, quando saiu o primeiro Plano Nacional de Pós-Graduação, fui apressada para voltar aos Estados Unidos e concluir meu doutorado. Entrei oficialmente para o quadro docente da UFRGS em 1975.
São mais de 50 anos de Faced, então. A senhora chegou a pensar em parar de trabalhar? Isso está nos planos?
Olha, ainda não pensei em parar de trabalhar. Gosto muito do que faço e acho que há muitas coisas em que eu ainda posso colaborar. Participei da construção da política educacional do nosso país, e isso me dá condições de transmitir essa história para mais uma geração e formar mais pesquisadores. Eu me aposentei em 2023, ao completar 75 anos, por conta da idade compulsória. Mas sigo como professora convidada na Faced. Fernando, meu marido, também está na mesma situação na UFRGS. Eu continuo pesquisando, orientando trabalhos. Durante esse período, foram quase cem teses e dissertações que orientei. Também continuo dando aulas no mestrado profissional em Educação da Unipampa.
Muito tem se falado sobre etarismo, o preconceito etário. Imagino que a senhora lide muito com pessoas mais jovens diariamente na faculdade. Como é essa relação com os alunos e colegas mais novos?
Na Faced, nós temos uma longa história de valorização dos professores mais antigos, que continuaram trabalhando, mas a maior parte dos docentes se aposentaram ao completarem o tempo de aposentadoria, e não pela idade. Eu tenho muito incentivo de alunos e colegas. Eles até comentam que percebem que eu trabalho com muita energia, isso me agrada muito.
Qual é seu foco de pesquisa no momento?
Minha formação foi em educação internacional e comparada, que é a origem dos estudos sobre política educacional. Eu me dediquei a essa área por toda a vida, e sigo pesquisando nesse campo.
Pode-se dizer que a senhora é uma das pesquisadoras da educação mais antigas e atividade. Quais foram os momentos mais marcantes dessa trajetória?
Um fato interessante é que eu fiz o curso de Pedagogia durante a ditadura militar no Brasil, e o cerceamento das leituras era uma realidade. Evidência disso é que, em 1973, quando eu estava no mestrado nos Estados Unidos, tive de participar de um seminário sobre educação da América Latina, e me escolheram para apresentar a obra de Paulo Freire. Só que eu nunca tinha lido nada dele. Eu tinha vontade de ler, mas não tinha tido a oportunidade, por conta da repressão. Lembro que um trecho de Pedagogia do Oprimido circulava escondido no diretório de estudantes da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFRGS, onde hoje fica o Bar do Antônio, então, cheguei a manusear antes, mas a gente morria de medo. Só fui ler mesmo o livro em inglês. Consegui na biblioteca da Michigan State University.
A senhora comentou que participou da construção da política educacional do país. Quais foram as conquistas mais relevantes?
Minha luta foi sempre pela democratização da educação, para garantir os direitos de todos em condições de equidade. Essa foi a grande discussão da redemocratização do nosso país, nos anos 1980. Participei da elaboração da Constituição de 1988 e ajudei a levar esses preceitos, tanto na legislação federal quanto na estadual. Depois, contribuí na construção da Lei de Diretrizes e Bases, na década de 1990. Minha tese de doutorado foi o primeiro estudo para desenvolver critérios para a avaliação da pós-graduação no Brasil. Anos depois, participei da comissão que concebeu a lei do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). Também me envolvi no Mercosul, na elaboração de políticas de harmonização de currículos e convergência entre os países do bloco. Essa experiência me valeu muito quando fui para o Conselho Nacional de Educação. Primeiro fui conselheira na Câmara de Educação Básica e, depois, na Câmara de Educação Superior, por mais quatro anos. Também participei da implantação da Universidade Federal do Pampa, nos anos 2000. Foi um processo muito complexo, porque foram 10 campi implantados ao mesmo tempo em uma vasta região geográfica, foi um processo de interiorização da educação. Após a implantação, fui reitora pró-tempore, entre 2008 e 2011, antes da primeira gestão oficial. Foram anos de pesquisa, gestão de associações e entidades, emendas constitucionais. No porão da minha casa tenho dezenas de caixas de documentos que guardei ao longo dessa trajetória.
Temos um gravíssimo problema em relação à política educacional no nosso país, de pouca valorização da escola e dos profissionais da educação básica. A maior parte da população brasileira ainda não entendeu que completar o Ensino Médio é importante, que precisamos desses 12 anos de escola, no mínimo.
Atualmente, temos um grande problema de falta de professores no Brasil. Não há professores o suficiente para dar aula e nem sequer preencher as vagas dos cursos de licenciatura. Por que isso acontece, na sua avaliação?
Não consigo pensar nada diferente daquilo que o mundo inteiro já sabe: nós temos um gravíssimo problema em relação à política educacional no nosso país, de pouca valorização da escola e dos profissionais da educação básica. Nós ainda não conseguimos atingir metas elementares, que já estavam previstas na Constituição de 1988, do direito à educação, a democratização da educação. Estamos com uma evasão escolar grave já nos anos finais do Ensino Fundamental. A maior parte da população brasileira ainda não entendeu que completar o Ensino Médio é importante, que precisamos desses 12 anos de escola, no mínimo. E isso implica em uma limitação muito grande na valorização da carreira. Outra preocupação é a desvalorização dos cursos de licenciatura, principalmente os cursos à distância, em muitos casos.
Muitos professores estão sendo formados a distância, inclusive, com a ascensão do EAD. Como a senhora enxerga esse processo?
