Num Brasil de 213 milhões de habitantes e inflação acumulada de 8,24% em 2021, manter o sustento de uma família com um salário mínimo tornou-se um caminho difícil. Só que, com o desemprego na faixa dos 12,6%, conseguir um trabalho formal já é uma epopeia, e obter alguma renda complementar, então, um esforço homérico. É aí que a informalidade surge não como um caminho atraente, mas como o caminho possível.
Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que apontam a inflação e o desemprego também mostram que o número de trabalhadores por conta própria que não possuem Cadastro Nacional de Pessoal Jurídica (CNPJ) saltou 17,8% entre o segundo trimestre do ano passado e o mesmo período de 2021, onde estão os dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Trimestral (Pnad Contínua).
São aqueles sem qualquer vínculo trabalhista ou proteção do seguro social. O aumento é bastante superior ao registrado no contingente total de pessoas ocupadas, que ficou 6,3% maior do que o mesmo período de 2020 — boa parte puxada pelos autônomos, seja com ou sem CNPJ ou carteira assinada. Como um todo, o cenário ainda é pior do que no segundo trimestre de 2019, antes da pandemia. Mas, os dados mais recentes mostram recuperação em relação ao mesmo período de 2020, quando o coronavírus ainda assolava fortemente o país, com restrições de circulação e hospitais lotados.
Mas, porque o trabalho informal e, principalmente, o comércio ambulante em regiões centrais, costuma sempre ser saída em momentos de crise do Brasil? Quem são essas pessoas que abraçam o desafio diário de se expor às intempéries e também aos órgãos de fiscalização? Que num piscar de olhos montam e desmontam seus comércios móveis e desaparecem no meio de uma multidão onde cada vez mais encontram semelhantes.
Economistas e sociólogos ouvidos nesta reportagem, divididida em três partes no site de GZH, explicam um pouco destes fenômenos e traçam possíveis caminhos para o pós-crise. A administração pública também conta como lida com o crescimento da ocupação de espaços públicos e como equilibra fiscalização e diálogo. E os próprios ambulantes contam como fizeram a dura escolha pelo trabalho na rua.
A reocupação do Largo Glênio Peres
Ainda antes de sol propriamente iluminar o coração do Centro Histórico, em Porto Alegre, pontos coloridos já pipocam pelo Largo Glênio Peres. Poderia ser uma cena do começo deste milênio, quando camelôs ocupavam diariamente o espaço, formando um grande comércio a céu aberto — em fevereiro de 2009, a cidade mudou a cena concentrando esse comércio no Centro POP, a algumas centenas de metros dali. Mas, não, estes são relatos de 2021. Tudo bem, o tamanho da aglomeração é bem menor do que há pouco mais de uma década, mas não menos perceptível quando se olha para todo o Centro.
Por avenidas como Borges de Medeiros e Salgado Filho ou ruas como a Voluntários da Pátria e a Andradas, o número de vendedores ambulantes facilmente lotaria o Glênio Peres mais uma vez. De roupas a frutas, passando por hortaliças e verduras, calçados ou brinquedos e até eletrônicos, tudo pode ser encontrado sob um toldo, em cima de caixas de plástico ou espalhados sobre um tapete improvisado que facilite juntar os produtos rapidamente e dispersar do local caso um órgão de fiscalização surja numa esquina próxima.
Mesmo informal, o comércio a céu aberto do Centro não é desorganizado. Na área do Largo Glênio Peres, por exemplo, predominam os vendedores de alimentos in natura. É praticamente uma extensão do Hortomercado do Terminal Parobé. O local, aliás, era onde Osmar Model Selau, 50 anos, trabalhava como empregado. A pandemia bateu forte no movimento e o trabalho de Osmar, que era contratado informalmente e sem vínculos, chegou a se estender 2021 adentro. Mas, ainda no primeiro semestre, ele foi demitido.
