Fazendo uso das redes sociais, especialmente o Instagram, o psiquiatra da infância e adolescência Thiago Rocha, 40 anos, busca auxiliar pais e mães em questões relacionadas aos desafios da parentalidade. Mestre e doutor em Psiquiatria e Ciências do Comportamento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o especialista atua como coordenador do Centro Especializado em Neurodesenvolvimento Infantil (Ceni) do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Na próxima quarta-feira (27), será responsável pela abertura da temporada do Escola de Pais 2023 (leia mais sobre o evento ao final desta entrevista), com uma palestra sobre saúde mental e medicalização na infância, abordando temas como Transtorno Opositor Desafiador (TOD) e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). A seguir, aborda o que tem levado crianças a necessitarem, cada vez mais, de atendimento psíquico.
Muitas pessoas comentam sobre uma percepção de aumento dos diagnósticos de transtornos como depressão, ansiedade e autismo entre crianças e adolescentes. Esse crescimento é real?
Sim. Não há dúvida nenhuma de que há um aumento do número de crianças sendo levadas para atendimento, e isso se deve a uma série de fatores. Um deles, que alguns estudos já mostram de maneira científica, é a própria pandemia. A crise sanitária e o isolamento tiveram uma série de repercussões na vida das crianças e das famílias, tanto do ponto de vista dos impactos diretos, eventualmente pela perda ou hospitalização de alguma pessoa próxima, mas também por todas as mudanças de rotinas, a quebra de vínculos familiares e de amizade, o fechamento de escolas, o processo de apreensão e medo que impactou tantas pessoas. Junto a isso, tivemos modificações de alguns aspectos da vida dessas crianças ao longo dos últimos anos. Um desses é a mudança da intensidade do uso de telas. O que acabou ocorrendo foi que muitas famílias tiveram e ainda têm dificuldade de reduzir essa exposição a telas, e isso também tem contribuído para uma série de consequências psicológicas e comportamentais para as crianças. Então, temos um cenário de modificações importantes do ponto de vista do ambiente onde as crianças estão crescendo, somados a uma divulgação de informação que nunca tínhamos tido até então na nossa história recente, que faz com que muitos pais fiquem apreensivos e acabem levando os filhos ao consultório para ter uma melhor investigação. Há, então, um aumento de diagnósticos. E parece, sim, haver um aumento real do sofrimento emocional. Mas ressalto que há casos que já existiam e que antes não eram identificados por pais e professores e que hoje estão sendo levados para os profissionais especializados, podendo ter acesso a um tratamento mais adequado.
O Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é uma dessas questões de saúde mental que têm sido citadas, com muitas pessoas compartilhando que enfrentam o problema. Você considera que há uma banalização do termo, com indivíduos se autodiagnosticando?
Podemos fazer um comparativo com o termo “ansiedade”. A ansiedade é uma manifestação, um sentimento, uma reação emocional natural do ser humano, mas que, a depender da intensidade, da frequência e do impacto na vida, vamos classificar como um transtorno. O uso da palavra ansiedade tem sido banalizado e acaba sendo traduzido como desde uma inquietação até um nível maior de preocupações, mas também até como o aumento de apetite. Então, existe uma banalização, e eu acho que essa é uma situação semelhante ao que está acontecendo com os termos “hiperatividade” e “desatenção”. Todos nós somos, em algum momento, desatentos. Todos nós podemos ter momentos mais inquietos ou agitados ou até hiperativos. Agora, o diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade exige critérios mínimos, com uma série de sintomas que estão acima do que a gente esperaria para aquela faixa etária. Então, pode sim estar ocorrendo uma banalização, mas acho que há também relação com a maior divulgação e externalização dessas sensações e o fato de as pessoas reconhecerem essas características nas suas vidas.
Diante do diagnóstico, o que é considerado para definir a indicação de medicamentos para crianças e adolescentes?
