Por Maria Carpi
Poeta e defensora pública, autora, entre outros, de “O que Resta Está por Vir” (AGE, 2019)
"Os poetas são aliados valiosíssimos e seu intermédio deve ser levado em alta conta, pois conhecem muitas coisas entre o céu e a terra cuja existência nem sonha a nossa sabedoria acadêmica." (Sigmund Freud)
Há uma realidade não abarcável pela razão humana. De que modo captá-la? Freud se acerca de Lou Salomé e de Rilke. Apropria-se da alma grega, através dos mitos e lendas. Édipo, que perdera a vida duas vezes, uma para os deuses e outra para os homens, a recebe multiplicada. A visibilidade tem a dobra, a sombra, a nervura, a cicatriz. A visibilidade requer olhos para dentro. E o inconsciente emerge dos sonhos, de falhas e lapsos, dos sintomas, como também das figuras de linguagem. A pessoa necessita ser escrita através de metáforas que desvelam velando. A “luz intelectual” não é suficiente. Fazer emergir algo pulsante, anterior ao pensamento.
E, se o criador da psicanálise traz à tona o inconsciente através dos sonhos adormecidos, a poesia é o sonhar com os olhos abertos. Arrancar um coração de pedra, reprimido, por um coração de carne, bradava o profeta Ezequiel. E buscar, como quer Maria Zambrano, a metáfora que parte das entranhas, com a luz enternecida da poesia. Desde a cavidade escura, com os olhos do assombro. A víscera secreta e delatora: o coração. A crisálida noturna liberando as asas das forças que nos inibem através do duplo movimento da sístole e da diástole. Desde o coração em chamas de Sócrates – e suas perplexidades – ao coração em chamas dos românticos.
A nobreza da poesia: uma interioridade que se abre. Entrar para sair.
Dizia-nos Quintana: “Sonhar é acordar para dentro”. Acordar a interioridade para a diástole do sair, o sangue venoso libera-se oxigenado pelas artérias da generosidade. E a generosidade não é estanque, não se fecha em si mesma. E também não é passiva, pois contém a raiva dos justos. Essa que não aceita o homem como objeto, aviltado e denegrido pela usura e pela violência, quando não se pode deixar de ver a deformação que a poesia aclara.
A nobreza do ser humano, consolidar uma comunidade fraterna do mais belo poema: o bem comum.
A poesia põe sol também no imperceptível. E compartilha com o leitor esse desdobramento, fazendo-o autor do iluminado, quando participa do risco da solidão da obra: abrir uma visão de mundo, criar outras possibilidades, como querem Holderlin e Ricoeur. Sonhar e sonhar poeticamente, isto é, de olhos abertos, não é apenas uma alternativa para um grupo restrito de pessoas. É um direito de cada criatura, como o pão e a moradia, a saúde e a educação, transformando-a em criadora, pois o homem, no dizer de Bachelard, “é uma criação do desejo, não uma criação da necessidade”.
Ao sonhar com os olhos abertos, imprimimos outro ritmo aos passos, inauguramos outra atmosfera, respiramos outro ar e somos mais intensos em tudo o que fazemos. Continuamos seres precários e passageiros, mas intensificamos o existir, marcamos a efemeridade com mais poesia. A solenidade do precário. As coisas mais comezinhas são grandiosas, ao perceber a vida em todas as suas manifestações.
Empédocles de Agrigento apontava como as matrizes do cosmos, quatro raízes ou elementos primordiais: o ar, a água, a terra, o fogo. A simpatia humana gera a irmandade dos elementos. E conhecer poeticamente é transformar, pois o objeto do conhecimento poético sempre está em fluxo, em devir. A metáfora é um deslocamento de sentido. O discurso científico verifica a realidade. A poesia vê o movimento em repouso e o mover-se da quietude. A beleza ou a sua ausência, a figura e a desfigura, o amor e o desamor, necessitam de um lento abrir de olhos, um demorar-se, próprio da poesia. A paciência ardente de Rimbaud, destacada por Neruda em seu discurso ao receber o Prêmio Nobel. Uma leitura inerte da vida não percebe as alegrias da terra. Como afirma Miguel de Unamuno: não há maior imaginação do que a realidade. A realidade sonhada.
Esse liame que a poesia estabelece de poeta a poeta, de geração a geração, de cidadão a cidadão do mundo, tece uma teia sem dono, cuja autoria é a própria vida. Assim como houve um livro, apenas um livro a guiar um povo errante, temos o sonhar acordado inserindo um fragmento na constelação do desejo para aclarar o firmamento de uma ética comunitária. O poeta sonha e se despede para o ingresso de outro sonhador. Toda a metáfora é uma trindade: nome gerando outro nome, rosto despertando outro rosto e o voo da Pomba da Paz.
A linguagem é a morada do homem. A linguagem está enferma. Sua cura ocorre com a união da poesia à prosa da existência.
Vamos construir, com mais poesia, a morada do homem.