Mesmo com os improvisos advindos da adaptação emergencial diante de uma pandemia que afastou bruscamente alunos de todas as idades das salas de aula, a situação atual do ensino tem muito a mostrar a todos os envolvidos na educação. Demonstrações de superação, a aproximação entre pais, estudantes e professores, o uso contínuo da tecnologia: com as aulas remotas, tem surgido uma série de aprendizados que devem se mostrar essenciais para o futuro da área no mundo que surgirá pós-pandemia.
A necessidade de mudanças aconteceu de forma súbita, sem tempo hábil para se providenciar a preparação adequada nem oferecer formação aos docentes ou aclimatação aos alunos. Mas aconteceu, e inevitavelmente estudantes, famílias e educadores em geral têm aprendido muito sobre si mesmos e sobre seus pares.
O legado que ficará disso? Professores mais criativos a partir do envolvimento com a tecnologia, alunos com maior autonomia, pais com melhor noção da importância da participação ativa na escola e, em geral, uma valorização maior e muito necessária do papel de quem é responsável por ensinar.
Há mais de três décadas estudando e aplicando tecnologias variadas em sala de aula – e fora dela –, a professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Lucia Giraffa entende bem a importância da presença maior de dispositivos e ferramentas online na educação.
– Sou uma apaixonada por ensinar. Sempre busquei alterativas para fazer aulas diferentes, mais personalizadas, mesmo com toda a carga que isso traz. E acredito muito que todo esse ferramental permite que a gente dê um grau de personalização que nunca se viu antes. Com meus colegas, passei mais de 30 anos pedindo uma chance para que as pessoas experienciassem esse ensino, e a pandemia proporcionou isso. Não posso ficar feliz pelo contexto, claro, mas fico pela oportunidade.
As pessoas estão realmente dando uma chance e descobrindo o que elas podem fazer – descreve a pesquisadora, que dá aulas em cursos de Ciências da Computação e em Educação.
O caráter emergencial e, portanto, não ideal dessas mudanças é destacado por Lucia e também por Angelita Renck Gerhardt, pró-reitora de Ensino da Universidade Feevale.
O cenário de desigualdade não nos permite ser muito otimistas. Quando vemos pela perspectiva de instituições que tiveram sucesso na transição e que estão prontas e dispostas a aproveitar as oportunidades, porém, o cenário futuro pode ser bastante promissor.
IRINEU GIANESI
Diretor do Insper
– Estamos avançando uma década em alguns meses – destaca Angelita, chamando atenção para o fato de que, apesar do que se pode tirar de positivo deste período, a situação está longe de ser a melhor.
Mesmo assim, conforme Lucia, o aprendizado que se pode tirar da adaptação da comunidade escolar em uma fase turbulenta como a atual pode servir para balizar ações que vislumbrem não só o futuro distante, mas que, pela sua urgência, ajudem imediatamente para o avanço do ensino no Brasil.
– Nós não vamos sair iguais dessa pandemia, porque os alunos, os pais, os professores, todo o ecossistema experienciou de forma intensa uma série de coisas que antes as pessoas estavam meio tímidas, receosas de tentar. Agora, elas estão ressignificando os preconceitos que tinham – ressalta a professora da PUCRS.
O que é jornalismo de soluções, presente nesta reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
O problema da desigualdade
Por mais que isso signifique que, sim, a educação a distância (EAD) ganhará força, há uma série de outras nuances envolvidas na questão. O uso mais constante de tecnologia não representa uma virada brusca rumo ao ensino totalmente remoto: demonstra, na verdade, que haverá menos espaço para educadores e instituições de ensino resistentes aos dispositivos eletrônicos, que podem e devem ser usados inclusive no ensino presencial.
A realidade exposta pela pandemia, porém, deixa claro também que nem sempre o que ocorre é algum tipo de resistência docente. Muitas vezes, e em especial na rede pública, há grande dificuldade de acesso dos alunos a alguma tecnologia na educação. Falta também formação de professores para que encontrem maneiras adequadas de aplicá-las em sala de aula, em lições online, nas diferentes formas possíveis de promover o conhecimento.
– A pandemia e o consequente isolamento afloram, sem dúvida, as diferenças sociais, expõem as fragilidades do nosso modelo e das restrições de acesso à internet e de todas as possibilidades que vêm com ela – relata Angelita.
Irineu Gianesi, diretor de assuntos acadêmicos do Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa, tem a mesma percepção: para ele, este período complicado já trouxe e ainda trará oportunidades de avanço e crescimento, ao mesmo tempo em que gerou males e perdas.