A primeira questão que sempre teremos de avaliar é se existe um diagnóstico. Em toda avaliação, precisamos responder se aquela situação que está sendo vivenciada pela criança e por sua família é algo fora do esperado para o desenvolvimento ou se aquilo é só uma manifestação natural da fase do desenvolvimento da criança. Uma vez realizado o diagnóstico, vamos identificar quais são as opções para ajudar a criança. Há situações em que temos de considerar estratégias mais amplas, antes de irmos para estratégias específicas. Isso vai desde uma revisão das rotinas, saber como estão o sono, a alimentação, as atividades físicas, os exercícios ao ar livre, a exposição às telas, e o quanto isso pode estar na base de muitas das dificuldades que estão sendo apresentadas. Isso é particularmente comum quando vemos situações de maior reatividade emocional, inquietação, maior tendência a conflito, maior dificuldade de seguir orientações e regras. A partir dessa avaliação, vamos conseguir considerar se ainda há indicação ou necessidade de algum tipo de ajuda especializada. E sempre, principalmente na infância e adolescência, a primeira linha de ação, depois dessas abordagens mais gerais, é a psicoterapia.
Quando a medicação é recomendada?
O uso de medicação vai ser restrito àquelas situações em que não se conseguiu ter uma redução dos sintomas e do impacto na qualidade de vida depois dessas medidas. As exceções são relacionadas às situações de maior intensidade, onde, por exemplo, percebemos que os sintomas estão prejudicando de maneira aguda a qualidade de vida, o relacionamento e até a autoestima da criança. Algumas crianças, em quadros ansiosos muito intensos, que têm dificuldade até de frequentar a terapia, podem se beneficiar de uma medicação fazendo uma ação conjunta, para que, inclusive, com uma redução da intensidade dessa ansiedade, possam ter um melhor aproveitamento da terapia. Um raciocínio parecido pode acontecer com crianças e adolescentes com quadro depressivo. Para algumas crianças com TDAH, o uso da medicação é uma opção terapêutica que precisamos considerar, tendo em vista que, nos estudos científicos que existem, a medicação se mostra um tratamento muito efetivo e que precisa pelo menos ser considerado. Mas, de forma geral, principalmente quando falamos de infância e adolescência, a medicação sempre deve ser uma opção de exceção. Precisamos ter o devido cuidado para entender que crianças são pessoas que estão com seu cérebro em pleno desenvolvimento e que devemos tentar minimizar ao máximo a exposição a medicações que eventualmente podem ter efeitos colaterais.
Algumas pessoas têm uma resistência maior para tomar medicamentos controlados para tratar questões de saúde mental. Existe muita recusa dos pais quando crianças e adolescentes recebem uma indicação de medicamento?
Eu, particularmente, sou muito contrário ao uso de medicação para crianças. Só vamos usar quando realmente houver necessidade. Agora, quando há fatores que nos apontam que a medicação é um tratamento indicado e que o não uso pode gerar prejuízos, em termos de privar a criança de receber o melhor tratamento disponível para a situação que ela está vivenciando, daí acho que é uma conversa que precisa ser feita de uma maneira transparente, apontando tanto os prós quanto os contras do uso da medicação, mas também essa outra perspectiva: os prós e contras de não usar a medicação. Com o que chamamos de balança decisória ou decisional, os pais conseguem se sentir um pouco mais à vontade para tomar sua decisão. Agora, não existe uma situação onde eu, na minha prática, coloque como mandatório o uso de medicação, porque, na minha visão, há uma série de ações anteriores.
Como diferenciar os comportamentos do Transtorno de Oposição Desafiante (TOD) daqueles que são comuns à infância e à adolescência?
