Doutor em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Esper Abrão Cavalheiro, 73 anos, vem cumprindo papel relevante na construção de políticas públicas para a educação brasileira. Com longa trajetória na pesquisa desde a década de 1970, o professor passou por diversos cargos. Além de ter sido presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), dirigiu o Fórum de Pró-Reitores de Pós-Graduação e Pesquisa e foi vice-presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. Atualmente, lidera a elaboração do próximo Plano Nacional de Pós-Graduação (2024-2028), série de objetivos para nortear as políticas públicas e garantir o desenvolvimento do Sistema Nacional de Pós-Graduação. Recentemente, Esper esteve em Porto Alegre para falar sobre o plano. Nesta entrevista, diz quais considera serem os desafios da pós-graduação no Brasil e, também, os possíveis caminhos para enfrentá-los.
Como funcionou a construção do novo Plano Nacional de Pós-Graduação? Quem participou? Conte mais sobre esse processo, por favor.
O projeto nacional de pós-graduação tem uma duração de cinco anos. O próximo se inicia em janeiro de 2024 e terá vigência até dezembro de 2028. Somos um grupo constituído pela presidência da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), com 38 pessoas, incluindo a mim, que fui indicado como presidente dessa comissão. Todos já envolvidos na gestão da pós-graduação no Brasil, experts da área, como pró-reitores de instituições públicas e privadas, representantes de instituições relevantes, como o presidente da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), além de pessoas que já haviam participado da elaboração de planos anteriores. A construção começou oficialmente em agosto de 2022. Tivemos uma reunião em Brasília para estabelecer os principais temas a serem abordados nesse plano. Começamos a pensar a partir de algumas perguntas que fiz. Questionei coisas genéricas, de início, mas que ajudaram a guiar o nosso trabalho. “Para que temos pós-graduação no Brasil?”, “o que ela significa para o nosso país?”, “o que esperamos de alguém que faz mestrado e doutorado?”, “como esse pós-graduando sai da universidade e como vai colaborar com o desenvolvimento do país?”, perguntas como essas. Assim, tentamos elaborar um caminho bem claro de onde estamos e onde queremos chegar. Temos de pensar em avanços, afinal de contas, a pós-graduação não é uma novidade no Brasil, ela começou a se desenvolver em meados dos anos 1960. Tivemos um boom entre 1970 e 1990, quando as principais universidades brasileiras começaram a entrar nesse sistema. A partir disso, tivemos uma grande ampliação na formação de docentes e melhora na qualidade do ensino.
Quais são as principais metas do plano? Que pontos devem mudar a partir de agora na pós-graduação do país?
Desde o início do projeto, consideramos fundamental pensar nos problemas e particularidades do Brasil. Nosso país tem uma série de questões sociais históricas a serem discutidas. A desigualdade social, a distribuição de renda, o problema da alfabetização e as lacunas na educação básica não poderiam ficar descolados do plano. Fizemos questão de ter dados, pesquisas e informações qualificadas sobre cada um desses tópicos, para olhar esses temas sob diversos ângulos. Por outro lado, temos que olhar para o futuro, que está batendo na porta. Hoje, falamos muito sobre o uso de inteligência artificial, por exemplo. Também não podemos deixar de lado o olhar para a inovação. Então, tentamos conciliar essa necessidade de inovar com os velhos problemas da nossa sociedade, que também precisam ser pensados no contexto da pós-graduação. Temos que pensar na inclusão e na permanência de pessoas negras, indígenas, quilombolas, neurodivergentes e trans, por exemplo. E também em questões como sustentabilidade, novas matrizes energéticas, mudanças climáticas. O mundo está preocupado com isso, e a pós-graduação também precisa ter esse olhar. Uma das lacunas que queremos resolver nos próximos anos são as assimetrias do Brasil na educação e na pesquisa. Temos regiões muito mais desenvolvidas economicamente do que outras, regiões que começaram a evoluir antes nos cursos de pós-graduação. Sudeste e Sul começaram a se desenvolver já nos anos 1960, por exemplo. E outras regiões foram se desenvolvendo mais tarde, já que seus docentes tinham que ir para esses Estados mais desenvolvidos para fazer mestrado e doutorado, muitas vezes. E aí eles voltaram para suas regiões para levar esses conhecimentos. Com isso, tivemos muito desenvolvimento e elevamos o patamar das universidades brasileiras, com a formação de docentes qualificados em todo o país. Mas a gente percebe que Sudeste e Sul continuam se destacando nos rankings de cursos. Por mais que haja muitos bons cursos em outras regiões, essas duas seguem liderando, com o Nordeste praticamente colado na região Sul nessas classificações. E, se você olhar para os dados do Nordeste, existe desigualdade dentro de seus Estados. Boa parte dos cursos está concentrada nas capitais, no litoral, e os jovens que vivem no interior dos Estados precisam se deslocar por longas distâncias para poder fazer pós-graduação. Então, uma das principais metas é conseguir recursos para diminuir essas assimetrias e ampliar o acesso.
