O escritor e colunista de GZH Jeferson Tenório foi consultor desta e de outras reportagens relacionadas à Semana da Consciência Negra.
Silvia Regina Ramão, 51 anos, se formou em Psicologia sem ter cruzado com o trabalho de um pesquisador negro sequer em sua graduação nos anos 1990. Glaucia Fontoura, 47, finalizou o curso em 2006 e não teve professores negros em sala de aula – muito menos participou de qualquer discussão sobre relações raciais e saúde mental na universidade. Mais de uma década depois, Jéssica Dias de Souza, 30 anos, enfrentou uma situação parecida. Graduou-se em 2018 como a única negra da turma – o corpo docente também era totalmente branco –, não trabalhou com autores negros nas cadeiras obrigatórias e tampouco debateu sobre como aplicar uma conduta antirracista no dia a dia profissional. E ainda passou por outra experiência comum aos negros e negras que buscam atendimento psicológico: expôs seu sofrimento por ser vítima de racismo e foi desacreditada pelo profissional que deveria ouvi-la e acolhê-la.
As três psicólogas integram um grupo gaúcho que decidiu dar um basta nessa estrutura que minimiza ou exclui os desafios e as dores da população negra quando o assunto é cuidar da mente. Para marcar o Dia da Consciência Negra, neste 20 de novembro, Donna conversou com Silvia, Glaucia e Jéssica, do Coletivo Adinkra, que está prestes a completar cinco anos de atuação. Embora todas já trabalhassem com uma abordagem antirracista, o grupo acabou se conectando por acaso em 2017.
À época, a Defensoria Pública do RS convidou alguns psicólogos negros para um projeto de atendimento à população – muitas vítimas, principalmente de racismo, queriam ser ouvidas por profissionais negros pois se sentiam mais acolhidas. Silvia e Glaucia constavam nesta lista, assim como as psicólogas Silvia Edith Duarte Marques e Taiasmin da Motta Ohnmacht, entre outras profissionais. A troca de experiências era tão rica que surgiu a ideia de criar um grupo de referência no Estado para pensar as relações raciais e a saúde mental da população negra. O foco seria no atendimento, no fortalecimento da conduta antirracista na psicologia e na capacitação de profissionais da área.
— Primeiro, nós fizemos um grupo de estudos e também de discussão de casos. Depois, veio a ideia de criar uma instituição. Estamos nesse processo de procurar um lugar, um espaço para ser nosso. Temos uma cota de atendimentos sociais, conforme a renda, e queremos oportunizar o acesso — explica Silvia. — Entendemos que o racismo precisa ser enfrentado também no campo psíquico. Deixa marcas na saúde mental de todos, é uma doença social.
Hoje, o coletivo conta com 12 profissionais negros – 10 mulheres e dois homens. Glaucia explica que o grupo quer aprofundar a pesquisa e o estudo das relações raciais e da saúde mental para capacitar outros profissionais e qualificar o atendimento à população negra. Apenas refletindo sobre esses temas ao longo da formação é possível quebrar a estrutura racista que se impõe – e isso é tarefa tanto para psicólogos e psicanalistas negros quanto brancos, defende Glaucia:
— Nossa busca é para que não se repita o mesmo sofrimento vivido fora do consultório. O racismo é uma violência e, se você vive isso na sociedade e novamente no espaço terapêutico, é como se revivesse essa violência. E isso acaba acontecendo quando você encontra um profissional que não tem esse entendimento de que o racismo é uma violência e que produz sofrimento de fato.
Integrante mais jovem do grupo, Jéssica conta que ouviu mais de uma vez de professores que "não poderia ser psicóloga". Por ser quem era, uma mulher negra, lhe "faltaria capacidade" para tal tarefa, na visão deles. Foi apenas quando começou a participar de um grupo de pesquisa e ingressou no coletivo que reuniu forças para encarar de frente suas inseguranças e exercer a profissão. E mais: ao atender seus pacientes e também trabalhar com atendimento num projeto social na periferia de Porto Alegre, Jéssica confirmou que havia uma enorme lacuna entre teoria e prática.
