Diretor da Kaos Pilot, escola dinamarquesa pioneira no desenvolvimento da criatividade, Christer Windelov-Lidzélius esteve em Porto Alegre recentemente para ministrar uma palestra na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Com o tema Criatividade para Liderar a Transformação na Educação, o encontro propôs reflexões sobre as mudanças no perfil dos alunos e o papel social das instituições de ensino. Nesta entrevista, Lidzélius defende que a criatividade é fundamental para estimular transformações na educação, e que ela só é possível quando damos mais espaço para a experimentação e para os erros. Para ele, a coragem criativa é natural do ser humano, mas, após a infância, tende a ser perdida, pois se é ensinado a ser de uma maneira determinada. Para recuperá-la, é menos importante oferecer novas ferramentas, e mais “retirar” aquilo que a bloqueia.
Você estuda criatividade e educação. O que as duas coisas têm em comum?
Trabalho focado na importância da criatividade. Tento promover uma ideia de como moldamos e como fomentamos a criatividade na educação. O que experimentamos muito, quando se trata de Ensino Superior, é um movimento de compliance, em que você deve fazer certas coisas de uma certa maneira. Acaba tornando-se mais um procedimento, e isso não é útil para promover a criatividade. Na verdade, é o oposto. Compliance (“conformidade”, em inglês) significa que você obedece às regras e faz isso de certo modo olhando para a eficiência. Quão bem fazemos o que decidimos fazer? Quando se trata de criatividade, precisamos ter mais experimentação. Precisamos ter uma taxa maior de falhas. Precisamos mergulhar nosso corpo, mente e alma naquilo que tentamos realizar.
A criatividade precisa de espaço para existir?
De fato, a criatividade não vem sozinha. Nascemos criativos, mas, ao longo do caminho, somos podados. Tiramos isso da equação. Nós retiramos a criatividade de nossos processos futuros, pelo menos no Ensino Superior. E, para que a criatividade aconteça, depende mais de um envolvimento ativo do que de tomar uma pílula e, de repente, se tornar mais criativo. É um processo.
Os adultos perdem a criatividade? É mais fácil trabalhá-la com crianças?
As crianças nascem naturalmente criativas. Qualquer pessoa que tenha filhos já viu como eles resolvem problemas ou têm ideias que simplesmente não são possíveis. A criatividade faz parte da nossa humanidade. Somos, por definição, criativos. Mas acho que o que acontece com a educação – e isso não é apenas uma crítica à educação – é que aprendemos a pensar de uma certa maneira. E isso não tem sido útil para a criatividade. A criatividade tem sido muito útil para muitas outras coisas, como o pensamento analítico, a maneira de fazer as coisas mais rápido, mais barato etc. Mas não para de fato pensar de uma forma nova. E acho que precisamos equilibrar isso melhor, daqui para a frente.
Como fazemos isso?
Há muitos bons caminhos a seguir. Quando dou palestras, as pessoas me perguntam: qual é a sua experiência? Muitas vezes, há uma suposição de que adicionamos algo. Nós adicionamos algo em você e, então, você se torna mais criativo. Na minha experiência, trata-se mais de tirarmos as coisas que nos bloqueiam. Não necessariamente eu te darei novos conhecimentos ou uma nova ferramenta. A questão é jogar fora o que te impede de pensar de uma forma mais criativa. Quando você era criança, não tinha tantas restrições. Nós aprendemos as restrições. Eu não me atrevo a contar a ideia que tive porque podem pensar que sou um idiota. Então, prefiro não falar nada. Mas a criatividade é um processo colaborativo, então, quando digo algo estúpido, querendo ou não, seu cérebro reage. E isso cria uma nova conexão. Esse tipo de input-output é muito importante quando trabalhamos com criatividade.
A questão é jogar fora o que te impede de pensar de uma forma mais criativa. Quando você era criança, não tinha tantas restrições. Nós aprendemos as restrições.
Dizer coisas estúpidas abre espaço para a criatividade?
Faz parte do processo correr o risco de fazer e dizer coisas que não são boas. Mas, de fato, não podemos correr por aí só dizendo coisas idiotas. Em um ponto, precisamos direcionar nossa criatividade. Além disso, quando somos adultos, muitas vezes ouvimos que precisamos de mais pessoas criativas e que solucionem problemas. A criatividade não ajuda só na resolução de um problema, mas na criação de um problema. No entendimento amplo do problema. Para mim, é um yin-yang: criatividade e resolução de problemas andam de mãos dadas.
