Ainda que o suicídio seja um tabu na sociedade, não falar sobre esse problema de saúde pública não impede tampouco diminui sua incidência. Na esteira de um movimento que já vem sendo registrado há alguns anos, a degradação das condições de saúde mental de universitários piorou com a pandemia. O sofrimento é grande. Em alguns casos, leva os jovens a pensar que pôr fim à própria vida é a única saída, quando, na verdade, há recursos aos quais pode-se recorrer para aliviar a dor psíquica. Sempre há uma alternativa.
Só em 2023, até o início deste mês de conscientização sobre o suicídio, intitulado Setembro Amarelo, o Estado já registrou ao menos dois casos entre universitários, conforme apurou e confirmou a reportagem – um na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e um na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Por trás desse cenário complexo vinculado a diversos fatores, verifica-se uma mudança no perfil dos jovens: estão mais individualistas e menos capazes de lidar com as adversidades da vida, de acordo com especialistas em saúde mental.
Contudo, há uma escassez de dados sobre o problema. GZH entrou em contato com as sete universidades federais gaúchas (UFRGS, Unipampa, UFPel, Furg, UFCSPA, UFFS e UFSM) e as sete universidades privadas com maior número de alunos do Estado, que integram o Consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas (UCS, Unisinos, PUCRS, Feevale, URI, UPF e Unisc), via Lei de Acesso à Informação e assessoria de imprensa, mas foi informada de que não há registros sobre essas mortes — quando os dados existem, são sigilosos. Apenas a URI respondeu que não houve suicídio de alunos, professores ou funcionários nos últimos cinco anos. Procurado sobre o assunto, o Ministério da Educação (MEC) se limitou a dizer que não foi informado dos casos e que está realizando "estudos técnicos pertinentes referentes à demanda", para desenvolver ações de promoção da saúde e prevenção de suicídios.
Além disso, não há informações ou estudos recentes que deem conta desses registros entre universitários. As estatísticas nacionais mostram apenas que houve tendência de aumento no suicídio de jovens entre 15 e 29 anos desde 2017, segundo o DataSUS. Já no Rio Grande do Sul, os números têm apresentado variação — no último ano, foram 282, conforme a Secretaria Estadual da Saúde (SES).
Neste novo contexto, após o auge da pandemia, os consultórios estão cheios, e psiquiatras e psicólogos percebem um agravamento de quadros de depressão e ansiedade, além de um esgotamento dos jovens. Enquanto alguns profissionais veem um impacto da crise sanitária nessas questões, o médico psiquiatra e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Neury Bottega, especialista no tema, ressalta que os quadros são similares aos verificados anteriormente. Para ele, é difícil estabelecer uma relação direta. De todo modo, é consenso que houve aumento da conscientização sobre o cuidado com saúde mental.
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O suicídio é um problema complexo e o desfecho trágico de uma combinação de diferentes fatores. Sendo assim, não é possível apontar uma única causa, e a simplificação é um equívoco – muitas vezes, o que é creditado como a causa foi um fator a mais. Um dos pontos de risco é o diagnóstico de doença mental, sobretudo a depressão, conforme psicólogos e psiquiatras – mas é preciso lembrar que nem todas as pessoas que enfrentam esses problemas põem fim à vida. Evidentemente, há outros fatores que podem contribuir: impulsividade, falta de esperança, a existência de casos na família, mudanças drásticas na vida, a falta de acesso a serviços de assistência, entre outros.
Há hoje uma geração mais imediatista, mais impulsiva, mas que também, muitas vezes, tem contatos virtuais. Não tem, às vezes, um amigo real para dar um apoio.
NEURY BOTTEGA
Médico psiquiatra e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Quando o suicídio é registrado em uma escola ou em um campus universitário, a repercussão costuma ser maior – da mesma forma, o impacto também é mais forte, segundo especialistas. A situação deve despertar um sinal de alerta nos professores e gestores, já que pode desencadear um efeito contágio, afetando outros jovens vulneráveis e podendo resultar em novos casos. Ao mesmo tempo, abordar o assunto da maneira adequada, realizando escuta e acolhimento, pode ajudar na prevenção, conforme psicólogos.
