Ao longo dos anos, psicanalistas se debruçam sobre autores como Freud e Lacan para entender o funcionamento do inconsciente e sua relação com a cultura. A maioria das obras analisa mitos e metáforas europeias, da Grécia Antiga a Shakespeare. Mas uma escola de psicanálise de Porto Alegre, a Après Coup, quer romper com o cânone: ao focar o debate em autores indígenas, africanos e latino-americanos, pretende pautar uma perspectiva mais próxima ao Brasil – a psicanálise “amefricana”.
A teoria é baseada no termo “amefricanidade”, cunhado pela filósofa e historiadora mineira Lélia Gonzalez (1935-1994), uma das pioneiras em estudos sobre raça, gênero e feminismo no Brasil. A palavra descreve o processo histórico no qual nossa identidade se constituiu com influência não só dos europeus, mas também das culturas indígena e africana. Portanto, se somos afetados pelos povos originários e escravizados, reconhecer a presença de suas ideias é, também, olhar para nosso reflexo no espelho.
Lélia, 17ª filha de um pai operário e de uma mãe indígena analfabeta, ascendeu pelos estudos, leu autores brancos europeus e também escritores e mitos das culturas indígena e africana. Tornou-se diretora do Departamento de Sociologia da PUC-Rio e, em 1975, ajudou a fundar o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras e o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. Culta e irreverente, questionava a tradição de estudos intelectuais.
Na Après Coup, a amefricanidade é aplicada à psicanálise. Desde Freud, a história de Édipo, que, sem saber, matou o pai e desposou a mãe, é estudada como metáfora do momento em que a criança aprende a controlar os instintos e se comportar em sociedade. O mito é tido como universal, mas a psicanálise amefricana propõe olhar outras histórias que conversem também com a cultura brasileira, observa uma das coordenadoras da instituição e colunista do caderno DOC e de GZH, Eliane Marques. Exemplos são romances como Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, O Mundo se Despedaça, de Chinua Achebe, Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, e A Autobiografia da Minha Mãe, de Jamaica Kincaid.
– Quais são os poetas, romancistas e dramaturgos nos quais Freud se baseou? Sófocles, na obra Édipo Rei, Hamlet de Shakespeare, Irmãos Karamazov de Dostoievski. Quando falamos de psicanálise amefricana, nossas bases poéticas, míticas e literárias são outras. Não podemos pegar o complexo de Édipo e pensar que ele se dá daquela forma nas Américas. Temos outro mito fundador, como o Exu, que come tudo para depois comer primeiro. São outros pressupostos – diz Eliane.
O mito citado descreve como Exu devorava animais, florestas e ameaçava acabar com o mundo, em uma fome insaciável. Morto pelo irmão, ele seguiu, como uma “presença”, devorando pastos, animais e colheitas, até que um oráculo explicou: para que Exu não provocasse mais catástrofes, sempre que houver oferendas aos orixás, a comida deve antes ser servida a Exu.
– Organiza-se a mesa, primeiro Exu come e depois todos podem comer. Esse mito em que todos compartilham de uma comida comum não termina em uma tragédia e nos fala de implicações diferentes do mito de Édipo, que termina com muita violência. Preciso poder ouvir a palavra “Exu” sem pensar que é um diabo. Para ouvir pacientes, preciso me considerar uma pessoa dividida, que vem de Sófocles mas também de Exu e de Iemanjá. A psicanálise convencional considera esse discurso estranho – afirma Eliane.
O verbo “denegar”, usado pela psicanalista, descreve o ato de não aceitar por completo uma ideia que nos pertence. Para a psicanálise amefricana, nossa sociedade pode até reconhecer o racismo, mas nega quando o preconceito aparece de fato. A teoria se aproxima dos estudos decoloniais, que buscam valorizar as culturas de países colonizados frente à relevância dada a reflexões europeias.
Uma questão de formação
Desde 2019, a Après Coup adota ações afirmativas para pessoas negras, indígenas, com deficiência e LGBTQIA+ nos cursos de formação de psicanalistas. A iniciativa mudou o perfil de alunos, tradicionalmente brancos e agora com maior proporção de negros, o que deve beneficiar futuros pacientes que buscam profissionais mais alinhados às suas experiências de vida, alega a instituição. Um dos beneficiados foi Evandro Machado Luciano, 30 anos, que é negro e está no terceiro ano da formação em psicanálise.
– Essa ideia da psicanalise amefricana me fez entrar na psicanálise, algo que de outro modo talvez não aconteceria. A questão não é romper com a psicanálise convencional e negar Freud ou Lacan, pelo contrário, aprendemos com eles. E a psicanálise amefricana não é pensada apenas para o negro ou a negra, e sim para o amefricano, o que compreende sujeitos brancos também. A amefricandade não é produto da negritude, mas o encontro de múltiplas culturas – diz.
Os efeitos do debate são para além da clínica e buscam que as pessoas tomem consciência de que temos outros “pais e mães fundadores” de nossa cultura. Eliane propõe que cada um renuncie à ideia de que seus hábitos são formados apenas por influências italianas, alemãs. A reflexão vem a calhar no Sul, onde há uma extensa valorização da herança da colonização europeia e um apagamento das raízes africanas e indígenas.
A iniciativa de formar psicanalistas pela perspectiva da amefricanidade é elogiada como uma forma de combater o racismo, afirma a neta de Lélia Gonzalez, a historiadora Melina Lima, diretora de educação e cultura do Instituto Memorial Lélia Gonzalez, que está prestes a ser inaugurado. Ela observa o quanto sua avó citava que o racismo é uma neurose cultural, porque finge que a cultura negra não está presente.
– Tentaram apagar a grande e evidente influência da cultura negra e dos povos originários na nossa cultura. O conceito de amefricanidade reconhece essa influência. Ter profissionais negros na psicanálise é essencial para sabermos que nossas inseguranças e baixa autoestima são produtos do meio racista em que a gente vive, e não culpa nossa. A influência da Lélia na psicanálise se dá muito no sentido dessa neurose de o país negar que existem negros e que está tudo bem com isso. O potencial das ideias dela é de as pessoas entenderem o racismo para reagir – reflete Melina.