— Saímos da graduação despreparados para essa conduta antirracista. O que aprendi com a pesquisa e no coletivo fez toda a diferença para dar conta das demandas que chegavam. Sinto que nossa formação acaba sendo elitista, somos formados para atender a uma classe social. Ali, na prática, identifiquei que precisava desse suporte de outros autores negros para exercer minha profissão da melhor forma — avalia Jéssica, psicóloga que passou a integrar o grupo logo após a sua formação, assim como as profissionais Ivanice Beatriz de Oliveira Lopes e Denise da Silva Oyarzabal.
O que é uma conduta antirracista?
É uma atuação baseada no reconhecimento de que o racismo existe, causa sofrimento e é enfrentado todos os dias pela população negra. O psicólogo legitima a dor do paciente, acolhe e não duvida, minimiza ou desacredita. A partir disso, consegue prestar um atendimento mais completo, que leve em conta as questões de raça, gênero e classe. Esse olhar antirracista é uma orientação do Conselho Federal de Psicologia: na resolução 018 de 2002, é definido que o psicólogo atuará "com o seu conhecimento para uma reflexão sobre o preconceito e para a eliminação do racismo". Mas, na prática, nem sempre é isso que acontece. Para Silvia, há profissionais que perpetuam a negação do racismo enquanto violência e acabam responsabilizando a vítima.
— A pessoa vive uma situação de trauma que precisa ser revista e elaborada. Se o profissional não acredita nisso, como vai ser? O racismo existe, e o negro passa por isso todos os dias. É perseguido no supermercado, parado pela polícia, é deixado esperando e por aí vai. Recentemente, teve a história da delegada negra que foi impedida de entrar em uma loja, em Fortaleza. Teve o marido da mãe da Marília Mendonça confundido com um segurança. Um homem negro e forte não poderia ser outra coisa? Ninguém resolveu perguntar? — questiona a psicóloga.
Foi buscando esse acolhimento para seus desafios enquanto mulher negra que uma publicitária de 27 anos, que faz terapia há quatro, optou por uma psicóloga negra para seu atendimento. Ela conta que estar frente a frente com uma pessoa que provavelmente passou por questões semelhantes ajudou a criar um espaço seguro para dividir seus anseios sem medo de ser desacreditada.
— Queria uma psicóloga negra desde o início. Me senti à vontade para compartilhar minhas dores, foi essencial para encarar um período turbulento da minha vida. Busquei uma profissional que olhava para as questões de raça e gênero e considerava o racismo dentro da pauta da saúde mental, e isso foi essencial — explica a publicitária que preferiu não se identificar.
Racismo é uma violência – e pode desencadear doenças
O racismo causa sofrimento, dor e pode, sim, desencadear doenças. Muitas situações são traumáticas e, ao longo do tempo, caso não haja tratamento adequado, podem resultar em sintomas físicos e até no adoecimento, explicam as psicólogas. Ansiedade generalizada, depressão, transtornos mentais, surto psicótico e outras doenças podem vir à tona. Como o racismo estrutural acaba acompanhando a formação desde a infância, muitas vezes, pode resultar em baixa autoestima, inseguranças, sensação de incapacidade.
Neste contexto, a população negra fica mais vulnerável por ser alvo de violência sistematicamente. A psicologia precisa ajudar as pessoas a se fortalecerem, a perceberem o racismo como um problema social, defende Silvia:
— Precisamos resolver no campo social e nos fortalecer no campo psíquico para criar estratégias para fazer o enfrentamento, para nos associarmos com quem legitima nossas lutas. Precisamos ser ouvidos e legitimados. E esse cuidado para a população negra é ampliar os recursos para lidar com essa violência preservando a sua integridade psíquica. Algumas fazem sintomas e adoecem mesmo.
A mulher negra e a saúde mental
As três psicólogas ouvidas nesta reportagem revelam que a maioria de suas pacientes são mulheres negras das mais diferentes idades. E há assuntos comuns que surgem nos consultórios, como a solidão da mulher negra. Na prática, ela teria mais chance de ser preterida em diferentes situações, já que o padrão social e de beleza está associado à pele branca. E isso pode impactar diretamente as relações amorosas, familiares e até profissionais, explicam as psicólogas. Ou seja: muitas vezes, a mulher negra acaba relegada ao abandono, ao cuidado dos filhos sem parceria, a um segundo plano das relações.
