Com universidades de mais de 50 anos de existência em todas as regiões, o Rio Grande do Sul tem registrado uma transformação intensa, na última década, na sua rede privada de graduações. Fenômenos como a ampliação de matrículas no ensino a distância (EAD) e a redução de bolsas do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) e do Programa Universidade para Todos (Prouni) são alguns dos elementos que têm levado instituições de Ensino Superior (IES) tradicionais a pedirem recuperação judicial, serem vendidas para grandes grupos educacionais e até mesmo a fecharem as portas.
Segundo dados do Censo da Educação Superior analisados pela reportagem de GZH, até 2014, o cenário era de ampliação do número de matrículas e faculdades particulares no Rio Grande do Sul – naquele ano, a modalidade presencial chegou a um pico de 102.920 pessoas ingressando em graduações em um único ano, o que fez com que, em 2015, fosse registrada a maior quantidade de estabelecimentos com atividades presenciais da história do Estado: 115, no total.
Desde então, a curva foi descendente nesse formato de ensino, especialmente no que se refere ao número de ingressantes. Em paralelo, os números relativos ao EAD apresentaram crescimentos significativos. Entre 2010 e 2021 – dados mais recentes analisados no Censo da Educação Superior, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) –, a quantidade de alunos iniciando cursos de graduação em instituições privadas presenciais caiu pela metade, enquanto a de estudantes no formato EAD privado quadriplicou.
No Rio Grande do Sul, estabelecimentos tradicionais têm dado sinais preocupantes. A Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), por exemplo, encerrou, no ano passado, 12 de seus 26 programas de pós-graduação. A Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) descontinuou pelo menos um: o de Serviço Social, que alcançou nota máxima na avaliação mais recente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Ambas integram o grupo de 14 universidades comunitárias existentes no Estado, que têm como principal característica o fato de, apesar de não serem públicas, não terem fins lucrativos — todo o lucro deve ser revertido em projetos de ensino, pesquisa e extensão. Isso faz com que essas instituições costumem ter relações próximas com as comunidades de seus entornos, que se beneficiam, por exemplo, de capacitações de professores das redes municipais e estadual de ensino, atendimento gratuito ou a baixo custo em áreas como psicologia, fisioterapia e odontologia e serviços médicos em postos e hospitais.
O Consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas (Comung) não nega as dificuldades pelas quais as instituições têm passado nos últimos anos. Pelo contrário: a entidade tem promovido debates junto ao Executivo e ao Legislativo sobre o papel desses estabelecimentos na sociedade e sobre como o poder público pode utilizar, no desenvolvimento do RS, a estrutura física das comunitárias, normalmente muito ampla, e a capacidade intelectual gerada pelo investimento em pesquisas.
Fies
Segundo o presidente do Comung, Rafael Frederico Henn, a redução no número de ingressantes, sentida a partir de 2015, decorreu de mudanças no regulamento do Fies, que, diante de um alto registro de inadimplência, passou a limitar a quantidade de financiamentos estudantis concedidos. Era necessário, por exemplo, fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e tirar uma nota mínima nele, e os estabelecimentos de ensino, para oferecer as bolsas, deveriam ter, no mínimo, nota 3 no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade). A renda familiar máxima foi reduzida de 20 para 2,5 salários mínimos por pessoa, e os juros dos contratos foram reajustados para de 3,4% para 6,5% anuais. Outro fator importante foi a crise financeira que assolou o Brasil na época.
— As comunitárias precisaram começar a reduzir suas estruturas de custo, especialmente com professores e técnicos. Agora, vem acontecendo um pequeno aumento na procura, e as universidades têm se reinventado. A maioria delas, como a Unisc (Universidade de Santa Cruz do Sul, da qual Henn é reitor), vem buscando outras fontes de receita, como a prestação de serviços, trabalhos na inovação, o empreendedorismo. Cada instituição tem competências distintas, que podem trazer benefícios para as comunidades — destaca o presidente do Comung.
Com frequência, a entidade tem viajado a Brasília, para debater, por exemplo, mudanças no Fies. Em um dos primeiros encontros com o ministro da Educação, Camilo Santana, ficou definido que um grupo de trabalho seria criado para analisar a atual regulamentação do programa, com prazo de 120 dias, que se encerram em agosto. A expectativa do Comung é de que, em breve, haja novidades sobre a possibilidade de alterações no fundo de financiamento, que, de 2010 a 2014, foi responsável por um crescimento nos estabelecimentos privados de Ensino Superior no Brasil. Em entrevistas, o gestor do Ministério da Educação (MEC) tem acenado com a perspectiva de que o Fies cubra até 100% do valor das mensalidades, o que hoje não acontece, para que volte a ter a finalidade social que foi pensado para ter.
Outro ponto reivindicado pelos reitores das comunitárias junto ao governo federal é que haja um controle maior da qualidade dos cursos EAD.
— Uma das formas de fazer com que não haja um aumento significativo de faculdades de baixa qualidade é ter uma legislação e uma avaliação mais rigorosas do EAD. Nós, das universidades comunitárias, não abrimos mão da qualidade do ensino, e não é possível manter essa qualidade oferecendo mensalidades de R$ 49 por mês, com alguns desses estabelecimentos oferecem. Três salas de aula, às vezes, já configuram um polo de ensino a distância. Não aceitamos isso — defende Henn.
EAD
Presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep) e vice-presidente do Sindicato do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinepe/RS), Bruno Eizerik ressalta que a crise, que já existia, piorou com a pandemia, quando muitos estudantes migraram do modelo presencial para o EAD, o que fragilizou ainda mais as instituições que já estavam frágeis. Dois exemplos são a Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), que passa por um plano de recuperação judicial, e o Centro Universitário Metodista IPA, em Porto Alegre, que, com 100 anos de existência, fechou as portas neste mês.
— Temos uma competição feroz por preços no nosso setor. Se tem alguém cobrando R$ 150 por mês em uma graduação, ele está vendo mercado nisso, mas está acabando com as instituições presenciais. Nem todo EAD é ruim e nem todo presencial é bom, mas a competição predatória no próprio setor atrapalha — avalia Eizerik.
O presidente do Fenep defende que o investimento no Fies seja retomado pelo governo, e que ele volte a ter um viés mais educacional e social, que, no futuro, trará também ganho econômico, já que, como consequência, aumentará a renda do egresso e da sua família, gerando, assim, riqueza para o país.
— O Fies deveria ser um financiamento a fundo perdido, porque o governo está investindo no cidadão, que vai dar um retorno para ele. Esse retorno pode ser, por exemplo, por meio de serviços: que o aluno formado em Engenharia preste serviços nessa área, ou o médico, ou advogado, por exemplo. Em vez disso, temos uma redução no Fies: se, em 2013, foram 700 mil financiamentos, em 2023, se 30 mil receberem, será muito — critica Eizerik.
A redução na oferta de bolsas pelo Prouni também tem sido notada pelas IES privadas. Conforme o Mapa do Ensino Superior, feito pelo Semesp, entidade que representa mantenedoras de Ensino Superior do Brasil, a participação desse programa no rol de possibilidades de financiamentos não reembolsáveis vem caindo desde 2015. Naquele ano, 7,5% das bolsas oferecidas pelas faculdades particulares eram do Prouni. Em 2021, eram 2,6%. As instituições têm expectativa de que, nos próximos anos, o programa volte a crescer.