Pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) no Rio de Janeiro e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) em Brasília, o doutor em Economia Leonardo Monastério, 53 anos, é entusiasta dos impactos positivos do avanço da inteligência artificial (IA). Natural do Rio, ele fez mestrado em Economia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e foi professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) de 1995 a 2008. Em entrevista a GZH, Monastério defende que modelos de linguagem como o ChatGPT aumentarão a produtividade e beneficiarão, de forma limitada, a economia – ainda que gerem desemprego entre quem não se adaptar às novidades. Leia, a seguir, a conversa realizada por chamada de vídeo.
Você esteve até há pouco na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Que pesquisa conduziu lá?
Trabalhei em uma pesquisa para estimar o impacto de novas tecnologias no Ensino Superior federal do Brasil, e é lá em San Francisco que parte das tecnologias como o ChatGPT são desenvolvidas. Como elas poderiam aumentar o número de alunos e a produtividade em geral? Sempre existiu o discurso de que toda a nova tecnologia, do correio ao rádio, mudaria tudo. Mas, na educação, apesar de toda mudança tecnológica, pouco mudou desde o começo da universidade, tirando o surgimento do livro. Talvez desta vez será diferente. Nossa estimativa é de 13% de ganho de produtividade no ensino público federal. Ou seja, das tarefas que o professor faz, 13% poderiam ser impactadas pela tecnologia. Para o pessoal administrativo, tirando quem trabalha com saúde, o ganho é de 30% de produtividade. São coisas como fazer uma ata, por exemplo. O pessoal do Ensino Superior foi para o topo de ocupações que serão atingidas no bom sentido, sem serem extintas. Serão profissionais cujas tarefas podem ser substituídas e, em parte, complementadas por esses novos modelos. Não é improvável que, em cinco anos, haja um tutor individual que saberá o que você sabe ou não para complementar a aula tradicional. Hoje, você pode ter aula com um bom professor, mas ele não consegue calibrar com detalhe o seu conhecimento prévio.
Não é improvável que, em cinco anos, haja um tutor individual que saberá o que você sabe ou não para complementar uma aula. Hoje, você pode ter um bom professor, mas ele não consegue calibrar com detalhe o seu conhecimento prévio.
Você também participou de uma pesquisa mostrando que um a cada cinco funcionários públicos civis do governo federal têm ocupações com “elevado potencial” de terem tarefas substituídas pelas máquinas. Você pode explicar os resultados?
No fundo, ocupação não existe, o que existe são conjuntos de tarefas que as pessoas fazem. E essas tarefas são de vários tipos, algumas mais fáceis de serem automatizadas e outras, não. Um advogado escreve petições e busca casos anteriores, o que já pode ser automatizado. Mas reunir-se com clientes não pode. Buscamos, então, quais ocupações, dentro do setor público, estariam mais sujeitas a serem substituídas ou complementadas pela tecnologia. Muito do setor público não será atingido porque sempre precisaremos de médico e enfermeiro. Mas, em atividades administrativas, há bastante espaço para avançar com a digitalização de serviços públicos. Talvez você não precise mais de alguém preenchendo, transcrevendo e digitalizando formulário escrito manualmente por alguém. O próprio cidadão pode fazer isso sozinho. Por outro lado, haverá um tanto da população sem acesso aos recursos digitais. Você poderá ter uma mudança no perfil da mão de obra do setor público, mas seguiremos precisando de serviços com interação pessoal e cognitiva, tipicamente humana. Faço sempre o paralelo com o agente de viagem, que existia antigamente para comprar passagem aérea. Hoje, a gente aprendeu a ir no site emitir passagem, mas parte da população continua fora disso, e aí empresas aéreas continuam oferecendo balcão para a pessoa comprar. Para quem é muito rico e quer viagem moldada a seu gosto, monta-se o pacote e a reserva do hotel. O mesmo será em serviços públicos: por mais que se automatize, você precisará de um servidor público para traduzir necessidades das pessoas.
No geral, diz-se que tarefas mais repetitivas serão substituídas. Quais profissões correm mais risco de serem substituídas?
