Que a pandemia que virou o mundo de cabeça para baixo nos últimos meses terá impactos econômicos e sociais significativos, embora ainda difíceis de mensurar, não resta dúvida. Refúgio de muitos durante o distanciamento social, a cultura deve ser das áreas mais afetadas pelo vírus, cujo potencial de propagação torna impossível saber quando e em que formato o setor, vinculado a espaços de uso coletivo, retomará suas atividades.
Do ponto de vista estético, é possível dizer que o coronavírus já contamina a produção artística visual. Seja diretamente, por meio de retratos e ilustrações do novo cotidiano imposto pela doença, até abordagens mais sutis sobre as angústias do confinamento e a expectativa pelos reencontros, a temática tem aparecido cada vez mais em trabalhos divulgados por meios virtuais.
– Existe uma diferença grande entre racionalizar um trauma e constituir uma verdade íntima. A arte vivencia isso de forma pública. Entra nessa carga emocional agenciada nesses momentos catastróficos e torna ela um símbolo que se possa identificar – diz o artista, curador de arte e professor da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) Munir Klamt.
No Instagram, o perfil The Covid Art Museum tem reunido materiais de artistas de todo o mundo relacionados à pandemia. Autointitulado “o primeiro museu do mundo nascido durante a quarentena de covid-19”, recebe e divulga fotografias, vídeos e ilustrações que abordam diferentes aspectos do atual momento, a exemplo do uso de máscaras – retratos icônicos de artistas como Salvador Dalí e Frida Kahlo aparecem com o adereço –, o isolamento, o vazio das cidades e a crise no consumo.
Em poucas semanas, o projeto de três publicitários espanhóis soma mais de 1 mil publicações e quase 61 mil seguidores. Na postagem que explica sua criação, dizem que o “momento de pausa e reflexão permite às pessoas liberarem sua criatividade”, o que promete, na sua percepção, resultar em um marco na história da arte: “Somos testemunhas do nascimento de um novo movimento artístico. A arte em tempos de quarentena. A arte covid”. Embora possa soar presunçoso, o tom da descrição tem respaldo em acontecimentos passados.
A história mostra que períodos traumáticos têm impacto direto na produção artística, por vezes impulsionando verdadeiras revoluções criativas e estéticas. O exemplo mais emblemático teve raízes justamente em outra pandemia. A peste bubônica, em outros tempos chamada peste negra, que devastou a Europa no século 14, é reconhecida como uma das principais impulsionadoras do movimento renascentista, cujos expoentes são artistas italianos que viviam em cidades especialmente afetadas pela doença.
Mais tarde, pelo menos outros dois momentos de ruptura viriam a se mostrar particularmente influentes nas artes visuais, em especial na Europa e nos Estados Unidos: o período entre guerras, que tem início com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), acompanhado da pandemia de gripe espanhola, e o pós-Segunda Guerra (1939-1945), no qual estudiosos situam o início da arte contemporânea.
– Os grande traumas nos exigem novos discursos, novas formas, novas posições na vida, na medida em que atestam uma certa falência, um certo fracasso de uma forma de viver. Isso nem sempre se efetiva de fato, pois a história sofre de reminiscências, e os traumas retornam, por vezes disfarçados, mas a arte resiste a essa repetição e arrisca propor, pensar, imaginar, desejar outros horizontes – avalia o psicanalista Edson André de Sousa, professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor, entre outros livros, de A Invenção da Vida: Arte e Psicanálise (2001).
Arte para sair da escuridão
Pandemia mais devastadora registrada até os dias atuais, a peste bubônica resultou na morte de 75 a 200 milhões de pessoas, atingindo o pico na Europa entre os anos de 1347 e 1351. Um dos epicentros da doença no continente foi a região da Toscana, na Itália. Berço de artistas como Sandro Botticelli, Leonardo da Vinci e Donatello, a Toscana viu nascer, no período imediatamente subsequente à pandemia, o movimento renascentista.
– Antes da peste, artistas já davam indícios de como os homens daquele período estavam se vendo, como sujeitos que poderiam transformar a sociedade, não pelo poder de Deus, mas pela organização social. Também indicavam uma valorização do sujeito e de suas emoções – recorda a crítica, historiadora de arte e professora do Instituto de Artes da URFGS Paula Ramos.