Morador de Sapucaia do Sul, com esposa e dois filhos — um de oito anos e outro com 15 —, Osmar não teve tempo para lamentar. Conhecedor dos caminhos da Ceasa, logo começou a adquirir produtos para revender no Centro. Assim como boa parte dos comerciantes do local, armazena as cargas em espaços alugados por valores inferiores a R$ 50 semanais. Levar e trazer tudo de Sapucaia seria impossível, ainda mais para quem por volta das 6h já está embarcando no trem rumo à Capital.
De movimentos rápidos e conversa lúcida sobre "a situação do país", Osmar monta sua pequena feira em menos de 20 minutos, como quem encaixa um quebra-cabeça tridimensional. Os pequenos melões se empilham, os cachos de banana também. Os morangos ficam nas caixinhas, apartados e expostos na frente do comércio, escondendo a base das caixas plásticas onde brócolis, abacaxis, mamão e outros alimentos estão expostos.
— Fica à vontade, minha amiga — diz ele a uma provável cliente, enquanto dá os retoques finais na banca improvisada.
Na manhã em que a reportagem circulou pelo Centro Histórico, um vento atipicamente forte assolava o local. O comércio de Osmar não tinha cobertura, mas os que tinham, sofriam para manter as barracas montadas. Ainda assim, o sol era quente e o suor aumentava conforme o meio-dia aproximava-se. Enquanto secava a testa e batia as mãos como quem espana a poeira depois de concluir um trabalho, Osmar bradou sua sentença antes mesmo de ser questionado sobre a legalidade da ocupação:
— Se eu tivesse um trabalho certo, com carteira assinada e estabilidade, achas que eu ia querer passar por isso todo dia, ficar debaixo deste sol?
Osmar sempre trabalhou na informalidade, o que torna a migração para outras áreas ainda mais difícil. E essa é uma característica do trabalhador informal, a baixa qualificação para o mercado de trabalho, como aponta o economista e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Gustavo Inácio de Moraes.
— São pessoas quem têm maior vulnerabilidade às crises econômicas, como esta da pandemia. Quando o comércio informal aumenta, nota-se a maior frequência dessa população, que é quem precisa defender a sua renda — pontua Gustavo.
A informalidade também é consequência da perda do poder de compra. Por exemplo, se uma família tem uma pessoa trabalhando formalmente e ganhando um salário mínimo, com a desvalorização do dinheiro — a famosa inflação em alta — ou a redução de jornadas de trabalho, é preciso mais para se manter. Assim, outros membros do núcleo familiar precisam buscar ocupações. E nos momentos de crise, os trabalhos informais cumprem esse papel.
A socióloga e professora da Universidade Feevale Sueli Cabral pontua que a informalidade precisa ser dividida entre quem trabalha de maneira autônoma, mas tem condições e estrutura, e entre aqueles que estão nas ruas sem qualquer regulamentação defendendo uma fonte de renda.
— Nem todo trabalho informal é precário. Mas, todo trabalho precário é informal — sintetiza ela.
Desafio para completar a renda
O cenário citado por especialistas, de famílias que precisam de mais membros trabalhando para ter renda equivalente a um cenário econômico saudável, pode ser encontrado no caminho de Carina Oliveira Silva, 39 anos. Moradora do Beco do Adelar, na Zona Sul, ela bate ponto na Esquina Democrática — o cruzamento da Avenida Borges de Medeiros com o Rua dos Andradas —, de segunda a sexta-feira. De sorriso fácil e conversa tímida, ela conta que o trabalho do marido como vendedor não é mais suficiente para manter o lar. Os bicos que fazia como diarista sumiram junto com a chegada da pandemia, exigindo que outro caminho fosse traçado. E como esta reportagem tem mostrado, o caminho acaba sendo a informalidade.
— Peguei um dinheirinho que tinha guardado e comprei algumas coisas, principalmente, brinquedos — recorda Carina, que nunca tinha trabalhado na rua e agora está prestes a completar um ano como camelô.