Até a outubro de 2022 (quando foi lançado o ChatGPT), o consenso era de que tarefas manuais e repetitivas já haviam sido substituídas: o operário pelo robô, o caixa do banco pelo caixa eletrônico. E se achava que tarefas cognitivas não repetitivas e especialmente humanas seriam as últimas a serem substituídas. Mas a IA teve um salto, e muito do que se achava que era especialmente humano, como trabalhar com texto e gerar imagem, passou a ser feito. Com o texto (no ChatGPT), o impacto foi maior, porque viu-se que a tecnologia faz essa atividade. Não vai substituir o melhor escritor, o melhor economista, o melhor pesquisador, mas é uma mão na roda para tornar mais produtivo quem está nessas ocupações. O marceneiro que fazia a cadeira sem graça foi substituído há muito tempo pela máquina da TokStok. Mas o marceneiro muito bom continua sendo demandado e bem pago – e hoje usa a tecnologia a seu favor. Pode ser que um tanto de empregos termine, mas boa parte das pessoas terá a tecnologia a seu favor, aumentando a produtividade.
O que preciso fazer agora para lidar com essas mudanças?
Você não vai perder o emprego para a IA, mas para quem usa a IA melhor do que você. No passado, achava-se que planilhas tirariam o emprego do contador, e hoje você continua tendo contadores, mas que usam recursos da tecnologia. A regra geral é: aprenda a utilizar a tecnologia, mas desenvolva habilidades naquilo que a tecnologia ainda não pode fazer e naquilo que é especialmente humano. São habilidades de relacionamento interpessoal, de trabalhar em grupo e de perceber sentimentos, nas quais a tecnologia não é boa – ao menos no horizonte razoável de tempo. Por que agora está todo mundo impactado com esses modelos de linguagem? É que chegou perto da gente. Antes, era só com o operário fabril, mas agora é perto de todo mundo que conhecemos. Para o advogado, os sistemas já escrevem texto, mas pensar em argumento e lidar com cliente, não. Precisa focar nas áreas cognitivamente sofisticadas que o modelo ainda não chegou. Tem um pessoal que usa o ChatGPT para fazer (psico) análise. Bom, ter um humano traz uma diferença qualitativa muito grande.
A inteligência artificial, então, pode ser boa para a economia como um todo?
Não tenho dúvida, sou terrivelmente otimista nisso. Toda a história da tecnologia mostra que não haverá desemprego em massa, nisso podemos ficar muito tranquilos. Agora, pensando para o Brasil, a IA não vai resolver os problemas da economia brasileira. Hoje, 40% da nossa economia é informal. Desta vez, o impacto da IA é grande porque o vemos em todo mundo que conhecemos. Nossas ocupações estão sendo impactadas. Mas um tanto de emprego não estará suscetível aos ganhos de produtividade. O guardador de carro continuará sendo guardador de carro, sem sofrer impacto algum. Haverá um ganho de produtividade, mas isso não vai, em horizonte razoável de tempo, salvar a economia brasileira. Temos uma visão enviesada pelas bolhas em que vivemos. É claro que todo mundo vai se beneficiar porque, ao longo do tempo, novidades surgirão. Novos fármacos, por exemplo. Mas pense na internet: ela foi sensacional, só que, em muitas profissões, o benefício foi pequeno. Por mais benéfico que seja, não dá para achar que viveremos rapidamente em um paraíso. Isso não quer dizer que, em certas atividades e certos grupos, o impacto não seja bom. Na educação, o impacto pode ser muito bom, especialmente no Ensino Superior. Isso, claro, vai resultar em benefício para a economia brasileira porque você terá uma mão de obra melhor qualificada, o que é bom no longo prazo. Mas não conte com isso para salvar o Brasil. Essa é uma discussão para país de rico, onde o perfil de mão de obra tem mais ocupações a serem beneficiadas.
Esse processo (o desemprego gerado com a automação) vai se repetir agora, mas para pessoas mais próximas do topo. Não pense no milionário, mas na classe média alta e nos trabalhos com curso superior e que atuam na frente de uma tela. O que pode acontecer é essas pessoas perderem emprego e migrarem para outras atividades.
Se partirmos do pressuposto de que o benefício será maior para países com economia baseada em profissões ligadas à tecnologia, não corremos o risco de ficar mais para trás, na comparação com países baseados em profissionais informais?