O trauma da doença intensificou as mudanças culturais que se refletiram na literatura e ganharam o mundo com pinturas que seguem expostas nos principais museus. Obra-prima de Giovanni Boccaccio e uma das mais emblemáticas do período, o Decamerão (1353) é um compilado de histórias contadas por 10 jovens e dá claros sinais do que viria a aparecer com força em toda a produção artística da época, como a presença do erotismo, o paganismo e a celebração do presente.
Em sua coluna no caderno DOC e GaúchaZH, o historiador, arqueólogo e professor da UFRGS Francisco Marshall observou que “a peste desmascarou as promessas fantasiosas da religião, pois pouco importava orar e sacrificar-se – todos morriam! – e abriu espaço para o ceticismo e o livre-pensar”. A mortandade sem precedentes deu margem para que a moralidade anti-erótica imposta pela Igreja Católica começasse a ser questionada pela população, que, diante da fragilidade da vida e do fracasso dos apelos religiosos, passou a enxergar valor nos prazeres mundanos e imediatos.
Ainda no século 14, foi possível observar mudanças nos padrões estéticos que vieram a reboque do novo modo de pensar. Nas obras de Donatello, a presença dos putti, figuras angelicais em movimento, surgia como elemento de quebra do rigor, imprimindo ritmo e sensualidade às imagens – tornaram-se tão recorrentes que há algumas delas na tumba do artista.
É cedo para dizermos o que será da arte após a pandemia atual. No primeiro momento, será um cenário de crise. Um capítulo mórbido será o sofrimento dos artistas, que não estão sendo assistidos para garantir a sobrevivência do seu trabalho. A arte não sairá respondendo com mensagens alegres, motivacionais. Vai sofrer antes de se transformar.
FRANCISCO MARSHALL
Historiador, professor da UFRGS
Na esteira da exaltação da sensualidade e dos prazeres mundanos, passaram a frequentar a produção artística figuras ligadas ao paganismo e a seres mitológicos, como Dioniso (ou Baco), que deixou de ser demonizado para tornar-se ícone da boa vida. A conjunção de ambos atinge o ápice na obra de Botticelli, que, mais de um século depois da pandemia, pinta o primeiro grande nu frontal em O Nascimento de Vênus.
– A arte renascentista é afrodisíaca. Inicia com a construção do erotismo, e Afrodite preside isso. Boticelli pintou o programa cultural pagão da elite florentina e seu novo estilo de vida, que olha para a sensualidade e o prazer – avalia Marshall.
O absurdo contra o horror
Séculos depois do surto que contribuiu para a reinvenção da cultura e da arte na Europa, o continente celebrava uma fase cosmopolita e de exaltação ao divertimento quando, em 1914, eclodiu a Primeira Guerra Mundial. O grande conflito entre nações, que pôs fim à Belle Époque, atravessou os movimentos de vanguarda artística iniciados naquela década, como o expressionismo, o cubismo e o futurismo.
Mas a mais radical e combativa das vanguardas surgiria apenas na segunda metade da guerra, em reação a ela. Criado em 1916 por artistas europeus refugiados na Suíça, um território neutro, o Cabaré Voltaire, em Zurique, inaugurou oficialmente o dadaísmo, que celebrava o absurdo por meio de performance, poesia e arte conceitual, e que viria a se espalhar por diversas cidades.
Enquanto outras vanguardas recusavam a estética ou os estilos que as precederam, o dadaísmo propunha a negação de toda a arte, assim como da moral, da política e da religião, evidenciando a falta de perspectiva diante da guerra. Nas palavras do poeta Tristan Tzara, um de seus fundadores, “os primórdios do dadá não eram a arte, mas o nojo”. Um artigo sobre o movimento publicado no site do Tate Museum cita o artista Hans Arp: “Revoltados pela carnificina da Guerra Mundial de 1914, nos dedicamos às artes. Enquanto as armas ressoavam a distância, nós cantávamos, pintávamos, fazíamos colagens e escrevíamos poemas com toda nossa energia”.
