Não, tu não estás ficando louco se nas últimas semanas teu sono tem sido marcado por sonhos, estes sim, amalucados. Na mesma medida em que a pandemia do coronavírus bagunçou nossas rotinas, seus efeitos se refletem no sono e também nos sonhos. Nas últimas semanas, a quantidade de postagens nas redes sociais em que usuários se mostram preocupados, ou apenas curiosos, com o conteúdo dos seus sonhos, tem chamado a atenção de profissionais.
Em São Paulo, por exemplo, um grupo de três psicanalistas e pesquisadores criou o “Inventário de Sonhos”, plataforma que recolhe relatos de sonhos tidos a partir do início de março, para estudos futuros sobre psicanálise e saúde mental (trata-se da continuação de pesquisa semelhante realizada durante o período de eleição presidencial no Brasil, em 2018). Também se espalhou mundo afora a hashtag #pandemicdreams (sonhos pandêmicos), um verdadeiro repositório de breves narrativas oníricas de toda ordem. Mas, além de fornecer material a estudiosos, podemos tirar algo dos sonhos para nossas vidas? A resposta é sim.
Primeiro, é importante compreender o que são os sonhos e porque eles são mais frequentes em períodos que experienciamos com maior intensidade, boa ou ruim. A psicanalista caxiense Rosmari Bergoli da Luz aponta que é normal sonharmos mais em fases que nos apontam mudanças de vida, como casamentos, separações, traumas, acidentes ou doença na família. A quarentena, por trazer incertezas e angústias e durar um período prolongado, pode ser considerada um trauma. E por isso é normal que esteja presente em nosso inconsciente, cujo sonho é uma porta de acesso.
– Os sonhos são atos psíquicos de realização de desejos e de resolução de angústias inconscientes. Assim como eles trazem uma história, um conto, sua construção por livre associação de memórias têm também significados escondidos, que buscamos desvendar com a análise. São instrumentos muito valiosos para o autoconhecimento, pois nos permitem encontrar novas soluções para problemas, compreendermos melhor nossa situação emocional, além de formular novas ideias. Isso porque eles estão sempre comunicando algo. O inconsciente é uma parte de nós muito maior do que o consciente – explica
A também psicanalista caxiense Rosita Esteves acrescenta que, ao contrário de outras experiências angustiantes, como o luto ou a violência, a pandemia do coronavírus representa uma vivência singular e inédita. Sem registros de como lidar com tal situação, nossos processos psíquicos passam por um incômodo, devido a não ter referências que ajudem a lidar com a situação.
– A mente precisa de um ponto de ancoragem, que é o que ajuda a lidar com processos complicados. Mas uma experiência que nos traz tanta incerteza sobre o futuro, aliado ao bombardeio de informações a que somos submetidos, traz uma perturbação que interfere, sim, no sono e nos sonhos – destaca.
ILÓGICOS, MAS NÃO ALEATÓRIOS
A estudante de Direito caxiense Débora Mussatto, 23, conta que passou a despertar mais cedo desde o começo da pandemia, mesmo sem precisar há um mês. Nas últimas duas semanas, passou a lembrar de todos os sonhos, com riqueza de detalhes. Sonha com pessoas que não vê e nem fala há muito tempo, como colegas de escola, que permanecem em sua mente depois de acordada. Sentiu vontade e mandou mensagem perguntando como essas pessoas estavam. Em outro sonho recente, lembra de ter dito a si mesma, em sonho: “tu não deves ficar justificando todas as tuas escolhas”.
– Quando acordei, pensei: “sabe que eu tenho razão?”. Acho que me fez reavaliar um traço de comportamento que eu precisava rever, além de voltar a ter contato com algumas pessoas, não para voltar ao que era, mas apenas para dizer que me importo. Nos primeiros dias me senti estranha, mas depois passei a ver relatos de mais gente que também está lembrando mais dos seus sonhos e isso me tranquilizou – conta.
A redatora publicitária bento-gonçalvense Carolina Carvalho, 34, também conta que passou a lembrar detalhadamente das histórias que vive em sonhos nas últimas semanas, algo incomum para ela, que normalmente esquecia logo após acordar.