– Desafortunadamente, os dois efeitos não estão vindo para as mesmas pessoas, o que está sendo um fator de desigualdade social bastante grande – diz o professor.
Gianesi destaca que os problemas evidenciados neste período não terão solução rápida quando houver um retorno, se não à normalidade, pelo menos às aulas presenciais. Aquelas instituições que demonstrarem boa capacidade de adaptação, envolvendo alunos e professores nas inovações que tiverem proposto nos últimos meses, sairão fortalecidas.
– O cenário de desigualdade não nos permite ser muito otimistas em relação ao futuro do país, até porque os problemas da educação não começaram nesta pandemia. Ela apenas está aumentando a desigualdade. Quando vemos pela perspectiva de instituições que tiveram sucesso na transição e que estão prontas e dispostas a aproveitar as oportunidades, porém, o cenário futuro pode ser bastante promissor – diz o diretor do Insper.
A maior dificuldade do período atual veio da mudança de hábitos. Certamente, entre as principais mudanças que poderão se tornar permanentes ou, ao menos, permear as práticas de ensino-aprendizagem, está a incorporação de ferramentas que antes não eram utilizadas, apesar de disponíveis.
ANGELITA GERHARDT
Pró-reitora da Feevale
Um dos maiores aprendizados, conforme os educadores ouvidos para esta reportagem, está na diminuição do receio quanto ao uso de ferramentas online, o que inclui o ensino remoto. Para Gianesi, há ainda uma visão, não totalmente injustificada, de que o ensino a distância é algo de menor qualidade e menor valor.
– Acredito entretanto, que gradativamente mais e mais instituições de qualidade vão se aventurar nessa modalidade e oferecer cursos que terão reputação tão boa e com preços comparáveis à versão presencial. A segmentação se dará pela conveniência do aluno. Isso poderá mudar a percepção geral de que EAD tem qualidade inferior, e migraremos para um ambiente mais próximo do que ocorre na América do Norte e na Europa, onde tanto no presencial como no EAD há ofertas de excelente qualidade e também de qualidade ruim – define o professor.
Gianesi explica ainda que muitas instituições tinham as condições de rapidamente migrar para modelos de ensino remoto – algumas, segundo ele, nem sabiam disso e descobriram “no susto” –, e o fizeram com relativo sucesso, aprimorando suas experiências de aprendizagem ao longo dos meses para garantir o aprendizado dos alunos:
– Com os bons resultados, muitas resistências e preconceitos em relação ao uso de tecnologia estão caindo, e essas instituições terão grande oportunidade de repensar seus modelos de ensino, elaborando uma combinação com o melhor que a tecnologia e as atividades presenciais podem trazer.
Ao estudar em casa, a organização ficou a encargo do próprio estudante e de sua família. Essa autonomia em organizar os tempos e os espaços de estudo exigiu um aprendizado muito grande, talvez mais complexo e difícil do que lidar com as diferentes tecnologias que passaram a ser usadas.
MARIA ELISABETE BERSCH
Coord. Pedagógica dos cursos de graduação a distância da Univates
As tecnologias digitais, quando bem aplicadas, favorecem a comunicação entre professores e estudantes, famílias e escolas ou universidades. Enquanto recursos muito simples, como o WhatsApp, já possibilitavam o encaminhamento de atividades aos estudantes, ambientes virtuais de aprendizagem agora apoiam o desenvolvimento de atividades mais elaboradas e, inclusive, exercícios realizados em grupo, explica Maria Elisabete Bersch, doutora em Comunicação e coordenadora pedagógica dos cursos de graduação a distância da Universidade do Vale do Taquari (Univates).
– Estamos aprendendo muito para nos adaptarmos ao contexto atual. Aprendizagens que possibilitarão inventar novas composições, inventar novas formas de ensinar e aprender para os tempos que estão por vir.
Para Gianesi, há de se observar, ainda, que muitas instituições, principalmente as públicas, seja por carência de recursos básicos ou pela característica de seus estudantes, não conseguiram achar alternativas viáveis ao ensino presencial que foi interrompido, sendo obrigadas a interromper totalmente suas atividades ou mesmo “fingir” que conseguiram mantê-las, mas com qualidade abaixo do que se consideraria razoável.
O virtual que veio para ficar
Mesmo com a exigida profusão de lições a distância, em muitos casos, independentemente da boa adaptação ou não ao ensino remoto, foi o gosto pelas aulas presenciais que ganhou força, relatam os docentes. E dessa constatação também se pode tirar lições, como a importância do papel do professor, a dificuldade de estudantes gerirem o próprio tempo e a necessidade de organização pessoal e familiar para o bom aprendizado. Mas há também quem tenha descoberto que consegue conciliar bem as aulas com outras atividades, mesmo com as restrições para sair de casa.