Os transtornos disruptivos, que incluem o TOD, são normalmente de 50% a 66% de todos os atendimentos em psiquiatria infantil. Então, estamos falando de um quadro clínico extremamente frequente. O TOD é caracterizado por dois eixos principais de sintomas. O primeiro deles é uma reatividade emocional mais intensa, são crianças mais reativas, que lidam pior com frustração e com emoções negativas, que têm uma propensão maior a reações explosivas. Outro eixo de sintomas é uma tendência à oposição, ao desafio às figuras de autoridade, uma dificuldade nessa interação interpessoal. É importante fazer a diferenciação entre aspectos normativos, que estão dentro da normalidade do desenvolvimento infantil e do esperado para aquela faixa etária, e o que está acima do esperado é o primeiro passo de uma avaliação. E, para isso, teremos algumas características que podem nos ajudar a nortear. Não é pegar apenas um comportamento que vai bastar para fazer um diagnóstico. Não é porque uma criança está se negando a ir para o banho ou a fazer suas lições de casa que vamos classificá-la como tendo um transtorno opositor desafiante. Ao mesmo tempo, não vai ser uma criança que tem uma crise de raiva por alguma coisa que não pode fazer que vai nos levar a essa suspeita. Ela deve ter um número mínimo de sintomas. Dentro dos critérios diagnósticos, há oito sintomas, e a criança precisa ter pelo menos quatro deles, que precisam estar acontecendo por um período mínimo de seis meses e que precisam ter uma frequência e intensidade que estejam acima do que esperaríamos para a faixa etária.
Muitas vezes vejo pais buscando atendimento para os filhos, mas a mudança acaba tendo de vir muito mais das estratégias parentais do que propriamente um tratamento voltado apenas para a criança.
De que maneiras crianças e adolescentes podem reagir a eventos como as enchentes recentes, que causaram dezenas de mortes e ocupam o noticiário e as conversas do dia a dia na sociedade?
Existe muita pesquisa e estudo sobre vítimas de situações extremas, como cenários de guerra, desastres naturais, entre outras situações traumáticas. E o que se sabe é que crianças têm, naturalmente, maior vulnerabilidade por ainda estarem em processo de desenvolvimento, e isso faz com que o apoio e o amparo emocional pelas figuras de maior ligação, que normalmente são os pais, sejam fundamentais. Essas crianças têm um risco aumentado de uma série de reações a esse evento estressor, que podem ser desde um maior nível de ansiedade, preocupação e medo, tanto relacionado ao evento quanto outros tipos de medo, às vezes, até de situações fantasiosas. São preocupações que podem ser mais intensas, recorrentes e interferir em uma série de hábitos, por exemplo, de sono e de alimentação. Essas crianças podem ter algumas alterações secundárias ao momento inicial do evento estressante, mas o que precisamos acompanhar é a manutenção desses sintomas e dessas dificuldades, uma tendência maior ao isolamento social e uma perda da vontade de brincar, que acaba sendo um marcador muito importante quando falamos de crianças. A manutenção dessas situações por um período superior a quatro semanas é um indício de que algo não conseguiu ter a melhor elaboração e, nesses casos, seria importante uma atenção um pouco mais especializada. Isso não significa que ficaremos sem fazer nada ao longo do primeiro mês. Crianças que demonstram esses sintomas, essa tendência maior a dificuldades, seja no brincar, no interagir ou também essas reações de medo, de tristeza ou de lembranças intensas do evento, precisam ser levadas para uma avaliação especializada, para que se possa fazer algum tipo de abordagem mais precoce, minimizando o risco dessas situações se cronificarem.
Quais os maiores desafios da parentalidade hoje?
O que eu percebo é que, por uma série de razões, algumas mais pessoais, outras até relacionadas com o momento de sociedade que vivemos, muitas situações estão repercutindo muito nas crianças. Uma das coisas que percebo com uma certa frequência e é um dos pontos que acabo colocando como um fator extremamente valioso para que se possa ser revisado o quanto antes, é o tema da previsibilidade e da consistência dos combinados. Vemos muitas crianças que ficam sendo submetidas a rotinas um pouco oscilantes demais, que acabam mudando de acordo com o momento e a situação, com combinados que nem sempre são cumpridos ou que, eventualmente, acabam sendo modificados a depender de algum tipo de disponibilidade ou indisponibilidade dos pais. Então, a primeira questão é reavaliar como está sendo conduzido esse dia a dia, o quanto a criança tem uma rotina em que ela consegue ter clareza de quais são as ações que deve fazer e o que é esperado dela, para que isso também diminua a necessidade de a criança ter de se adaptar todos os dias a uma rotina nova. Isso já tem, por si só, um potencial enorme de redução tanto da oposição, da reação mais desafiadora da criança, quanto também um menor índice de reatividade emocional. Além disso, vejo muitos pais fazendo uso de muitas estratégias punitivas. Apesar de já se ter muito estudo e evidência clínica dos prejuízos que a punição física tem no desenvolvimento das crianças a curto e a longo prazo, essas estratégias seguem sendo um instrumento usado com muita frequência. Não se trata de ser permissivo quando falamos sobre não usar estratégia punitiva; é uma união entre os aspectos de definição clara de limites, mas tendo também um grau de conexão afetiva em que possa se manter uma relação respeitosa com a criança.