— É algo recorrente no consultório, assim como a ideia da mulher negra guerreira, que dá conta de tudo. Ela acaba se sentindo estranha por estar naquele lugar, de procurar ajuda para a saúde mental. Queremos desconstruir isso — diz Jéssica.
Silvia levanta ainda outras questões importantes, como a posição de "cuidadora" vinculada à mulher negra – vista como aquela que, historicamente, cuida de sua família e de outras, mas não de si. Há também a maternidade de sobressaltos que essas mulheres encaram. Toda vez que um filho ou uma filha sai de casa, a mãe negra não sabe se voltarão, já que, com o racismo estrutural, sua família esta mais sujeita a ser alvo de violência. É uma angústia diária e que também têm aparecido com frequência nos consultórios.
Hoje, faz diferença um negro ser atendido por um profissional também negro, mas não era para ser assim. O profissional branco deveria estar implicado nessas questões de raça
JÉSSICA DIAS DE SOUZA
Psicóloga
Um desafio para negros e brancos
Combater o racismo no atendimento psicológico ou onde quer que seja não é uma tarefa para negros. É um trabalho para a sociedade como um todo, lembram as psicólogas.
— Hoje, faz diferença um negro ser atendido por um profissional também negro, mas não era para ser assim. O profissional branco deveria estar implicado nessas questões de raça. Não dá para generalizar e dizer que todo branco não vai acolher, mas a realidade é que muitas pessoas negras acabam se sentido mais à vontade com profissionais negros — diz Jéssica.
Glaucia explica que é um caminho de mão dupla: o povo negro vai construindo sua negritude, entendendo seus valores, sua potência, resgatando e valorizando suas raízes, e a população branca precisa fazer o movimento de reconhecer que está num lugar de privilégio historicamente, mudar seu comportamento e entender como pode agir na prática. É preciso estar disposto a ouvir, a aprender, a ter uma visão crítica para transformar sua ação no dia a dia.
— O racismo está na estrutura. E quando se entende isso, a pessoa precisa se comprometer com as relações raciais. É preciso abandonar o "eu nunca ouvi falar", "eu não tenho nada a ver com isso". Você tem tudo a ver com isso — explica Glaucia.
Representatividade importa
Jéssica conta que é comum abrir a porta do consultório para chamar o paciente e ser encarada com um misto de espanto, felicidade e até certo alívio por ser uma mulher negra naquela posição. Silvia relata a mesma experiência: cansou de testemunhar a surpresa e a felicidade de pessoas negras ao serem atendidas por ela.
— Muitas diziam: "Que bom, tem uma de nós aqui". E os brancos também ficam surpresos. As pessoas negras têm consciência de que não são escutadas, bem acolhidas e ouvidas. E elas querem isso. Pensando no elemento de identificação, isso é muito importante para as crianças também — pondera.
As psicólogas defendem que a representatividade precisa estar presente durante toda a formação, incluindo um corpo docente diverso. Excluir o trabalho de pensadores negros da área da saúde mental, como Lélia Gonzalez, Maria Beatriz Nascimento, Isildinha Baptista Nogueira, Neusa Santos Souza, Virgínia Bicudo, entre outros, é uma forma de restringir o conhecimento produzido pela população negra e de não levantar debates essenciais em sala de aula. Os profissionais precisam questionar seu papel sobre as questões raciais e assumir sua responsabilidade para combater o racismo de frente, explica Silvia:
— Retomamos o trabalho desses pesquisadores e queremos compartilhar com outras pessoas, de diferentes cores e etnias. O racismo não é um problema só dos negros. Queremos criar um espaço de cuidado para a nossa comunidade porque não existe isso, mas negros e brancos têm que se comprometer com a mudança. Estudar, se capacitar, para sairmos dessa bolha de ignorância que produz racismo e violência.