A produção artística dadaísta é fortemente marcada pela aparente falta de sentido. Nas artes visuais, os ready-made de Duchamp são uma das principais expressões do espírito do movimento. Ao transformar objetos como um mictório ou uma roda de bicicleta em obras de arte, realiza uma crítica radical ao sistema. Outro expoente do dadaísmo, Max Ernst fez referência direta à guerra em suas colagens, usando imagens de pilotos e bombas retiradas de reportagens ilustradas.
O período entre guerras foi marcado, ainda, pelo surgimento de uma das mais influentes escolas de arte, arquitetura e design. Em 1920, poucos anos depois do Cabaré Voltaire, Weimar, cidade alemã sem relação com as vanguardas, viu nascer a Bauhaus, sob a direção de Walter Adolf Gropius.
– Socialmente, os anos 1920 foram anos loucos. Um período de festejar as vidas que não não foram ceifadas pela guerra e, também, pela gripe espanhola (pandemia que matou dezenas de milhões de pessoas entre 1918 e 1920). Mas, ao mesmo tempo, existia a ideia de que se havido ido longe demais, inclusive na arte, e clamava-se um retorno à ordem – diz Paula Ramos.
A escola recém-criada tinha como objetivo dar um sentido de construção após os anos de destruição da guerra. Para isso, contou com nomes de profissionais destacados em suas áreas de atuação, como o pintor russo Wassily Kandinsky, o arquiteto alemão Ludwig Mies van der Rohe e fotógrafo húngaro László Moholy Nagy.
Mas o impasse da sociedade alemã estava longe de ser resolvido. A polarização que culminou na Segunda Guerra Mundial levou a Bauhaus se radicalizar, e vários alunos aderiram ao Partido Comunista. Na mira de um governo cada vez mais autoritário, a escola foi fechada pelos nazistas na Alemanha em 1933, depois de mudar de cidade duas vezes.
O silêncio vira abstração
Conflito mais letal da história da humanidade, com mais de 50 milhões de mortos, a Segunda Guerra Mundial provocou mudanças não só no mundo até então conhecido, mas no sentido do fazer artístico. Seu fim é considerado um marco transitório entre a arte moderna e a contemporânea, que segue até os dias atuais.
Em um artigo sobre a produção desse período publicado na revista Wall Street Internacional, a professora da Universidade de Algarve (Portugal) Mirian Tavares destaca que diversos artistas tentaram, com a pintura e o desenho, refletir sobre o que aconteceu à humanidade ao final de duas guerras mundiais: “Apesar do horror do Holocausto, a arte ainda consegue falar. O que mudou, sem dúvida, foi o seu discurso e a sua forma. Na falta de uma imagem no mundo que pudesse traduzir em formas o indizível, optou-se por seguir o caminho da abstração”.
Com a Europa devastada, o eixo da arte movimentou-se para os Estados Unidos. Nova York passou a ser o centro dos acontecimentos, com a profusão de museus e galerias e a migração de diversos artistas que deixaram seus países depois do conflito. Foi no novo epicentro das artes visuais que nasceu um dos movimentos mais emblemáticos do período.
O expressionismo abstrato é considerado o primeiro grande momento da arte no pós-Segunda Guerra. É quando artistas como Jackson Pollock e Mark Rothko optam por falar por meio do silêncio, abandonando as representações figurativas em detrimento das manchas, da sobreposição de cores e de um intenso trabalho gestual.
– É o tempo do estupor, da morte narrativa. Essa ideia aparece na obra do Rothko, com uma sobreposição de cores quase impenetráveis, e na de Pollock, na marcação dos gestos. Ele suprime a narrativa e deixa que o próprio corpo fale. Algumas pessoas pensavam que era apolítico, mas era um trabalho radical – diz Mirian Tavares, em entrevista a GaúchaZH.
Se a abstração foi o caminho escolhido por parte dos artistas para refletir sobre o horror, a deformação e a violência foram a maneira de um dos principais expoentes da época expressar o inexpressável. A obra do pintor irlandês Francis Bacon retrata, através de rostos desumanizados, corpos mutilados e imagens deformadas, uma visão pessimista e cruel da figura humana. Um dos quadros mais significativos do seu período pós-Segunda Guerra, Homem com Cão (1953) esvazia a figura humana de substância, representando o homem como uma sombra ao lado do animal, em uma rua escura e deserta.