Pode ser. Os efeitos são difíceis de antecipar. Concordo que o impacto da inovação poderá ser maior nos países mais ricos. Pode acontecer de a desigualdade ser maior. Mas demora. Economistas já estudaram o impacto da eletricidade na economia, e demorou muito para a produtividade gerada pela eletricidade ser observada. Fábricas tiveram que mudar de design, precisou-se substituir um tanto de capital, e isso demorou décadas. Pode ser que demore um tanto para a economia como um todo se beneficiar da IA. Agora, pode gerar desemprego dentro de uma ocupação para parte dos ocupados. Isso realmente foi um problema para operários com a automação: você desempregou um tanto, e os caras tiveram que ir para outras atividades. Esse processo vai se repetir agora, mas para pessoas mais próximas do topo. Não pense no milionário, mas na classe média alta e nos trabalhos com curso superior e que atuam na frente de uma tela. O que pode acontecer é essas pessoas perderem emprego e migrarem para outras atividades. Elas sairão perdendo, porém, como já estavam no topo, isso contribuirá para a redução da desigualdade. Não é aquela redução maravilhosa que a gente gostaria, quando os pobres melhoram; é o relativamente rico que piora. O designer muito bom seguirá porque usará a nova tecnologia no trabalho. Mas o designer que não era grande coisa será substituído pela tecnologia que também fará um trabalho que não é grande coisa. Esse cara precisará fazer outra coisa da vida.
No ano passado, você tuitou que ligou um computador Mac em 1985, usou o Google pela primeira vez em 1999, e nenhuma dessas inovações o deixou tão impressionado quanto o ChatGPT. Por quê?
É a ideia de ter um salto tecnológico em uma atividade muito próxima do que a gente faz. E vale lembrar: estamos usando a pior versão dessa tecnologia. Tudo o que virá a partir de agora será melhor. É aquela sensação da frase do (escritor) Arthur Clark: toda tecnologia suficientemente desenvolvida se parece com mágica. Parece mágica porque não se esperava um salto assim. No meu dia a dia, tenho um monitor com o ChatGPT funcionando para todo tipo de coisa. O ChatGPT conseguiu 57 milhões de usuários em um mês. O TikTok demorou nove meses, e o Instagram, dois anos e meio. É impressionante.
O mundo já passou por diversas revoluções no trabalho em função do desenvolvimento da tecnologia. Chegamos a um novo ponto de virada? Será como a vinda da eletricidade?
Tem quem acredite na ideia de singularidade, de que uma hora ficaremos tão produtivos a ponto de rolarem milhões de inovações. Acho um cenário de ficção científica. O cenário que imagino é aquele no qual a inovação com progresso tecnológico sensacional continua. O século 20 foi fantástico, não percebemos a velocidade do avanço, mas houve quem presenciou o voo do Santos Dumont e do (voo supersônico) Concorde. Da mesma forma, haverá coisas absolutamente sensacionais que presenciaremos, mesmo sem imaginar um cenário no qual todos serão felizes porque descobriremos a cura do câncer ou porque resolveremos o problema energético. Não consigo imaginar isso, mas sim a velocidade de progresso tecnológico do século 20, o que já é um cenário muito bom. Estou fora do otimismo tecnológico muito exagerado, mas me empolgo com a velocidade que teremos, sim.
O ChatGPT está sendo usado, por muitas pessoas, assim como o novo Google. Pergunta-se sobre receitas, dicas de lugares aonde ir, estatísticas da realidade. O que você acha desses usos?
Totalmente equivocados. Não se trata de um oráculo ou do Google. Bom, as máquinas aprendem, mas a gente aprende a usar as máquinas também. Hoje, sabemos que a Wikipédia é boa para algumas coisas e, para outras, não. A lista de coisas para as quais o ChatGPT não serve é imensa. Os usos que faço são como de um estagiário muito bem intencionado, mas que não gosta de dizer “não”. O ChatpGPT tenta responder de qualquer jeito e faz uns erros como um estagiário. Entretanto, essa tecnologia escreve carta para o condomínio quando quero reclamar de algo e redige documentos que não tenho paciência de escrever. Incentivo meus alunos a usarem o ChatGPT. O que digo para eles é: use para aquilo que você tem capacidade de checar se está bom ou ruim. Se não, não use. Pesquisadores compararam quem usou o ChatGPT com quem não usou, e o resultado é muito bom para quem tem conhecimento intermediário. Para quem não sabe nada, ele vai dizer qualquer lixo e a pessoa vai aceitar.