Como funciona o Kaos Pilot? Qual é a metodologia da escola?
Temos muitas diferentes. Você pode dividir entre técnicas, metodologias, teorias e talvez estruturas. Depende um pouco de como você quer ver isso. Nossa crença fundamental é de que todos são criativos, completos e cheios de recursos. Trabalhamos com as pessoas dessa forma, com base em certas teorias. Uma é em torno da colaboração, do esforço colaborativo que produz criatividade. Outra teoria é aplicada em como você trabalha com problemas. Uma terceira envolve a aplicação mais direta dessa criatividade. É quando você detalha o que criou e foca em técnicas específicas, que algumas pessoas chamam de brainstorming. Nesse ponto, a ideia é sempre trabalharmos com problemas e desafios reais, para os quais não sabemos as respostas.
Os alunos trazem esses problemas e desafios?
Sim. Cada aluno participa de algo entre sete e 12 projetos, com os quais trabalha ao longo de três anos. Esses projetos não têm uma única solução correta. Todos os estudantes têm um cliente, alguém que tem esse problema e para quem a questão é realmente importante. Por exemplo, quando os candidatos se inscreveram na escola neste ano, eles tinham que resolver um problema. Havia dois desafios que eles poderiam escolher. Um foi trazido por um representante da prefeitura: “Temos muitos refugiados da guerra na Ucrânia. Como podemos encontrar moradia e espaço para essas pessoas?”. Não sabemos qual é a solução certa. Podemos ter ideias. Os alunos são vinculados a esse problema, que é real, entendem a sua importância e pensam no que fazer a respeito. Aí, cabe a eles combinar sua criatividade com alguma pesquisa e alguma análise para chegar a uma solução. Nosso principal objetivo, na escola, é nos tornarmos criativos fazendo um trabalho criativo.
Como fazer projetos e trabalhar a criatividade com pessoas que, às vezes, vêm de realidades e áreas de conhecimento muito diferentes?
Isso também é uma coisa cultural. É muito verdade que algumas pessoas que ingressam na escola vêm de culturas não tão extrovertidas, que talvez sejam indivíduos mais reservados. Talvez eles tenham aprendido que precisam se comportar dessa forma quando falam com um professor. Certo. Mas tentamos estabelecer um contrato psicológico segundo o qual, nesta escola, é realmente importante que tenhamos conversas sinceras que busquem melhorar a nós mesmos e aos outros por meio delas. E é regra básica em nossa cultura escolar entender que não existe uma ótima ou uma má ideia. Vou dar um exemplo muito concreto. Todo ano, eu faço uma palestra para os meus professores, meus colegas. Porque os alunos vão se envolver em projetos, e, quando você trabalha em uma escola, pode já ter acompanhado aquele tipo de problema que eles querem resolver, ou o projeto que eles querem fazer, em outras ocasiões. Mas nós, como escola, não vamos matar os sonhos dos alunos. Você não tem permissão para dizer isso. O que você pode dizer é algo como: “Já vimos esse projeto que você quer fazer aqui anteriormente, e você precisa saber que muitas pessoas não conseguiram. Talvez você consiga. Talvez você vá encontrar uma solução para esse projeto”. Isso constrói o que se pode chamar de “coragem criativa”. A sua escola pode não estar te apoiando cegamente, mas, se você sente que a escola apoia as suas ideias e gostaria que você tivesse sucesso, você tende a se envolver mais em experimentações, em testar certas coisas. E, com isso, há uma probabilidade maior de que a ideia realmente acabe sendo boa. Contrariamente a isso, se você vem com uma ideia pra mim e eu digo que é algo estúpido, que “você está perdendo o seu tempo”, as chances de você voltar 20 minutos depois e dizer que tem outra ideia são muito baixas. A crítica deve existir, mas é preciso que seja amorosa.
Toda ideia é boa?
Sim, até que se prove o contrário. Mas uma ideia que se mantém apenas como uma ideia não é uma boa ideia. Ela precisa ter algum tipo de aplicação. Não pode ser apenas uma conversa teórica. Você precisa ver se funciona. Esse é o tipo de negócio em que estamos.
É possível fazer isso em aulas regulares?