Ao frequentar a universidade, muitas vezes, o estudante inaugura uma nova fase e se distancia da família, o que pode fazer com que se sinta desamparado. Além disso, é no final da adolescência e no início da idade adulta que as doenças mentais mais incidem, conforme Bottega – justamente o período em que um jovem vai para a universidade. Lá, pode ficar mais exposto a álcool e drogas, e até um mau desempenho acadêmico pode agravar problemas. Também no início da vida adulta, os jovens testam relacionamentos afetivos, que, ao terminar, podem abalar a pessoa que não tem maturidade.
Porém, para Bottega, o mais interessante diz respeito ao funcionamento mental dos jovens, que está "diferente" nos últimos tempos – e que também pode ajudar a compreender o fenômeno atual. Na visão do médico, a nova realidade está associada à rapidez e às redes sociais, bem como à pressão de ter de parecer bem perante a sociedade:
— Há uma menor capacidade de lidar com situações dolorosas, sob o ponto de vista emocional. Há hoje uma geração mais imediatista, mais impulsiva, mas que também, muitas vezes, tem contatos virtuais. Não tem, às vezes, um amigo real para dar um apoio. Esse é um fator importante.
Na visão de Marina Pombo, psicóloga, psicanalista e conselheira do Conselho Regional de Psicologia do Estado (CRPRS), trata-se de uma geração que não aceita opressões que não eram problematizadas antes. Assim, ela percebe os alunos mais incomodados e críticos, carentes de falar e denunciar.
Em relação às universidades, Bottega hesita em vincular as duas coisas e afirmar que a pressão é maior hoje do que antigamente. Mas a maneira como o jovem lida com isso é diferente, ressalva.
— Pode ser um fator de risco se nós relacionarmos essa pressão à estrutura mental que um jovem tem hoje. Talvez a capacidade de suportar a pressão psíquica é menor. Justamente por ter constituído uma mente mais imediatista, que preza mais a questão da imagem e que tem menos condições de se aprofundar, de suportar o sofrimento e de, passado um período de tristeza e reflexão, transformar-se em uma pessoa mais forte e madura emocionalmente — avalia o médico, a respeito dessas hipóteses.
Por outro lado, outros especialistas avaliam que a cobrança por produtividade e excelência de desempenho, bem como a competitividade do Ensino Superior, pode ter peso importante.
— Há cursos que desafiam o aluno, apresentando muitas dificuldades. Se internamente você já está dizendo que não é capaz e vem alguém reafirmar isso, é destruidor — afirma a psicanalista.
Há docentes que não enxergam esse quadro – e que também estão em sofrimento, conforme Marina. O psicólogo e professor do Departamento de Psicologia Social e Institucional da UFRGS Moises Romanini coordena o Programa de Extensão Movimento Educação e Saúde Mental (Medusa), iniciativa independente que atende alunos, e é um dos autores da recém-lançada cartilha Cuidado e Empatia em Momentos Difíceis: Orientações Sobre a Abordagem do Suicídio nas Unidades Acadêmicas da UFRGS. Ele percebe relações muito hierarquizadas e opressivas, além de ambientes competitivos dentro da universidade.
— A gente não pode pensar a saúde mental dos alunos ou da comunidade acadêmica de modo geral sem problematizar essas questões institucionais, se não vai estar tratando o aluno individualmente e, quando ele estiver melhor, vai devolvê-lo para um contexto que está adoecido e vai afetá-lo novamente — salienta.
Ainda que a maior parte da comunidade acadêmica se importe verdadeiramente, Romanini lembra que a UFRGS é alvo de críticas constantes – e "justificadas", conforme o professor –, de um modo mais frequente do que deveria, de que, após um caso de suicídio, as atividades continuam normalmente, como se nada tivesse acontecido: aulas e provas seguem no próximo dia, e, com essa atitude, os estudantes se sentem desamparados.