Tivemos, em março, uma carta assinada por nomes ligados a gigantes da indústria de tecnologia, como Twitter e Apple, pedindo uma pausa no desenvolvimento de programas de IA mais avançados do que o ChatGPT. Eles citam “profundos riscos” para a sociedade e a humanidade. O que você achou desse alerta?
Primeiramente, achei hipócrita. O Elon Musk assinou, e os carros dele não respeitam nem as regras que já existem, o modo piloto-automático do Tesla anda mais rápido do que a velocidade das vias. Estavam na carta todos os líderes da indústria, e é confortável para eles dizer que estão preocupadíssimos. Porque é uma forma de impedir a entrada de novos competidores. Acho que tem gente sinceramente preocupada, com bons argumentos. O que houve foi um um mix de defensores sinceros com gente que só quer mostrar que está preocupado, mas no fundo tem outros receios.
Então quais são os maiores riscos que você vê no avanço da IA?
Há quem traga a metáfora de que a IA avançará tanto que será como se um ET chegasse aqui. Como se uma nova espécie, mais desenvolvida, entrasse em contato com a gente. Quando há contatos de civilizações mais desenvolvidas com as menos desenvolvidas, geralmente quem é menos desenvolvido dança. Assim, a espécie humana teria risco existencial: a IA perceberia que o ser humano faz mal para o planeta, que a vida é um valor fundamental e que o melhor é destruir o humano para preservar o planeta. Acho isso um cenário de ficção científica. Defensores de colocar um freio dizem que é preciso fazer a inteligência artificial ter juízos morais próximos da humanidade. É um ponto. Mas quando vai chegar esse momento? As coisas acompanham umas as outras. Já houve mudanças no ChatGPT, que não recomenda mais que você largue a sua mulher. É um aprendizado. É claro que há questões éticas, mas dar um freio não me parece boa estratégia. Não nego questões éticas e legais – aliás, o arcabouço legal certamente não está pronto para lidar com tudo, como direito de propriedade. O algoritmo é treinado por textos e imagens de muita gente, incluindo artistas. Posso dizer que não quero meus textos para treinamento de algoritmo? Me parece razoável poder dizer que não. A questão da transparência de algoritmos e de potencializar preconceitos da sociedade, isso precisa ser discutido. Certamente o arcabouço não está pronto, assim como não estava pronto quando surgiu o jornal e a TV. Tem também a responsabilização: quando ele errar e tiver uma vítima, quem é o culpado? Mas a ideia de parar senão o mundo acabará me parece distante. Tem outros riscos humanos mais concretos. Inclusive, talvez a IA colabore para diminuir os riscos – ao elaborar uma vacina ainda mais rápido, por exemplo. Há vantagens que a IA pode trazer para evitar riscos existenciais para humanidade, e isso as pessoas não estão levando em conta.
O Google tem uma série de princípios que regem as pesquisas de inteligência artificial. Mas são princípios autoimpostos. Você acha que as pesquisas em IA deveriam ser regradas por leis?
Um tanto de restrição precisa ter, não dá para confiar só nos códigos éticos das empresas. Ter um consentimento informado dos usuários de que estão sendo parte de experimentos me parece razoável, porque essas empresas calibram o algoritmo. O Facebook já fez pesquisas para ver o comportamento dos usuários com exposição a uma notícia mais ou menos agressiva. A ideia de ser dono dos próprios dados tem espaço. Mas há uma pressa para fazer leis, e nem se sabe o que regulamentar. Um deputado do Parlamento Europeu falou que não podemos ficar na mão das grandes empresas, mas daí você pode ficar na mão dos deputados europeus. Será preciso alguma legislação, sim, só que há um furor para sair impondo restrições. Acho importante legislar sobre o que pode ser usado, quando pode ser usado e quem será remunerado. Mas achar que o legislador fará uma lei que abarcará tudo de relevante sem impedir a inovação me parece fantasia. Está tudo muito verde, não me parece razoável sair regulamentando, porque o risco é as grandes empresas comandarem a regulamentação com seus lobistas. O risco de captura regulatória é grande. É necessário regulamentar, mas precisa ir devagar.