Esta é uma ótima pergunta. Muitas vezes, quando falo sobre esse assunto com pessoas do Ensino Superior, elas costumam dizer: “Bem, é fácil para você, porque você administra esse tipo de escola que tem poucos alunos e na qual você pode selecionar seus professores”. Isso pode ser verdade, mas também é uma desculpa para não fazer nada. Pense na sua jornada educacional. Você tinha um bom professor, que o ajudou a pensar de maneira diferente sobre a vida, que talvez tenha levado você a escolher a profissão que você escolheu. Alguns são bons em coisas diferentes, mas todos devem ter a mesma intenção, que é ajudar o aluno a ser uma pessoa melhor. É que talvez precisemos pensar em como treinamos nossos professores. A formação de professores é onde a transformação deve começar.
Aprender fazendo talvez não seja a resposta para todo tipo de educação, mas agrega valor a toda a educação.
A formação dos professores é um problema global?
Penso que sim. Você pode ser um professor muito criativo e ter muitas ideias sobre como tornar seus alunos fantásticos, mas, muitas vezes, você se afoga em políticas ou regras educacionais.
A Kaos Pilot trabalha com conceitos das chamadas metodologias ativas de aprendizado, algo que tem se debatido há relativamente pouco tempo, mas implementado há 30 anos pela sua escola.
A ironia é que a teoria da ação, ou de aprender fazendo, tem cem anos. Traz princípios ainda mais antigos, mas (John) Dewey sistematizou essa abordagem há cem anos. Parece que, quando ele falou sobre isso, ninguém realmente pensou a respeito. E nós promovemos isso desde o primeiro dia. Aprender fazendo talvez não seja a resposta para todo tipo de educação, mas agrega valor a toda a educação. Talvez te leve mais longe, porque você aprende a fazer coisas que nunca fez antes e ninguém lhe ensinou como fazer. Quando alguém lhe disser “por favor, faça algo relativo ao branding da nossa empresa”, e você responder “eu nem sei o que é branding”, receberá como resposta: “Tenho certeza de que você pode descobrir”. É claro que, se eu precisar de uma cirurgia, prefiro que o médico já tenha feito essa operação antes. Então talvez essa premissa não se aplique a todos os campos, mas acredito que possa ser útil sempre.
Metodologias como a do Kaos Pilot podem ser aplicadas em países com menos recursos, como o Brasil? Como criar esse ambiente em uma escola pública, por exemplo?
Tenho certeza de que podem. Basta, é claro, ter o básico, comida e bebida, porque não é possível pensar quando se está com fome. É fácil falar sobre economia criativa quando você viaja de primeira classe. Mas acho que, quando se trata de educação, as sociedades menos privilegiadas têm ainda mais a ganhar, porque seus estudantes podem ver o valor de seu pensamento e criatividade. Você pode ver o exemplo da revolução educacional na Escandinávia, que começou na década de 1840, quando foi decidido por lei que todas as pessoas deveriam ir à escola. Mesmo os mais pobres tinham de cumprir essa lei, ou seja, os pais não podiam simplesmente dizer que o filho precisava trabalhar na fazenda, ou que a filha precisava casar etc. É claro que a aplicação dessa lei levou tempo. Meus avós só foram à escola por seis anos, e meu pai só estudou até os 13, porque odiava. Mas há histórias de todo o mundo segundo as quais pessoas vêm de origens muito humildes, conhecem um professor fantástico e, de repente, amam filosofia. Ou que conseguem, a partir da educação, encontrar respostas específicas para questões de suas comunidades – em uma comunidade agrícola, por exemplo, aprender novos métodos para obter uma colheita melhor. Kierkegaard, talvez o mais famoso filósofo dinamarquês, escreveu que a chave para uma boa educação é conhecer as pessoas onde elas estão. E, muitas vezes, penso que a educação não faz isso. Se você for à escola e sofrer de dislexia, ou só puder ficar ali por poucas horas, ou estiver preocupado com os cavalos, pode não conseguir se concentrar em matemática. Tornar o aluno interessado depende do aluno ou do professor? Eu diria que são os dois, mas, quando as pessoas são mais jovens, acho que deveria depender mais do professor. Então: como posso trazer a educação para você, em vez de você vir para a educação? Às vezes, a falha na educação é sua relevância para os alunos, ou eles não conseguirem encontrar motivação. Talvez parte disso seja porque realmente não entendemos de onde vêm esses jovens e o que é interessante para eles. E se você não fizer isso, realmente não importa como você os desafia. É como jogar futebol e você constantemente chutar a bola na direção errada. É nesse sentido que acho que pode haver algo na política e no treinamento de professores para equipá-los melhor. Os professores foram treinados por alguém, em um sistema regido politicamente.