Ao circular pelo Campus Centro da UFRGS, a reportagem ouviu estudantes sobre as condições que enfrentam na instituição. Os relatos mostram que a situação varia de curso para curso. Em alguns, há um ambiente de acolhimento – na Engenharia Química, por exemplo, duas alunas relataram essa percepção em relação aos professores do próprio instituto. Já em disciplinas comuns a outras Engenharias, testemunharam situações de pressão.
— Quando entrei na universidade, senti que havia uma pressão absurda. Despertei ansiedade no início do curso, fiquei me questionando se conseguiria seguir em frente, pelo nível de dificuldade, de cobrança. Os professores não se mostraram tão acessíveis no início — afirma Rhaiana Lopes, 23 anos, aluna de Engenharia Química.
A gente não pode pensar a saúde mental dos alunos ou da comunidade acadêmica de modo geral sem problematizar essas questões institucionais, se não vai estar tratando o aluno individualmente e, quando ele estiver melhor, vai devolvê-lo para um contexto que está adoecido e vai afetá-lo novamente.
MOISES ROMANINI
Psicólogo e professor do Departamento de Psicologia Social e Institucional da UFRGS
— Ainda mais quem veio de escola pública. Eles com frequência diziam: "Isso vocês já viram na escola", e nem sempre tínhamos visto — concorda a colega Bárbara Rosa, 22 anos.
Acolhendo as demandas
Durante o processo de apuração, GZH conversou com diferentes universidades para compor o retrato atual do Ensino Superior gaúcho, como PUCRS, Unisinos, Unisc e UFSM. A UFRGS não quis se manifestar institucionalmente. As instituições possuem diferentes abordagens para as demandas. Na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), por exemplo, há um Núcleo de Apoio Psicossocial, que oferece um espaço de escuta aos estudantes, onde são realizados acolhimentos, apoio e encaminhamentos.
— A gente sabe o quanto a saúde mental é uma necessidade urgente. Não basta só abrir caminhos para o estudante acessar o Ensino Superior, precisamos também pensar em condições para que ele possa percorrer sua trajetória e garantir a sua permanência — afirma Francisco Arseli Kern, professor responsável pelo núcleo.
A UFSM, por sua vez, informou que também oferece escuta e acolhimento. Somente neste ano, 10 tentativas de suicídio foram evitadas, aponta a instituição. A UFSM está trabalhando na criação de um protocolo de ação. No caso de tragédias, a universidade presta todo o atendimento, segundo a professora Silvia Pavão, que lidera a Coordenadoria de Ações Educacionais.
— Nossa responsabilidade é no nível de promoção e prevenção. Claro que, se acontece, a gente é tomado de assalto, é muito triste. Estamos tentando fazer aquilo que é nosso ofício — pontua.
Aluno de Geografia, César Nascimento, 39 anos, participa de oficinas terapêuticas oferecidas pela universidade. Ele considera a questão de saúde mental na UFSM delicada e ressalta que é preciso falar sobre isso.
— No início fui meio cético, e à medida que fui frequentando, melhorou muito minha qualidade de vida, tanto mental quanto, até mesmo, física. Acredito que muitos outros alunos deveriam experimentar, porque são experiências profundamente enriquecedoras — compartilha.
Procure ajuda
Diferentes instituições de ensino do RS oferecem serviços e espaços de acolhimento e escuta. Veja como acessá-los aqui.
Caso você esteja enfrentando alguma situação de sofrimento intenso ou pensando em cometer suicídio, pode buscar ajuda para superar este momento de dor. Lembre-se de que o desamparo e a desesperança são condições que podem ser modificadas e que outras pessoas já enfrentaram circunstâncias semelhantes.
Se não estiver confortável em falar sobre o que sente com alguém de seu círculo próximo, o Centro de Valorização da Vida (CVV) presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato. O CVV (cvv.org.br) conta com mais de 4 mil voluntários e atende mais de 3 milhões de pessoas anualmente. O serviço funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados), pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil (confira os endereços neste link).
Você também pode buscar atendimento na Unidade Básica de Saúde mais próxima de sua casa, pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), no telefone 192, ou em um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Estado. A lista com os endereços dos CAPS do Rio Grande do Sul está neste link.