Por Nicole Campagnolo, Vera Hartmann e Carmen prado
Psicanalistas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA)
O teólogo belga Lawrence Beyerlinck, no século 17, observou que “o espelho adoece a alma”. De lá para cá, passamos do simples espelho para uma sofisticada busca de imagens cada vez mais belas e otimizadas. O fenômeno das telas, além de produzir uma replicação das selfies, contém o que podemos designar como um ímã que atrai, que chama, que desconcentra e que por vezes altera a realidade.
Durante uma palestra sobre tecnologia, a psicoterapeuta e professora da Universidade de Nova York, Esther Perel, especialista em relacionamentos contemporâneos, desenvolveu o fascinante tema da “intimidade artificial”. Para ela, estamos vivendo nossas vidas em permanente estado de atenção parcial. Habitualmente, quando nos relacionamos, nunca estamos 100% presentes. Nossa atenção parece estar sempre dividida entre as pessoas e o celular. Seria possível uma intimidade real com alguém ou alguma coisa? As mídias funcionam como anestesia seletiva para as relações humanas. Quando algo desconfortável se materializa, parte-se para o mundo controlado das telas, e isso nos distrai do que é verdadeiramente humano.
O filósofo Gilles Lipovetsky, juntamente com o crítico de arte Jean Serroy, no texto O Virtual e o Sensual, citam que nas sociedades das redes virtuais os indivíduos passam seu tempo diante das telas, em vez de se encontrar e viver juntos. Comunicam-se de modo digital, em vez de falarem diretamente uns com os outros. Com o cibersex, as pessoas não fazem mais amor: o parceiro “faz o que quero”, numa espécie de onanização da sexualidade. Se o corpo deixa de ser a ancoragem real da vida, caminhamos para um universo descorporizado.
O interessante é que os autores se questionam: “É mesmo essa a lógica abstrata e desencarnada que nos rege?”. Eles explicam que, na verdade, à medida que tudo se acelera e que uma parte notável da nossa vida é passada diante das telas, vemos ascender novas valorizações da dimensão sensorial. As pessoas buscam os prazeres sensitíveis como os boardsports, a decoração, os jardins, a natureza, mas também o luxo, a gastronomia, os produtos, os vinhos de qualidade, as paixões turísticas, o desejo de ver, descobrir e sentir as belezas do mundo. O mundo virtual engendra forte necessidade de contrapeso que se torna veículo de tatilidade e de sensorialidade. É essa a ironia de nossa época: quanto mais o nosso mundo se torna imaterial e virtual, mais se assiste à ascensão de uma cultura que valoriza a sensualização, a erotização, a hedonização da existência.
Chamam-nos a atenção e nos preocupam as exposições precoces a determinados estímulos virtuais. Pesquisas mostram um aumento de indicadores de autismo e a perda da capacidade intersubjetiva nos bebês que são muito expostos às telas, como um aumento do isolamento entre os adolescentes devido ao tempo na internet e um crescimento do suicídio em meninas adolescentes em função dos aplicativos de redes sociais, como Facebook e Instagram.
Sob o ponto de vista da psicanálise, vivemos tempos de uma sociedade narcisista, em que o indivíduo vive muito em função de seus próprios interesses, pouco importando o coletivo e o bem-estar social. Além disso, o consumismo e o imediatismo evidenciado nas famílias contemporâneas pouco contribuem para a busca por novos desafios e o amadurecimento pessoal. Vivemos tempos em que não há falta, há pouco espaço para o reflexivo, assim como para a criatividade. O indivíduo pode desenvolver-se intelectualmente numa escala altíssima, mas como fica a sua capacidade de interação e de simbolização, com as suas figuras imaginárias e reais? Como ser criativo num mundo em que as pessoas recebem tudo pronto em poucos minutos, ou segundos?
Nessa linha, Lipovetsky e Serroy citam um narcisismo paradoxal que se manifesta, a tal ponto que se mostra dependente da relação com os outros. Enquanto se desenvolvem os videogames e as comunicações virtuais, os indivíduos têm cada vez mais o gosto de sair à noite. Vão à casa de amigos, ao restaurante, participam de festivais e de festas. O indivíduo hipermoderno não quer apenas o virtual, ele plebiscita o live. Os autores concluem que, quanto mais ferramentas de comunicação virtual existem, quanto mais telas high-tech, mais esses indivíduos procuram se encontrar, ver gente.
A Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA) convidou para debater a questão a educadora e economista Claudia Costin e a psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Maria Cecília Pereira da Silva. Elas falarão a respeito desses temas tão desafiadores que são as adições às telas e a criatividade, além do desenvolvimento emocional da criança e do adolescente nesse cenário. O debate integra a Jornada Científica 2023 da SBPdePA, que foi pensada para profissionais de educação e saúde e familiares de crianças e adolescentes. A atividade será aberta à comunidade e ocorrerá às 20h do dia 31, o primeiro dia do evento, na sede da SBPdePA, à Praça Mauricio Cardoso, 7. As inscrições são limitadas para a modalidade presencial, e o ingresso será 2kg de alimento não perecível para doação.
A Jornada
- A Jornada Científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA) 2023 terá como tema Adicções e Dependências – Reflexões e Transformações. As palestras serão híbridas, com debates entre 31 de agosto e 2 de setembro, no Hotel Hilton Porto Alegre (Rua Olavo Barreto Viana, 18, Moinhos de Vento). Além de Claudia Costin e Maria Cecília Pereira da Silva, estarão presentes Decio Gurfinkel, José Alberto Zusman, o argentino Norberto Marucco, o sul-africano Mark Solms e a italiana Claudia Spadazzi. Inscrições e outras informações em sbpdepa.org.br/jornada2023.