Não podemos desprezar as possibilidades da educação a distância. As tecnologias nos ajudam muito para dar oportunidades às pessoas mais velhas, que já estão no mercado de trabalho, por exemplo. Mas o EAD não pode ser a regra, não pode ser a maior parte da formação para nenhuma profissão. Estar em uma universidade não é só ir à aula, e não é só ler o que o professor manda. Tem palestras e atividades culturais, como teatro, tem o movimento estudantil. Tem que ter formação científica e cultural. No magistério, estamos tendo diplomas de licenciatura sem que o aluno tenha tido teoria e prática, falta essa base.
A municipalização não pode ser feita porque o Estado quer se desfazer de matrículas, se desfazer de escolas e diminuir o corpo docente na rede estadual. Ela tem de ser planejada localmente e, principalmente, tem de partir de uma capacidade municipal de planejamento e de gestão da educação. A municipalização não pode ser um processo acelerado. E nem além da conta da capacidade dos municípios.
Qual é o principal problema da educação no Rio Grande do Sul?
Percebo a falta de um projeto educacional sendo discutido com os profissionais da educação e com a sociedade. Temos observado que diminuiu muito, nos últimos anos, o número de interlocutores, de eventos e reuniões que são feitas com os profissionais da Secretaria da Educação, das coordenadorias regionais, e nas próprias escolas. Nós não temos tido mais aqueles grandes seminários, a formação continuada está limitada. Um dos problemas é que as universidades, incluindo as comunitárias, mas principalmente as públicas, não estão mais sendo parceiras das secretarias municipais e estaduais de educação para discutir sobre currículo, sobre formação de professores, não estão fazendo pesquisa nas escolas. Isso porque os governos têm preferido contratar institutos e fundações vinculados ao empresariado, que adotam uma visão diferente da que nós temos sobre formação de professores. Outra questão dos últimos anos é o avanço de um movimento conservador em relação aos instrumentos, processos e critérios da gestão democrática no nosso país. Essa concepção de gestão mais autoritária, mais empresarial, está desvalorizando nossos conselhos escolares e impondo uma gestão por resultados. O objetivo da educação nacional é desenvolvimento humano, formação para o trabalho e cidadania.
Recentemente foi aprovado o marco legal da educação gaúcha, e um dos destaques é a municipalização das escolas da rede estadual. Qual a sua visão sobre isso?
A municipalização não pode ser feita porque o Estado quer se desfazer de matrículas, se desfazer de escolas e diminuir o corpo docente na rede estadual. Ela tem de ser planejada localmente e, principalmente, tem de partir de uma capacidade municipal de planejamento e de gestão da educação. No Rio Grande do Sul, nós sempre tivemos muitas matrículas nas escolas estaduais, essas escolas são muito importantes. Mas o Estado está encolhendo essas escolas de Ensino Fundamental. Lamentavelmente, o governo não tem conseguido expandir e qualificar o Ensino Médio. Se o governo estivesse diminuindo sua atuação no Fundamental para atender 100% da população no Ensino Médio, faria sentido, mas isso não está acontecendo. As turmas de EJA estão diminuindo, inclusive. Isso está inviabilizando que jovens e adultos que não concluíram a escola na idade própria terminem o seu Ensino Médio. Então, acredito que a municipalização não pode ser um processo acelerado. E nem além da conta da capacidade dos municípios, seja uma capacidade financeira ou a capacidade de gerir pedagogicamente. Da foram como está sendo proposta, essa mudança me preocupa muito.
O grande problema (do novo Ensino Médio) é a desigualdade. Defendo o currículo por áreas de conhecimento, mas isso não retira a importância de haver disciplinas para o aprofundamento em matemática, física, química, história, geografia, sociologia. A ideia de fazer itinerários formativos é para dar mais opções aos alunos. Agora, implementá-los e não haver as opções que deveria haver, isso não existe, é lamentável.
Em relação ao tempo integral, a senhora acredita que o modelo adotado pelo Estado é o adequado? A forma como está sendo implementado faz sentido?
Pouquíssimos países têm tão poucas horas de escola quanto nós temos no Brasil, menos de seis, sete horas de escola. Sou a favor do ensino em tempo integral, mas de uma educação de qualidade integral. Sete horas na escola não são sete horas em uma sala de aula tradicional. A escola também precisa ter salas ambiente, quadra de esporte, aulas de artes, e não só música e artes plásticas, mas também um espaço para artes dramáticas, precisa ter laboratório de ciências, mesmo para o Ensino Fundamental. Precisa ter pátio, ter condições de levar os alunos ao museu, introduzir a cidadania. Isso é a democratização da educação, é direito de todos e dever do Estado, precisamos de direitos em condições de equidade. Não pode acontecer isso que está acontecendo com a trágica proposta de Novo Ensino Médio.
Qual é a sua opinião sobre o novo Ensino Médio?
O grande problema é a desigualdade. Eu defendo o currículo por áreas de conhecimento, mas isso não retira a importância de haver disciplinas e professores para fazer o aprofundamento em matemática, física, química, história, geografia, sociologia. A ideia de fazer itinerários formativos é para dar mais opções aos alunos. Agora, implementar itinerários formativos e não haver as opções que deveria haver, isso não existe, é lamentável. E é o que está acontecendo. O Ensino Médio precisa de um projeto com mais condições, com mais infraestrutura. Não há como ter uma boa escola de Ensino Médio sem laboratórios de informática e ciência, sem bibliotecas, sem internet de qualidade. O que está havendo é um encolhimento de conteúdo. Poderia ser uma reforma curricular que aumenta as horas para dar disciplinas de fundamento e projetos interdisciplinares, experiências e trabalhos em grupo, e flexibilidade na própria matrícula. Mas os alunos continuam a ser matriculados todos na mesma sala, no mesmo horário, sem a flexibilidade do currículo de Ensino Médio que a gente vê em outros países, ou nas melhores escolas do país.