Aos quatro anos, Luciana Dornelles Ramos foi vítima de racismo pela primeira vez. A gaúcha brincava na casa de uma vizinha quando um familiar da amiga entrou no quarto e falou:
— O que essa "neguinha" está fazendo em cima da cama? Se quiser brincar aqui, tem que ser no chão.
Luciana sentou no piso e seguiu se divertindo. Quando voltou para casa, questionou a família. Afinal, por que "neguinha" tinha que brincar no chão? A mãe, Neiva, respirou fundo e foi tirar satisfações com o vizinho. Quando retornou, as duas tiveram uma das conversas mais difíceis de suas vidas.
— Foi a primeira vez que ouvi o "neguinha" naquele tom pejorativo, de xingamento. A minha mãe precisou ter aquela conversa comigo sobre racismo e não foi nada fácil, eu tinha apenas quatro anos. Por isso, cresci muito consciente do que acontecia, me entendi como negra muito cedo — relembra Luciana. — Fui amadurecendo e tive uma fase mais introspectiva, um silêncio que acho que era de medo. Foi na adolescência que comecei a colocar tudo para fora. Decidi não me calar.
Mais de três décadas depois daquele papo franco com a mãe, Luciana segue sem medo de usar sua voz para alertar a sociedade e transformar a realidade ao seu redor. É professora, doutoranda em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e está por trás de uma iniciativa que inspira adolescentes e completa cinco anos em 2021: o Empoderadas IG (@empoderadasig no Instagram). Com um grupo de estudos, palestras e eventos, a iniciativa já instigou mais de mil porto-alegrenses a partir dos 13 anos a refletir sobre racismo.
Autoestima e racismo em pauta
A história do projeto e da própria "Sôra" Lu, como é conhecida pelos alunos, se misturam. Luciana é a caçula de três irmãos e faz parte de uma família batalhadora – a mãe é técnica em secretariado, e o pai, Gilberto, corretor de imóveis. Ela cresceu em Porto Alegre, entre os bairros Azenha e Partenon, e sempre admirou o trabalho de suas tias, professoras envolvidas com a luta pelo acesso à educação. Luciana sempre estudou em escolas públicas, da escola à graduação. Ingressou na UFRGS em 2003 para cursar Educação Física. Depois, passou num concurso e entrou para o magistério público estadual.
Foi aí que teve um choque: viu de perto que a educação antirracista pouco havia avançado desde sua época como estudante. Mesmo com a aprovação da Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira, na prática, as questões de raça e gênero não eram trabalhadas com os alunos. Luciana deparou com meninas pretas que não soltavam o cabelo ou sempre alisavam porque odiavam os fios volumosos. Deu aula para meninos que raspavam a cabeça ou usam boné por se sentirem constrangidos. Todos revelavam ter vergonha do nariz, dos traços e da cor da pele.
— Achei que ia encontrar outra realidade, mas vi os alunos passando pelas situações de racismo e violência que eu mesma vivi em sala de aula, e fiquei reflexiva. Essas crianças precisavam ter orgulho das suas origens, da ancestralidade. Era urgente mostrar que a história do negro é muito mais do que a escravidão — conta a professora de 36 anos.
No contraturno das aulas na Escola Estadual Ildefonso Gomes, na Capital, Luciana convidou suas alunas para conversar sobre cuidados com o cabelo. Um grupo composto por cerca de 10 meninas entre 13 e 16 anos aceitou o convite. O papo partiu da hidratação caseira dos fios e da transição capilar para aprofundar questões sobre racismo e direitos das mulheres.
— Elas achavam o meu cabelo bonito, mas eram reativas sobre deixar o delas natural. Aos poucos, foram aprendendo a cuidar, e muitas começaram a se ver diferente, pararam com a química. É difícil, há crianças negras que são estimuladas a alisar o cabelo desde muito cedo. Algumas de 11 anos alisam desde os cinco — explica Luciana.
Meninas negras empoderadas e que se amam passam uma mensagem muito potente. Elas se tornam as nossas porta-vozes
LUCIANA DORNELLES RAMOS
professora
Em poucos encontros, a troca de experiências mexeu com a autoestima das meninas. Passaram a se olhar com mais amor e a ter orgulho de seus traços. Uma das gurias que estava lá e segue no projeto até hoje é a estudante Maria Eduarda Pacheco Fernandes, 19 anos. Ela conta que a iniciativa impactou sua relação com a autoimagem porque resgatou a importância de suas raízes, de seus ancestrais, e revelou o cabelo como símbolo da história do povo negro. E mais: o grupo comandado pela "Sôra" Lu também fez a jovem repensar suas escolhas para o futuro.
