Por Celso Gutfreind
Psicanalista, também é autor, entre outros, de “A Infância Através do Espelho: a Criança no Adulto, a Literatura na Psicanálise” (2014)
Afirmar que há uma nova infância pressupõe uma hipótese, o que proponho, afirmativamente, no livro A Nova Infância em Análise. Sim, haveria uma nova infância, como sempre houve, pelo menos desde quando a infância passou a ser estudada (vivida) como algo peculiar e específico, o que, aliás, é recente. Mas, para pensar assim, precisa não ver a criança como um punhado de células que funcionariam de acordo com o mandato de algumas substâncias que funcionariam de acordo como o mandato de alguns genes, com todo o processo submetido a alguma classificação exata.
Não se trata de desmentir que somos também esse punhado de células, sob o mandato de substâncias e de genes, mas essa é só uma parte da história. Porque há a outra parte, que pode, inclusive, ter alguma ingerência sobre o todo, e essa parte pressupõe justamente a história com a qual esses punhados terão de se ver. E pela qual podem eventualmente ser transformados. Porque somos seres relacionais à espera e à procura de encontros que são realmente decisivos e desenvolvem a nossa subjetividade ou a nossa diferença diante de todos os demais. Estou falando de diferenças, não de superioridade.
E há fatores culturais (sociais, econômicos, ambientais) que interferem nos encontros e vão interferir em quem somos, frutos de uma equação complexa que inclui representações afetivas de nossos cuidadores, mas também representações culturais de nossos ambientes. Tudo isso nos compõe, junto com as tais células, genes e substâncias. E, se tudo isso nos compõe, haverá sempre uma nova infância, pois haverá sempre novos cuidadores e novos tempos, com as suas novas representações, sempre em movimento.
Hoje, por exemplo. Cada criança nascida encontrará cuidadores absolutamente peculiares, a partir de sua história, e relativos, a partir de sua cultura. Crianças que chegam a mim, em geral, pertencem a um tempo e a um local que vangloria o seu nascimento (tardio, o que nem sempre foi assim), ao mesmo tempo em que desejam que ela deixe logo de ser criança para que seus pais possam retomar as suas carreiras, em uma sociedade violentamente capitalista, sem muito tempo para desvios de uma rota objetiva, e promover encontros de qualidade, aqueles essenciais para o desenvolvimento da pessoa.
Essas crianças, com frequência, já não encontram salvaguardado o seu (sagrado) espaço de brincar e, por incrível que pareça, já há evidências de que brincar é uma condição necessária para que uma criança se constitua como um sujeito livre para pensar e sentir. Ou seja, um herege. Ou seja, difícil. Questionadora. Opositora.
Os tempos não andam propensos para isso, se é que algum dia andaram. Não me leiam ou ouçam mal: não quero comparar nosso arremedo de civilização racista, narcisista, anti-ambiental com a violência exclusivamente anticivilizatória do regime Talibã (reparem que não uso, aqui, o termo cultura), mas um de seus “mandamentos” proíbe as crianças de soltarem pipas, como se, intuitivamente, conhecessem a obra de Freud e soubessem no que pode dar de “trabalho” uma criança que brinca.
No local e tempo que habito, crianças costumam chegar desprovidas dos tais encontros de qualidade, submetidas sem filtro, desde muito pequenas, a um excesso de videogames, em geral de péssima qualidade poética e narrativa. Por isso, costumam vir em pane (poética, narrativa), o que, infelizmente, costuma fazer parte da nova infância, com (felizmente) velhos pais que não perderam a empatia e o “amor” parental, ainda que ambivalente. E trazem os seus filhos para um verdadeiro trabalho conjunto de (re)construção de uma subjetividade, o que costuma ser feito com banhos de escuta (brincada) do presente e do passado, o que inclui a escuta da dor desses pais, desde a voz de seus próprios pais, ecoando na de seus filhos, conforme a imagem poética de Conceição Evaristo. E mais o incremento de banhos de encontros (poéticos) que costumam levar a criança à prosa até poder contar, contar e contar para si mesma e para os outros quem elas verdadeiramente são.
Simples assim. Complexo assim. Dessa forma, a nova infância aparece como carente de escuta e pouco considerada em sua subjetividade, justamente onde mais precisa. E, no meio de tantas técnicas criativas e estudos árduos, o nosso trabalho, às vezes, quando costuma ser mais efetivo, não passa de combater fundamentalismos desprovidos de consideração à alteridade e ajudar a criança a reencontrar a liberdade e o fascínio de soltar uma pipa.