Há um bombardeio de informações. Filtrá-las não é fácil e acaba gerando uma carga adicional para os pais. A sugestão que dou é tentar fazer uma boa seleção dessas fontes de informação para tentar minimizar um pouco esse bombardeio.
E quais são as técnicas e ferramentas para diminuir conflitos entre pais e filhos?
A revisão das estratégias parentais é uma ferramenta extremamente valiosa, porque as crianças acabam reagindo ao ambiente que é oferecido a elas. Quando fazemos uma reavaliação dos combinados, das rotinas e dos horários, onde temos a possibilidade de reduzir a exposição a conteúdo inadequado ou, por exemplo, a intensidade do uso de telas, são algumas modificações que por si só têm efeito potente para mudar comportamentos. Muitas vezes, vejo pais buscando atendimento para os seus filhos, mas a mudança acaba tendo de vir muito mais das estratégias parentais do que propriamente algum tipo de tratamento voltado apenas para a criança. Claro que há situações em que algumas crianças vão precisar de um auxílio individualizado, mas a base principal para auxiliar a dificuldade de comportamento na infância passa por uma reavaliação do sistema de parentalidade.
Antigamente, o relacionamento entre pais e filhos costumava ser baseado no instinto e na experiência com seus genitores. Hoje, muita coisa mudou nesse sentido. Como encontrar um equilíbrio entre esse instinto e a busca por informações para construir uma relação melhor com os filhos?
Essa é uma outra questão importante, porque há um bombardeio de informações e diferentes correntes de orientações. Filtrá-las não é fácil e acaba gerando uma carga adicional para os pais. Um dos motivos que me fizeram a dar dicas no Instagram(@drthiago.rocha) foi por perceber a necessidade de fazer essa curadoria de informações para orientar as famílias. Sinto que esse tema do instinto, do uso das tradições, vem sendo colocado de uma maneira às vezes negativa, como se tudo que foi feito antigamente fosse sempre errado, mas não é verdade. Certamente havia práticas equivocadas, mas o que vejo é que muitas famílias têm uma visão de um pacote que precisa ser todo negado e reformado, e aí se cria uma insegurança, em que esses pais começam a duvidar das suas próprias definições, certezas e opiniões, e ficam reféns dessas novas correntes. Precisamos fazer uma integração daquilo que sempre funcionou e que, de certa maneira, sempre nos norteou enquanto sociedade, mas atualizar aquelas que sabemos que não são as melhores práticas. Citei o exemplo da punição física, porque é algo que sabemos dos seus prejuízos, do impacto negativo e dos riscos que causa, e, mesmo assim, muitas famílias mantêm esse tipo de estratégia. Agora, vejo alguns pais tendo uma confusão sobre sua própria função, tentando às vezes ser mais amigos do que pais. Isso também é negativo. Mesclar as informações é difícil, e a sugestão que dou é tentar fazer uma boa seleção dessas fontes de informação para tentar minimizar um pouco esse bombardeio.
Escola de Pais 2023
A quinta edição do ciclo de palestras que conta com curadoria de Alua Kopstein e Marina Sirotsky terá cinco encontros no Instituto Ling (Rua João Caetano, 440, Três Figueiras), em Porto Alegre. Além de Thiago Rocha, nesta quarta-feira (27/9), falarão o filósofo e psicoterapeuta Victor Stirnimann (no dia 18/10), a fonoaudióloga e pesquisadora Jerusa Salles (25/10), o psiquiatra Daniel Spritzer (8/11) e o psiquiatra e pesquisador Christian Kieling (29/11). Sempre às quartas-feiras, às 19h. Inscrições e outras informações em institutoling.org.br.