Além dos reflexos na estética, a migração da arte para o território norte-americano também provocou alterações significativas no mercado. O papel dos curadores ganhou relevância, e os críticos de arte passaram a atuar como mediadores entre a essência das produções e o público. O período abriu caminho para vertentes mais comerciais, como a arte pop.
– A partir dali, alguns movimentos passam a assumir nos seus discursos a questão da cultura de massa, no caso da arte pop, confirmando-o, e no caso da arte conceitual, negando esse discurso – observa a pesquisadora portuguesa.
Paradoxalmente, outras linguagens “globalizaram-se” em suas respostas ao trauma da barbárie a partir de outros centros de produção. O cinema, por exemplo, modernizou-se com movimentos como o Neorrealismo (Itália) e, depois, a Nouvelle Vague (França), incorporando alterações estéticas para dar vazão à expressão do horror. O desenvolvimento dos documentários, com o chamado Cinema Verdade, aproximou as representações da realidade, enquanto os experimentos audiovisuais dos vanguardistas de Nova York trilhavam caminho contrário. A idade contemporânea, na arte, também foi uma era de diversificação dos discursos, que ganharam vazão acompanhando a evolução técnica e as liberdades conquistadas no pós-guerra.
E após a nova pandemia?
Diferentes entre si e na forma como se refletiram na arte, os grandes traumas históricos têm pontos em comum: assim como a pandemia de coronavírus, suscitaram incertezas e expuseram a fragilidade da vida, despertando dor, medo e angústia. Se, no passado, havia pouco a se projetar sobre futuros acontecimentos, no mundo atual, no qual as mudanças ocorrem a cada segundo, é ainda mais delicado estimar quais as possíveis consequências que o surto que atravessou o planeta em apenas três meses poderá ter na arte.
– É cedo para dizermos o que será. No primeiro momento, será um cenário de crise. Um capítulo mórbido será o sofrimento dos artistas, que não estão sendo assistidos para garantir a sobrevivência do seu trabalho. A arte não sairá respondendo com mensagens alegres, motivacionais. Vai sofrer antes de se transformar – projeta Francisco Marshall.
Poderemos falar em algo concreto daqui a três ou quatro anos. Vamos precisar de tempo para entender não só isso, mas o novo mundo, como serão as relações pessoais. Teremos muitas coisas desconexas, de lugares distintos, e vamos ter de fazer uma bricolagem para inventar o novo.
MUNIR KLAMT
Artista, professor da Furg
Parte do duo artístico Ío, com Laura Cattani, Munir Klamt crê que o período mórbido poderá estimular uma reação na qual serão suscitados temas como o sexo e o erotismo. Ao mesmo tempo em que não descarta o surgimento de uma nova estética, avalia que a mudança exigirá um período de assimilação.
– Poderemos falar em algo concreto daqui a três ou quatro anos. Vamos precisar de tempo para entender não só isso, mas o novo mundo, como serão as relações pessoais. Teremos muitas coisas desconexas, de lugares distintos, e vamos ter de fazer uma bricolagem para inventar o novo – diz Klamt.
Para Mirian Tavares, a arte pós-pandemia poderá refletir conceitos que já têm surgido em produções atuais, como as reflexões sobre a sociedade de consumo:
– Acho que o coronavírus vai ser visto como uma espécie de cumulação dessa forma de vida globalizada, de livre circulação, que por um lado é boa, mas cria círculos de comércio pouco sustentáveis e devastadores. Acredito que a arte vai ser um meio de falar sobre o que é sustentável na natureza, na política, na economia, nas relações.
Se os especialistas evitam projeções contundentes, convergem em um ponto. O uso da tecnologia, que já aparece como plataforma de produção e distribuição de projetos, tende a se intensificar. E exigirá um olhar mais dedicado de artistas, produtores e curadores.
– Essa crise obrigou museus, que não estavam muito focados no digital, a olharem para esse aspecto. Vão precisar investir mais em design e criar formas de aparecer de outro modo – acredita Paula Ramos.