— Ela sempre nos incentivou a querer mais, a fazer cursos, faculdade, a não se limitar. Nos incentivou a sonhar alto, a nos amar. Ver a empolgação dela e o quanto ela acredita na gente motiva a querer fazer mais — conta Maria Eduarda, que faz graduação em Design na UFRGS.
Hora de se reinventar
E não foram só as alunas que viram suas vidas mudar em razão do que aprendiam. Luciana precisou descobrir os caminhos para se tornar uma professora que levaria abertamente a educação antirracista para os adolescentes. Foi aí que mergulhou no assunto: passou a ler sobre o tema, buscou apoio no movimento negro de Porto Alegre, assistiu a palestras e participou de eventos. Conheceu pessoas com lutas semelhantes e teve suporte para trabalhar com propriedade por meio de atividades, vídeos, livros e pesquisas.
— Estava oferecendo uma educação que não tive. Por isso, precisei me preparar. Não trabalhei com autores negros na graduação ou na escola. Nem tive professores negros na faculdade — diz Luciana.
A relação conturbada com a autoestima também pesava para a gaúcha. Foi apenas quando entrou em um grupo de dança na UFRGS, durante a graduação, que passou a encarar seu corpo e cabelo com mais carinho e orgulho, a trabalhar a autoaceitação de fato. Ela também se sentia insegura com os planos para o futuro. Sonhava em ser professora universitária, mas não se enxergava capaz de ocupar aquele espaço. Em 2019, Luciana foi aprovada para uma vaga na pós-graduação em Educação.
— Enxergava muito de mim nas meninas. Ter mergulhado no projeto me mudou e impulsionou para estar no doutorado. E, hoje, elas também vislumbram um futuro cheio de perspectivas — defende Luciana.
Um grupo para todos
No início, o projeto havia sido batizado como O Poder do Crespo e o Empoderamento. Mas, como contava com a participação de meninas negras e brancas, as adolescentes decidiram abraçar a diversidade no nome do grupo. Assim, a iniciativa passou a ser chamada de Empoderadas IG — as duas letras remetem ao nome da Escola Estadual Ildefonso Gomes.
— Para mim, não tem sentido dialogar sobre racismo só com pessoas negras. Quem comete o racismo são os alunos brancos — explica Luciana. — Elas estavam abertas a entender questões como lugar de fala, representatividade, a refletir. Ninguém é imune ao racismo, e precisamos assumir isso para poder desconstruir.
Depois, o Empoderadas IG também passou a contar com a participação de meninos. O grupo começou a estudar a masculinidade e como o machismo afeta os homens e a sociedade. E o resultado foi positivo:
— Foi muito construtivo para todos. Vivemos numa sociedade machista, e os meninos conseguiram se abrir, falaram de sentimentos, o que é difícil.
Aos poucos, o projeto foi ganhando visibilidade e, ela, recebendo convites para palestrar em escolas. Nas redes sociais, a iniciativa angariou fãs – somando as páginas de Facebook e Instagram, são mais de sete mil seguidores. E a "Sôra" Lu também acionou reforços para manter o grupo de pé, como a ajuda das "sôras" Thaynah Mena Barreto e Tainá Albuquerque, e a parceria do fotógrafo Kadu Casales.
Novos desafios
Em 2019, o grupo saiu das dependências da escola e se tornou aberto, com encontros no Vila Flores – a maioria dos participantes mora na periferia. Com a pandemia, desde o ano passado, a saída foi apostar em encontros virtuais.
— Foi muito complicado, nem todos têm bom acesso à internet e podiam fazer chamada de vídeo. Intensificamos o contato pelo WhatsApp e seguimos com as atividades online. Nosso foco também é a saúde mental — conta Luciana.
Em paralelo, a professora ainda desenvolve outros dois projetos. No Afrofit, o foco é estimular a saúde do povo preto por meio do exercício físico. Já na Malê Afroproduções, a ideia é trabalhar a educação antirracista a partir da cultura. Por enquanto, todas as iniciativas seguem online em razão da pandemia. Mas, independentemente da forma, a "Sôra" Lu quer continuar impactando a vida de adolescentes e jovens por aí:
— Meninas negras empoderadas e que se amam passam uma mensagem muito potente. Elas se tornam as nossas porta-vozes. Estamos nos reinventando todos os dias para existir e resistir.