Quais são as propostas para que se consiga mitigar as desigualdades e ampliar a pós-graduação nessas regiões?
Existem muitos caminhos. Uma das nossas propostas é a solidariedade entre as instituições. Ou seja, que instituições de ensino com mais recursos possam ajudar outras que são menos desenvolvidas, para que atinjam patamares mais elevados. Criar grupos de colaboração e estabelecer relações entre as universidades é um bom caminho. Outra alternativa é o estímulo à mobilidade intranacional, dar oportunidades para que os alunos conheçam outros programas de pós-graduação dentro do Brasil. Não adianta ter a visão de uma só universidade. Quanto mais diversidade, mais rico será o mestrado ou o doutorado.
Tem um montão de pessoas no Brasil que nem sequer sabem o que é pós-graduação. Temos de fazê-las entenderem que todos têm o direito de chegar lá. Não digo que a pós é para todos, mas todos têm o direito de escolher se querem isso para as suas vidas.
Recentemente, houve a sanção da nova lei de cotas, que amplia a política afirmativa de reserva de vagas para cursos de pós-graduação. Será que a pós está preparada para receber mais alunos de grupos minoritários? Como o novo plano contempla esse ponto?
O capítulo “alteridade e diversidade” do plano trata sobre esse tema, com objetivos específicos. Em anos anteriores, esse tema não foi trabalhado diretamente no plano. Falava-se de cotas, mas não havia um encaminhamento concreto dessas questões. Nós conceituamos cada um desses pontos para iniciar uma discussão. O que entendemos por diversidade, o que entendemos por alteridade. Para isso, ouvimos os pós-graduandos, pesquisadores que são referência na área, líderes do movimento negro, representantes da comunidade trans, entre outros. Reforçamos, no plano, que não podemos nos contentar com as cotas. As cotas são positivas, é um bom caminho, mas a universidade tem que estar preparada para receber esses indivíduos depois que foram absorvidos pelas cotas. Essas pessoas possuem bagagem diferente, uma história que não é igual à dos outros. Temos que ter mais equidade nas instituições, precisamos de uma mudança estrutural. Boa parte das universidades brasileiras ainda é majoritariamente composta por pessoas brancas, de classe média e alta. Também abordamos questões das mulheres, a necessidade de criar iniciativas para facilitar a vida acadêmica para as mães. Precisamos avançar nessas questões, porque a pós-graduação não pode ser um castelo fechado, ela precisa representar a nossa sociedade. Tem um montão de pessoas no Brasil que nem sequer sabem o que é pós-graduação. Temos de fazê-las entenderem que todos têm o direito de chegar lá. Não digo que a pós é para todos, mas todos têm o direito de escolher se querem isso para as suas vidas.
No plano anterior, cumprimos as metas previstas? Correu dentro do esperado?
Sim, foi muito bom. O plano anterior durou 10 anos, de 2011 a 2020, por uma excepcionalidade. Ele tinha a função de expandir o sistema, ampliando a oferta. E nesse sentido foi muito positivo. Passamos de 2 mil para 4 mil programas de pós-graduação no Brasil. Lembrando que nesse período o governo federal criou o Reuni, Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais. Isso promoveu uma multiplicação dos sítios e a ampliação do alcance da pós-graduação. Então, uma universidade que estava localizada apenas em Manaus abriu vários campi em outras regiões do Amazonas, por exemplo. Todo o Brasil passou pelo mesmo processo de expansão. Isso garantiu mais oportunidades para a população ter acesso à formação universitária. E foi uma tarefa difícil. Duvido que outros países tenham tido a coragem de fazer isso tudo em uma década, você dobrar os programas de pós-graduação. Esse sistema anterior cumpriu bem a sua tarefa, e agora já podemos olhar para mais adiante. Nos últimos anos, conseguimos replicar muito do que já existia e multiplicar isso, levar cursos que já existiam para áreas mais remotas. Mas talvez não tenhamos olhado as reais necessidades de cada região. Não podemos replicar no Norte o que se faz no Sudeste, por exemplo, sem considerar as particularidades de cada região. O Brasil é diverso e rico, e temos desigualdades econômicas que precisam ser levadas em consideração. E essa é a nossa tarefa agora. Temos que respeitar e entender que as nossas diferentes culturas fazem parte do Brasil, nosso país é a somatória disso tudo.
Por favor, comente um pouco sobre a duração do plano. Por que passou para cinco anos, e não mais 10? Faz sentido ter 10 anos?
Em 2010, foi proposto o Plano Nacional de Educação anterior, com duração de 10 anos, aprovado em 2014. A Capes também tinha a intenção de fazer um Plano Nacional de Pós-Graduação para 10 anos. Com isso, tivemos o PNPG de 2011 a 2020. Depois, chegamos à conclusão de que o conhecimento científico e tecnológico avança muito rápido, não faz sentido ter um plano para 10 anos. Assim, chegamos a essa proposta. Tenho dúvidas se o Plano Nacional de Educação previsto para 10 anos dá conta de todas as mudanças que veremos nos próximos anos. No caso da pesquisa, isso não é possível. A ciência e a tecnologia andam a passos de gigante. Em 2010, não imaginávamos que passaríamos por tantas mudanças como as que passamos.
