É comum ouvir que as crianças não são mais como antigamente. O ditado, embora carregado de um sentimento nostálgico, não está errado. A tecnologia e a pressa da vida na contemporaneidade têm provocado grandes transformações na infância e, para especialistas, ameaçado os alicerces da fase mais lúdica da vida.
Em seu novo livro, A Nova Infância em Análise, o psicanalista Celso Gutfreind apresenta uma reflexão sobre a importância de preservar atividades fundamentais para uma infância saudável, como a brincadeira, a fantasia e a contação de histórias. Em três décadas recebendo crianças em seu consultório, Gutfreind percebeu, no entanto, uma mudança nos últimos 10 anos, quando a rotina das famílias passou a afetar os pequenos.
O cenário é aquele que a maioria conhece: com os pais correndo de um lado para o outro para cumprir as missões da vida adulta, o tempo para interagir com os filhos é curto; às vezes, inexistente. Muitos lançam mão do videogame, do computador e do celular para suprir a necessidade de atenção e diversão das crianças. A elas, resta o passatempo solitário diante da tela. O resultado disso, diz Gutfreind, são crianças com menos habilidade de elaborar emoções, prejudicadas no que ele define como capacidade narrativa.
– É a criança com dificuldade de se expressar, com dificuldade de simbolizar, de dizer o que sente, de falar sobre o seu mundo interno. Uma criança com dificuldade de se concentrar, de prestar atenção – explica o psicanalista.
Em A Nova Infância em Análise, Gutfreind traz o exemplo de Roger, um menino de 10 anos viciado em computador. Como os demais casos citados no livro, trata-se de uma história ficcional elaborada com inspiração na realidade. O guri tem problemas de relacionamento com os pais e, na escola, dificuldade de concentração. Parece ter só a tela como vínculo afetivo. Longe dela, empreende longos silêncios diante do seu interlocutor. Em certa sessão de análise, ao vagar pela internet com a permissão de seu analista, o menino, questionado a respeito do que fazia, confessou:
– Não sei. Não sei agora o que eu quero nem o que eu estou pensando.
É justamente o estado de passividade das crianças diante da tela que pode trazer prejuízos. Para fazer uma comparação com a infância dos anos 1980, que cresceu assistindo à televisão, Gutfreind lembra que, naquela época, a família tinha o costume de se reunir para assistir a um filme ou à novela, momento em que se dividiam opiniões e visões sobre o mundo.
– A televisão era compartilhada. E a essência do celular é narcísica, egoísta, como a nossa sociedade vem se tornando nos últimos anos – critica o psicanalista.
Autor do livro Brincando com a Psicanálise e os Personagens Infantis (Artes & Ecos, 2019), o psicanalista infantil Jefferson Krug aproveita do exemplo da geração oitentista para mostrar como o imediatismo alcançado pelas tecnologias de hoje pode limitar a criatividade. Se as crianças daquela época precisavam aguardar o dia seguinte para conhecerem o desenrolar da história, e tinham, nesse meio tempo, espaço para inventar cenários e imaginar desfechos, a atual oferta de séries, desenhos e canais que podem ser “maratonados” no mesmo dia reduz as chances de fantasiar com os personagens.
– As coisas precisam de tempo para que ocorram, e as crianças de hoje, por um estímulo tecnológico, têm menos tempo para devanear, para imaginar, para criar alternativas. Elas buscam tudo imediatamente, sendo que esse espaço de falta é necessário para que a criança acesse um simbolismo. Sem isso, fica difícil que ela saiba lidar com a falta – reflete.
Para Krug, o risco de dar o celular para a criança toda vez que falta tempo para sentar ao lado dela no chão e brincar é quase confundir o aparelho com uma babá – nesse caso, uma babá incapaz de entender o pequeno em sua singularidade.
– A criança não está sendo cuidada, está sendo distraída. E, quando se volta para as relações, ela se sente angustiada.
Conectada diariamente a uma tela cheia de recursos e significados, sem tempo para elaborar suas próprias ideias e sentimentos e sendo atendida em seus pedidos com um simples comando de voz, a criança pode ficar distante de si mesma, com a impressão de que o mundo foi feito para satisfazê-la.
– Vou ser poético, mas a consequência disso é um adulto que não sabe sonhar. Um adulto que não sabe quem ele é, não sabe o que deseja, acha que o importante é o carro, a conta bancária, mas não sabe o sentido do trabalho dele e o que se pode fazer com aquele carro. É um sujeito que fica refém de demandas, sem poder criar, sonhar e desejar – diz Krug.
Não é que se queira demonizar o aparelho, como aconteceu com a própria televisão quando do seu surgimento. A psicanalista Laura Lichtenstein Corso lembra que, para que uma criança viva sua infância plenamente, ela não precisa ser criada no meio do mato, longe de qualquer tecnologia. A ideia não é ir aos extremos, mas incentivar que os pais encontrem um meio termo entre fruir das maravilhas da internet e viver momentos em família.
– Os pais têm que lembrar do que eles gostavam quando eram crianças, do que eles brincavam. Temos uma geração de pais que também cresceu com o videogame. Assistam desenhos juntos, para depois refletir junto sobre a história – incentiva Laura.
A consequência é um adulto que não sabe sonhar. Um adulto que não sabe quem ele é, não sabe o que deseja, acha que o importante é o carro, a conta bancária, mas não sabe o sentido do trabalho dele e o que se pode fazer com aquele carro. É um sujeito que fica refém de demandas, sem poder criar, sonhar e desejar
JEFFERSON KRUG
Psicanalista infantil
Krug observa que, para que haja uma aproximação da criança e do seu mundo virtual, o melhor é evitar julgamentos sobre o que seu youtuber preferido falou. A abordagem ideal é fazer mais perguntas, instigando que reflita sobre o que viu e ouviu.
– Com esse tipo de intervenção, fazemos com que a criança vá construindo o que ela pensa. Assim, ela se diferencia daquilo que está recebendo, vai construindo sua identidade, sem ficar simplesmente à mercê do que os outros dizem. Quando exigirem dela algum posicionamento, ela não vai ficar angustiada e responder que não sabe – afirma Krug.
É o contato com as impossibilidades da vida e o desafio de elaborar seus medos e angústias que podem ajudar a criança a se situar em um mundo repleto de contrariedades.
“A nova infância precisa brincar e narrar. Brincar e narrar não mata o dragão, mas pode, nos melhores casos, colaborar para conviver com ele. E, não raro, brincar com ele. Ou viver, apesar dele”, escreve Gutfreind em seu livro.
Não custa lembrar que a criança ainda é um ser em formação, carente de cuidados e moldada por mundo exterior que, por sua vez, é comandado pelos adultos. Para deixar isso bem claro, Gutfreind traz um verso de Erasmo Carlos, da canção É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo.
– As crianças são levadas pela mão de gente grande. Elas são frutos de um ambiente, e quem conduz esse ambiente são os adultos – diz.