Ela divide a casa com mãe, o marido e um filho de quatro anos. O espaço é alugado e tem dois pavimentos. O superior ocupado por Carina e a família e o inferior por sua mãe. Enquanto o casal trabalha na região central, a criança fica sob os cuidados da avó. Durante a conversa com a reportagem, Carina recebe um copo de café de uma colega de comércio ambulante.
— É assim, quem está na rua se ajuda. Quando um produto novo começa a ser muito procurado, a gente informa um para o outro, para todo mundo ter e vender — diz ela.
Essa é outra característica que move o comércio ambulantes: a sazonalidade. Conforme a época, a situação ou até mesmo o dia, o produto vendido pode mudar. Se nos dias chuvosos, emergem guarda-chuvas, nos dias sol, a oferta é de óculos escuros. Se um brinquedo viraliza nas redes sociais, logo está nas ruas. É o caso de pequenos cactos de pelúcia dançantes ou dos chamados "polvos bipolares", um brinquedo também de pelúcia que imita o animal marinho com duas faces, um lado está sorridente, o outro, bravo.
Mas tudo isso depende da participação da clientela. E o movimento não está bom. Aliás, este foi um ponto citado por todos os ambulantes ouvidos na reportagem. Nem datas como o Dia da Criança movimentaram o comércio ambulante.
— Acho que todo mundo está sem dinheiro, estamos vivendo no limite. Ganhando só o suficiente para sobreviver. No inverno o movimento estava melhor, mas agora, mesmo com o final do ano chegando, está fraco — lamenta Carina.
Perto da aposentadoria, longe de se aposentar
No Terminal Parobé, quem acessa ou desembarca de um ônibus, logo encontra alguns ambulantes apinhados com seus apetrechos presos aos corrimãos de acesso. Em pequenas armações de metal, como varais verticais, eles penduram o que vendem. Réplicas de camisetas de times de futebol, bonés falsificados, chapéus e máscaras de proteção individual personalizadas são os principais atrativos.
As máscaras, aliás, foram o caminho de entrada para o mercado de ambulantes no caso de Dirnei Machado, 63 anos. A ocupação costumeira, que era o trabalho com montagem e desmontagem para estruturas da construção civil, sumiu antes da pandemia, por volta de 2016. Desde então, Dirnei buscou em pequenos bicos o seu sustento. Com a disseminação do coronavírus no ano passado, manter a renda exigiu a entrada para o comércio de rua.
Não é um coincidência que o comércio de camelôs sempre se desenvolva em pontos centrais ou locais como terminais de ônibus e trens. Isso é uma característica cultural do país, como pontua a professora Sueli:
— É muito da perspectiva de como as cidades foram construídas. Desde o século XIX, temos o costume de ir para as praças, as feiras, esses espaços centrais da cidade. São pontos de fluxo para onde as pessoas convergem.
E por que esses ambulantes precisam estar perto dos pontos de fluxo? A arquiteta, economista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), Heliana Comin Vargas, explica que é a maneira de estar perto do cliente que esses vendedores atingem, que é aquele que compra por impulso.
— Ninguém sai de casa para ir comprar no ambulante, até porque nem sabemos se ele vai estar no mesmo lugar todo dia. Mesmo na 25 de Março (rua de São Paulo conhecida pelo comércio), as pessoas vão pelas lojas com preços acessíveis, não pelos ambulantes. São eles quem aproveitam esse fluxo existente lá para vender — explica Heliana.
Montando sua venda no Terminal Parobé, Dirnei consegue estar perto deste fluxo de compradores impulsivos. Com a fala firme e o olhar periférico sempre atento a possíveis fiscalizações, ele não aparenta nem um pouco a idade que tem. Parece ao menos uma década mais jovem. Porém, é justamente a idade que lhe preocupa. Dirnei precisa de apenas mais um ano de contribuição ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para conseguir a aposentadoria por tempo de serviço. O problema é que quanto mais avança no tempo, menos vê a chance de conseguir um trabalho formal.
— E ainda sou negro, então, é duas vezes mais difícil conseguir um trabalho — lamenta Dirnei.