Você pode pode ser o que quiser, pode escolher uma direção diferente para sua carreira. A criatividade ajuda você a identificar o que quer ser e a descobrir como chegar lá.
Muitos especialistas apontam a tendência de não termos mais uma única profissão ao longo da nossa vida. O desenvolvimento da criatividade ajuda nesse cenário?
Com certeza. E não se trata apenas de idade, e sim de mentalidade. Muitas vezes, se você for treinado com um paradigma antigo, essa transição pode ser muito difícil. Sempre há indivíduos que não têm problema. Mas, se você olhar para a massa maior, este é um desafio. Certas indústrias estão desaparecendo dos países escandinavos. O que acontece com quem trabalha com isso? A resposta geralmente é o retreinamento. Precisamos retreinar essas pessoas. Quando comecei a trabalhar, nos anos 1980 e 90, as pessoas não estavam muito interessadas em retreinar. Fizeram isso porque tiveram de fazer, não porque quiseram. Isso mudou. Agora, percebo que os jovens são mais fluidos em suas identidades para certas profissões. E há um novo tipo de experiência especificamente após a covid-19. Ainda não processamos totalmente o que isso significa, porque há mudança na dinâmica entre os jovens e como eles se sentem sobre sua vida e seu futuro. O que me parece claro é que muitas pessoas acham libertador poder escolher sua identidade. Posso ser jornalista e também posso ser designer, em vez de dizer que, não, sou apenas um ou outro. Obviamente, há certas pessoas que ficam muito felizes em dizer: “Sou médico. Isso é o que sou, nunca poderei ser outra coisa”. Mas, para muitas pessoas, é libertador. É claro que, quando as pessoas fazem o Ensino Superior, sua escolha tem consequências. Se você estuda Engenharia, com que frequência pode mudar de curso antes que comece a se prejudicar economicamente? Portanto, há um limite para quantas coisas você pode fazer. Também é preciso humildade nesse processo. Nesse sentido, tentamos dizer aos nossos alunos que eles podem se tornar o que quiserem, mas, para isso, precisam começar a aprender algo a respeito. A criatividade desempenha um papel em muitos níveis diferentes nisso. Um deles é este princípio: você pode ser o que quiser, pode escolher uma direção diferente para sua carreira. A criatividade ajuda você a identificar o que quer ser e a descobrir como chegar lá.
Você pode imaginar o futuro.
Sim, e a criatividade está intimamente ligada à imaginação.
As novas gerações estão mais abertas para criar um modelo criativo de liderança, por exemplo?
Acho que as novas gerações exigem um novo tipo de liderança. Elas não aceitam o tipo de liderança com a qual eu cresci. Muitas vezes, pelo menos na Escandinávia, os jovens entendem que não saber é uma qualidade, e eles assumem que nenhuma experiência não significa que você não tem voz, enquanto a minha geração dizia que, se você não tem nada a oferecer, nenhum conhecimento ou experiência, talvez você devesse calar a boca. Esse não é mais o caso. Há uma suposição de que todas as vozes precisam ser ouvidas. Há uma expectativa de que os líderes farão o possível para me ajudar. Na minha experiência, as gerações jovens geralmente requerem uma liderança que seja muito democrática, que precisa ser inclusiva e também muito solidária. Quando comecei a trabalhar, se você não sabia como fazer, você precisava descobrir. Hoje não é assim. As empresas fazem uma tonelada de coisas para ajudar os mais novos a prosperar e permanecer nessas empresas. Em parte, pelo menos em nossos países, é porque há pouco desemprego e o talento é escasso. Portanto, se você tem um jovem talentoso que deseja ingressar na sua empresa, é melhor garantir que essa pessoa não saia, porque ela terá outras oportunidades. No minuto em que você contratou essa pessoa, seu valor aumentou, porque qualquer outra empresa pensará: “Ah, eles a contrataram, talvez devêssemos fazer o mesmo”. Portanto, acho que as questões de liderança e do que é exigido dos líderes daqui para a frente são extremamente importantes, principalmente na educação, mas também em todos os aspectos da vida. O papel principal da educação, nesse sentido, é o de ajudar as pessoas com a autoliderança. Como os alunos conduzem sua própria educação? Como eles criam sua própria educação? Como realizam seus próprios valores e visões? A educação não pode fazer isso por eles, mas pode criar as condições de terem autonomia.