– Muitos alunos relatam que aprenderam a utilizar as ferramentas, conseguem desenvolver aprendizado a distância, mas descobriram que, definitivamente, preferem a presencialidade. Por outro lado, muitas pessoas que se viam avessas ao uso da tecnologia, agora até mesmo forçadas pelo home office, descobriram benefícios no modelo de ensino virtual – conta Angelita Gerhardt, da Feevale.
Para as escolas e universidades, também fica um legado. Educadores explicam que as instituições reforçaram, ao longo da pandemia, seus investimentos em infraestrutura de tecnologias da informação e comunicação a fim de manter as atividades, além de abrir um leque de ofertas de serviços virtuais que talvez antes não tivessem grande demanda, como as bibliotecas virtuais e os ambientes digitais de aprendizagem, que certamente passarão a estar mais presentes, ainda que de forma complementar, na vida de todos os estudantes e professores no período pós-pandemia.
A superação das dificuldades em tempo recorde, exigindo forte adaptação de todos os educadores, dos alunos e das famílias, será outro importante aprendizado.
– A maior dificuldade do período atual veio da mudança de hábitos, forçada pela necessidade de um conjunto de habilidades e conhecimentos que até então não eram necessários, tanto para quem ensina quanto para quem aprende exclusivamente no modelo presencial. Certamente, entre as principais mudanças que poderão se tornar permanentes ou, ao menos, permear as práticas de ensino-aprendizagem, está a incorporação de ferramentas que antes não eram utilizadas, apesar de disponíveis – projeta Angelita.
A virtualização de laboratórios – para acesso em nuvem dos softwares disponíveis apenas nas instituições – a colaboração online, em tempo real e com ganho de produtividade, o acesso a colegas e professores facilitado fora dos horários de aula são algumas das lições que, aprendidas às pressas, deverão manter sua importância daqui para a frente.
Famílias mais participativas
Além do uso de tecnologia em sala de aula e fora dela contribuindo para a educação no futuro – e mesmo a curto prazo –, outros aprendizados que devem se tornar duradouros, dando impulso à educação no país quando passada a pior fase da pandemia, incluem a aproximação entre famílias e instituições de ensino, e ainda um desenvolvimento maior da criatividade dos professores e da autonomia dos alunos.
Com os bons resultados, muitas resistências e preconceitos em relação ao uso de tecnologia estão caindo, e as instituições terão grande oportunidade de repensar seus modelos de ensino, elaborando uma combinação com o melhor que a tecnologia e as atividades presenciais podem trazer.
IRINEU GIANESI
Diretor do Insper
Para Maria Elisabete, em muitos contextos, em especial na educação básica, passou a haver um envolvimento mais amplo das famílias com as atividades escolares, com pais auxiliando crianças e adolescentes em seus exercícios de aprendizado em casa. Essa necessidade de apoiar os filhos de forma mais intensa, explica a pesquisadora, também demandou maior contato e proximidade das famílias com os professores. O próprio fato de estar no mesmo ambiente dos filhos durante as aulas reforça a aproximação.
– Por parte dos estudantes, há todo um aprendizado de como é estudar de uma forma diferente, com a qual eles não estão acostumados. Na Educação Básica, as crianças e os adolescentes estão muito acostumados com tempos definidos e com a condução das atividades pelo professor. “Agora é hora de estudar português”, “agora é hora do lanche”. Ao estudar em casa, essa organização ficou a encargo do próprio estudante e de sua família. Essa autonomia em organizar os tempos e os espaços de estudo exigiu um aprendizado muito grande, talvez mais complexo e difícil do que lidar com as diferentes tecnologias que passaram a ser usadas – diz ela.
Para a pró-reitora de Ensino da Feevale, não será possível retroceder: os investimentos realizados neste período precisam ser utilizados para melhorar a experiência de aprendizagem dos alunos.
Com meus colegas, passei mais de 30 anos pedindo uma chance para que as pessoas experienciassem esse ensino, e a pandemia proporcionou isso. Não posso ficar feliz pelo contexto, claro, mas fico pela oportunidade.
LUCIA GIRAFFA
Professora da PUCRS
– Talvez o mais importante no período pós-pandemia seja não querermos voltar ao que éramos antes, trabalhar e aprender como o fazíamos antes, mas reconhecer os avanços que nos obrigamos a desenvolver e planejar o futuro tendo este momento atual por base, e não mais, por exemplo, a situação que tínhamos em fevereiro de 2020 – destaca Angelita, da Feevale.
