Por Celso Gutfreind
Psicanalista e escritor, autor de “A Nova Infância em Análise” (Artmed), entre outros
Se tudo acaba em símbolo, pelo menos nos melhores casos, o que haveria de mais simbólico para a psicanálise?
A expressão “cura pela palavra”, cunhada pelo próprio Freud, ainda na parceria com Breuer, nos primórdios de seus estudos sobre a histeria? Ou aquela “Freud explica”, da qual Sérgio Paulo Rouanet, amigo simbólico de Freud, valeu-se como anedota para desenhar uma ciência artística que hoje propõe bem mais implicar-se do que explicar...
O divã se candidata com folga para preencher o espaço de símbolo maior. Justo ele, este objeto-mobília sobre o qual podemos nos deitar para mergulharmos em nós mesmos, frente a uma testemunha que nos olha com os ouvidos.
A todas essas simbolizações, espanta até mesmo um psicanalista que o divã não tenha merecido, por parte de Freud, uma reflexão mais ampla ou teorização específica como essas que ele tanto fez em sua metapsicologia.
Sem a acolhida de um conceito mais estruturado, para além de maiores justificativas, o divã virou o século naturalmente. E segue firme, liso ou estampado, nas melhores análises do ramo.
Pois é essa lacuna que o poeta, editor e psicanalista Lucas Krüger tenta preencher, em um trabalho de fôlego, aberto pela questão direta e ainda não simbólica: Por que o Divã? Em alta frequência de páginas e argumentos, Lucas inicia as suas reflexões com o próprio Freud, abrindo o leque em seguida para outros autores clássicos como Winnicott, Bion e Ferenczi, sem negligenciar os novos, a exemplo de Ogden, Bollas e Roussillon.
O livro percorre a metapsicologia de forma erudita, por vezes acadêmica, mas guardando sempre uma leveza com a qual nos implicamos cativados e informalmente. Há recursos para isso, como conversar com o leitor, incluindo-o nos debates, da mesma forma que ficcionistas célebres o fizeram, vide ou ouça-se Machado de Assis.
Como um desses leitores, atribuo a leveza do estilo como decorrente da coragem do autor de pensar por si mesmo, não se limitando a replicar as ideias das fontes principais. Lucas arrisca hipóteses, busca consensos, dissonâncias, penetra curioso nas entrelinhas, de onde sempre sai com algum pensamento ou pergunta. Ao mesmo tempo em que pesquisa, consegue trazer suas próprias impressões, o que nos permite desenharmos as nossas, como em um bate-papo, desses da vida e da análise, onde e quando não há mais peso, porque predomina o lúdico das descobertas.
O gosto fica bom, porque não é café passado e sim feito na hora, no embate entre os grãos já conhecidos com o que ousamos descortinar aqui, hoje, agora. Sob o confronto de teorias (dos tantos autores evocados) e mesmo de gerações (Lucas é um jovem), vamos aprendendo através da forma mais efetiva de aprender que é criando e brincando. Então, vibramos com o insight freudiano de utilizar o utensílio para evitar um olhar direto à guisa de não invadir o seu. Ou o quanto Winnicott (e Ferenczi) observaram que a oportunidade de se deitar proporciona ao analisando a de reencontrar os seus primórdios maternos para transformá-los. Ou facilitar o sonho (Green). Ou o devaneio (Ogden).
Em meio a tanto desenvolvimento, não há conclusões. Há, sim, uma revisão extensa e rigorosa (mas lúdica) de experiências clínicas e teóricas sobre o uso do divã – diwan, do persa, “volume de poesia” –, com direito, portanto, a terminar em metáfora, ou seja, interminável.
No clima de liberdade proporcionado pela imagética e a análise do autor, arrisco enfatizar uma hipótese, dizendo-a do meu jeito. Deitar-se sobre um divã, em algum momento do dia, pode ser uma das últimas resistências diante de uma sociedade que vem se tornando cada vez mais individualista, privando-nos de encontros presenciais, alicerçados no olhar e na escuta.
E, assim, através desse objeto-mobília, poder garantir o tempo e o espaço de uma experiência subjetiva fundante e fundamental na vida de todo ser humano e sua identidade narrativa. A experiência sagrada de ser ouvido pelo outro até chegar a esse ponto raro e necessário de uma saúde mental, quando já podemos ouvir a nós mesmos.
Em uma sociedade mais afeita a consumir do que sonhar, o divã permanece como uma das últimas trincheiras do amor diante da morte, guardião do que oferece como o verdadeiro maior sonho de consumo: construir a própria subjetividade, conforme os psicanalistas vem chamando aquilo que poetas como o Lucas denominaram, muito antes, alma.
O lançamento
Neste sábado (24/6), às 15h, na Sigmund Freud Associação Psicanalítica (Rua Dr. Timóteo, 752), em Porto Alegre.