Há muitas pesquisas de mestrado e doutorado que se encerram em si próprias, em tantas consequências práticas. Existe algum acompanhamento ou diretriz para garantir que projetos da pós-graduação se aproximem de questões mais urgentes ou pertinentes no contexto social?
Em teoria, seguindo uma linguagem mundial relacionada à pesquisa, podemos dizer que a atividade científica propõe a autonomia intelectual. Ou seja, dada a formação do pesquisador, ele pode seguir por caminhos que talvez nem sempre sejam soluções para uso imediato. Mas temos de ter em mente que a grande maioria da pesquisa feita no Brasil é custeada com dinheiro público. Os programas de pós-graduação no país passam pela avaliação da Capes, e isso é levado a sério. A ciência está sendo paga com dinheiro do povo. Portanto, as pesquisas não podem estar simplesmente voltadas para os interesses pessoais do pesquisador, mas sim trazer respostas para problemas que atingem os cidadãos. A pesquisa precisa conciliar três pontos: contribuir com o avanço do conhecimento humano, atender às demandas da sociedade, que paga a conta, e fornecer subsídios para as políticas públicas de qualidade. Precisamos de dados sobre vacinas para termos políticas públicas de vacinação, por exemplo. Esses três caminhos são muito importantes.
Em relação à educação a distância (EaD), tema que tem sido uma grande preocupação de especialistas. Recentemente, o censo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) constatou uma explosão de cursos de pós-graduação EaD no Brasil. Como o senhor avalia essa questão?
Acredito que ainda não existe país no mundo que tenha uma solução para essa regulamentação. A pós-graduação a distância é algo complicado. A pós-graduação não é um ambiente para formar um determinado número de pessoas. É um processo que transforma o indivíduo em um grande conhecedor de determinada área. Ser um grande conhecedor não é falar muito bem sobre aquele assunto. É conhecer a história daquela área, saber onde ela começou e onde está hoje. É transformar a mente desse indivíduo para que seja uma pessoa que indaga, que vai atrás do conhecimento, que tenta criar soluções. É muito difícil fazer essa transformação com um encontro por semana, ou uma por semana. Pós-graduação é muito mais do que aula. É vivência. O professor orientador tem que acompanhar esse processo, então alguma parte pode ser a distância. Algumas discussões podem ser remotas. Tem trabalhos que podem ser feitos com a educação a distância. Mas não acredito que se possa formar pós-graduandos só a distância, isso não é possível. Acho que devemos pensar em situações híbridas. Que a EAD venha para complementar, e não substituir a pós-graduação.
Podemos olhar para o exemplo da China, que passa de um modelo praticamente medieval, do século passado, para se transformar em um polo de ciência e tecnologia. Temos de olhar para esses exemplos internacionais, não só para EUA e Europa. Não temos o hábito de olhar lateralmente.
E no Rio Grande do Sul, que avanços podemos destacar nos últimos anos?
No começo dos anos 2000, o Rio Grande do Sul repercutiu um pouco do que já havia nas capitais. A região aproveitou muito do que os professores absorveram das grandes universidades brasileiras. De 2010 para cá, várias universidades gaúchas criaram núcleos próprios de inovação, aproveitando as particularidades locais e atingindo patamares muito elevados. Quando falamos da UFRGS e da PUCRS, por exemplo, são instituições extremamente importantes para o desenvolvimento local, que têm relações com as empresas locais e contribuem para alavancar a economia. O mesmo pode ser dito sobre o Paraná e a Bahia.
Que bons exemplos podemos trazer do Exterior quando o assunto é a pesquisa científica e a pós-graduação?
Podemos olhar para o exemplo da China, com o olhar científico adequado e com a distância necessária. A China passa de um modelo praticamente medieval, do século passado, para se transformar em um polo de ciência e tecnologia. Não existe país no mundo que tenha crescido tanto na sua produção e qualidade científica. É um país que passa de um sistema muito pobre, e que até hoje enfrenta muitos problemas, para um modelo que virou exemplo. Acho que nós temos de olhar para esses exemplos internacionais, e não só para os Estados Unidos, que é um país tradicionalmente rico, assim como a Europa, que tirou muita riqueza de outros países. Nós não temos o hábito de olhar lateralmente. O Brasil colabora pouco com seus vizinhos, com a América Latina. A Argentina e o Chile têm pesquisa de altíssima qualidade. Lembrando que esses dois países têm prêmios Nobel, e nós ainda não chegamos lá. Precisamos ter nosso trabalho cientificamente reconhecido por uma comunidade internacional, não só de ter prêmios, isso é importante.