Os educadores apontam que autoconhecimento, resiliência, flexibilidade, organização autônoma, planejamento do tempo e das atividade e definição de metas diárias e semanais no ensino serão, para muitas pessoas, uma construção permanente, que poderá ser incorporada de forma definitiva à vida pós-pandemia.
– Mas também não podemos nos esquecer daqueles que, sozinhos, não deram conta, não pediram ou não obtiveram ajuda, por algum motivo tiveram de desistir dos estudos e, passada a pandemia, precisarão lidar com essas questões e, eventualmente, com o sentimento de fracasso, de tempo perdido. Precisamos ajudar essas pessoas a replanejar seus percursos e continuar em busca de seus sonhos – diz Angelita.
Os especialistas descrevem que, reconhecendo as diferenças sociais presentes na educação e o quanto essas diferenças prejudicam mais alguns alunos do que outros, especialmente na rede pública, ver a exposição clara desse tipo de fragilidade pode, no fim, também servir como um legado para a discussão sobre o ensino no Brasil. A consciência das desigualdades, dizem os educadores, nos obriga ao enfrentamento do problema, e talvez este seja um dos grandes legados que poderemos construir para o período pós-pandemia, a depender das políticas públicas e das ações diretivas.
Se formos capazes de aproveitar o aprendizado para evoluir, de acordo com os educadores, poderemos utilizar a tecnologia – que permite um percurso formativo mais individualizado, complementando as propostas presenciais – para reduzir as diferenças sociais que se fazem tão presentes e determinantes dos destinos na educação brasileira.
Alguns legados da pandemia
Para os professores:
- Exploração da criatividade – A necessidade de encontrar maneiras alternativas ao tradicional quadro negro para ensinar tem demandado constante adaptação por parte dos professores, o que pode se mostrar valioso no futuro. Pensar novos métodos didáticos se tornou imperativo quando só se tem como possibilidade, por exemplo, ministrar uma aula via aplicativo de imagem. "Estamos tendo de buscar alternativas muito diferenciadas para garantir a melhor qualidade possível, e isso leva a uma explosão de criatividade", define a professora da PUCRS Lucia Giraffa.
- Formação docente – A realidade diante da pandemia também levou à percepção (que, especialistas apontam, não é nova) do quanto é preciso promover constante formação para os profissionais da educação. A falta de conhecimento de tecnologias prejudica, por exemplo, professores da rede pública, exigindo semanas de treinamento que poderiam ter sido usadas para reduzir o atraso no reinício das aulas, ainda que de forma remota.
- Valorização da profissão – Talvez uma das percepções mais claras deste período de crise advinda do coronavírus é o quanto os professores passaram a ser valorizados. Mais do que pelo esforço em promover, em muitos casos pela primeira vez, aulas online, e talvez pelo fato de “invadirem” as casas dos alunos na presença dos pais, os estudantes e seus familiares passaram a enxergar com clareza a importância da profissão em todas as suas facetas.
Para os alunos:
- Mais autonomia – A pandemia evidenciou que, sem aulas presenciais, os estudantes dependem muito de si mesmos para manter uma rotina de estudos, realizar os exercícios e, em certa parte, também aprender por conta própria. Essa autonomia, defendem educadores, é muito benéfica para o ensino: um aluno que busca conhecimento por vontade própria tem mais chances de, mais do que simplesmente compreender o que é exigido dele, também ir além disso, buscando mais conhecimento e construindo assim o seu percurso.
Para as escolas:
- Uso de tecnologia – Independentemente da situação de emergência que promoveu o uso de dispositivos tecnológicos no ensino, essa digitalização deverá permanecer. "É certo que todos estarão mais abertos a incorporar novas tecnologias ao processo de ensino-aprendizado. Não será possível retroceder. A pandemia está nos forçando a revisar preconceitos e concepções do ensino exclusivamente presencial, assim como tantas outras resistências", diz Angelita Renck Gerhardt.
- Proximidade com as famílias – Mais do que na busca por renegociação de matrículas e a tentativa de evitar a evasão de estudantes diante de um cenário de incertezas, a aproximação entre pais e escola (ou entre universitários e suas faculdades) mostrou que há muito espaço para a atuação em conjunto. Instituições de ensino mais abertas e famílias mais participativas só fazem bem para a educação, e isso, se continuar no pós-pandemia, deverá trazer benefícios a toda a comunidade escolar.