Morador de Viamão, o homem desloca-se diariamente até a Capital para trabalhar. O período atual é complicado, aponta ele. As vendas mal cobrem os custos da operação e as contas de casa. Os produtos que vende, em sua maioria, são obtidos de fornecedores de forma consignada.
— Ninguém tem dinheiro, está todo mundo com a corda no pescoço. Ou melhor, a parte mais pobre está com a corda no pescoço. Hoje, temos uns cinco Brasis em um só. São os muito ricos, os ricos, a classe média, os pobres e os miseráveis. É muita desigualdade —pontua o ambulante.
A expectativa é de que o movimento melhore um pouco em dezembro. Mas, ainda assim, Dirnei vai deixar Porto Alegre junto com a chegada de 2022. Rumará para Santa Catarina, onde diz ter uma oportunidade de emprego garantida como vendedor de picolés, em Florianópolis. Com a garantia da carteira assinada, o serviço deve lhe garantir o tempo que falta para a aposentadoria.
— Também vou tentar conseguir um segundo emprego lá, para atingir mais rápido o tempo de contribuição — projeta ele.
Difícil em tempos normais, pior na pandemia
Em 2016, Saer Gueye, 33 anos, desembarcou no Brasil com a expectativa de conseguir oportunidades de trabalho na área em que atuava no Senegal, seu país de origem. Entretanto, a habilitação como motorista profissional e a profissão de mecânico de automóveis de nada serviram para conseguir um emprego formal em terras tupiniquins.
Depois da chegada no país por São Paulo, ele foi para Passo Fundo, onde tinha conhecidos. O Paraná também entrou no roteiro, mas sem sucesso por lá, retornou ao interior do Estado. A última tentativa antes de se estabilizar em Porto Alegre foi o Ceará, em 2018. Com a pandemia, migrou para a Capital e aproveitou os contatos que tinha para adquirir réplicas de calçados que vende na Rua dos Andradas. Saer não é o único imigrante no espaço. Aliás, outros se espalham pela Andradas e pela Borges de Medeiros. A maioria vende produtos falsificados, como relógios e roupas. Alguns apelam para os eletrônicos, como carregadores de celular.
O receio da fiscalização e a compreensão limitada do português tornam o diálogo difícil. Saer demonstra desconfiança durante a conversa, mas entende que se trata de uma reportagem, sem qualquer ligação com órgãos de fiscalização. Bem arrumado, de barba feita e com disposição, ele dá atenção para toda e qualquer pessoa que reduz o ritmo da caminhada para dar uma olhada nos calçados que vende. Entretanto, não esconde a cara de insatisfação com a negativa dos clientes.
— Todo mundo olha, mas ninguém leva nada. Agora, com o Natal, os preços subiram. Estava difícil vender antes, agora ficou ainda pior — cita Saer.
A cor da pele é um fato que liga Dirnei e Saer, assim como a dificuldade de conseguir trabalhos formais. Em todo o tempo que está no Brasil, Saer conseguiu ocupar um cargo com carteira assinada por apenas dois meses. Socióloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Patricia Sonia Silveira Rivero estuda a informalidade no Brasil. Ela também é autora do livro Trabalho: opção ou necessidade? — Um século de informalidade no Rio de Janeiro.
Por meio da análise profunda dos microdados da Pnad do IBGE, Patricia apontou como e quanto alguns fatores influenciam na busca por emprego no mercado de trabalho. Ser negro ou pardo, por exemplo, pode reduzir em mais de 20% a chance de ter um emprego formal, conforme os dados analisados por Patricia. Enquanto isso, apenas por ser homem e branco, a chance de ter um emprego formal cresce na mesma proporção. Outros fatores que dificultam a busca por trabalho, por exemplo, são o baixo nível educacional e a pouca experiência.
— A informalidade no Brasil, ao menos desde os anos 1990, representa mais de 40% do total de trabalhadores do país, é um número alto — diz a especialista.