– Tenho conseguido dormir bem nos últimos dias, principalmente porque evitei o consumo exagerado de notícias sobre a pandemia, que me deixava muito aflita. Coincidência ou não, passei a lembrar melhor dos meus sonhos desde então. Neles aparecem lugares quase esquecidos e pessoas que não vejo há tempos, e às vezes acordo com alguma palavra-chave na cabeça. Uma delas foi “confiança”, após ter sofrido um furto e meu pai ter dito que meu problema era ter confiado. O que ficou de mais forte do sonho foi essa palavra – conta Carolina.
Rosita Esteves aponta que é comum ter sonhos com situações em que estamos fragilizados, como é o caso da pandemia, mas por caminhos indiretos:
– Crianças tendem a ter sonhos mais diretos. Se passaram o dia com vontade de brincar com alguma coisa, vão sonhar com aquela coisa. O sonho dos adultos percorre caminhos mais deformados, que não seguem a lógica consciente. Isso pela ação do recalque (mecanismo de defesa, ou de repressão de sentimentos). Momentos de angústia, como o da pandemia, tendem a gerar mais sonhos de angústia, porém sem uma relação direta com esta situação. E os sonhos, sob o olhar da psicanálise, são sempre uma construção a partir das vivências registradas no mundo interno do sonhador. Não existe sonho premonitório.
Sobre sonhar com pessoas que não temos contato a bastante tempo, Rosmari Bergoli da Luz comenta que os sonhos buscam não apenas aquilo que é inconsciente, mas também conteúdos que estão esquecidos:
– Além de nos permitir acessar o inconsciente, os sonhos também nos conduzem ao pré-consciente, buscando conflitos que não sabemos que existem, mas que estão esquecidos. Alguns sonhos podem nos levar para esse “baú de memórias”. Será que está revelando um desejo de retomar um contato ou uma relação que deixou de existir por litígio ou por esquecimento? Algumas vezes pode ser, mas é preciso confrontar mais elementos da experiência pessoal para chegar mais perto de uma resposta.
Anotar e não levantar antes de lembrar
Quem quiser aproveitar o período de sonhos exacerbados durante a pandemia para conhecer melhor essas manifestações do inconscientes não tem de, necessariamente, recorrer à análise com um profissional. Trata-se de um exercício possível de ser feito em casa, e que pode ser proveitoso para ficarmos mais atentos ao que se passa em nossa realidade interna, ou psíquica, e reelaborarmos estratégias que irão ajudar na vida externa.
– Penso que é muito importante estarmos ligados aos nossos sonhos, e de modo mais especial nesse momento. O sonho está nos comunicando como estamos elaborando isso tudo. Prestar atenção ao conteúdo do sonho e tentar se perguntar a que ele pode estar associado: o que a gente tem dentro de nós que pode estar associado a isso e nos fazer chegar perto do significado desse sonho? De maneira camuflada, o sonho sempre está trazendo um significado. E tudo o que passamos a conhecer sobre nós mesmos nos enriquece e nos fortalece – comenta a psicanalista Rosita Esteves.
Uma forma de tentar lembrar por mais tempo e com mais detalhes dos sonhos é tentar “revivê-lo” cena a cena tão logo a gente acorde, necessariamente antes de sairmos da cama e sermos absorvidos pela rotina. Como um exercício, melhores resultados surgirão com a repetição da prática. Outra forma é fazer um “Sonhário”, um seja, um diário de sonhos. Com papel e lápis ao lado da cama, registrar o que foi sonhado com o máximo de detalhes, descrevendo cenas e também sensações experimentadas.
– Quando a pessoa sonha e sonha sonhos mais intensos, ou mais traumáticos até, isso já é fruto de um conflito que ela está vivendo no seu dia a dia. Eles acabam representando algo do dia a dia que para nós é algo “linkado” com o passado da pessoa. Todo sonho tem um componente simbólico de imediato, normalmente ligado a uma vivência das últimas 24 horas, mas tem algo não resolvido do passado, normalmente da infância – explica Rosmari da Luz.
É importante marcar a diferença entre correntes que atribuem aos sonhos poderes videntes, como prever acontecimentos futuros, e a análise dos sonhos como técnica da psicanálise. O médico neurologista e psiquiatra austríaco Sigmund Freud (1856-1939), considerado o pai da psicanálise, foi o precursor e continua sendo referência no estudo científico dos sonhos, assim como seu discípulo, o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961). Interpretação dos Sonhos, publicado por Freud em 1900, é considerado um marco para o início da psicanálise. O estudo parte da autoanálise do austríaco, que entendeu que os sonhos revelavam desejos e traumas guardados na parte da mente chamada de inconsciente, possível de acessar durante o sono.