Fechar escolas, cortar turmas, "acabar com privilégios", enxugar a estrutura da Secretaria Estadual da Educação (Seduc). Esse é o desafio, desde 1º de janeiro, de Faisal Karam, 58 anos, responsável por gerir uma rede com 2.539 escolas, mais de 900 mil alunos e 63 mil professores ativos.
Administrador de empresas e ex-prefeito de Campo Bom, o suplente de deputado estadual (PSDB) assume que não conhece a fundo o plano de carreira do magistério. Passou os últimos dias debruçado sobre números e diz que reajuste salarial e cumprimento da lei do piso dos educadores não estão no radar.
GaúchaZH conversou por uma hora com o novo titular da Seduc nesta segunda-feira (7), na sede da secretaria, em Porto Alegre. Confira os principais trechos da entrevista:
Quais são as suas prioridades como secretário da Educação?
Como tu explicas, pegando friamente os números, que tenhas um orçamento de R$ 9,1 bilhões e uma previsão de despesas de pessoal e encargos de R$ 8,1 bilhões, e, desses, ainda tem o 13º que não foi pago e a folha de dezembro? Praticamente vai chegar a 78%, 80% da totalidade do orçamento da secretaria. Vai sobrar quanto para qualificar o professor, para investir na parte pedagógica, investir em tecnologia que é uma defasagem muito grande do Estado, investir em infraestrutura? O governo anterior conseguiu investir em infraestrutura graças ao Bird (Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento), financiamento que ainda tem um saldo de R$ 60 milhões, mas o contrato termina em fevereiro. Se não conseguirmos uma prorrogação, deixaremos de ter R$ 60 milhões para investir em melhorias nas escolas. Essa é uma discussão urgente, vamos conversar com o governador sobre isso.
O governo Sartori deu aumento para policiais, abriu concurso na segurança. Na educação, os professores estão há quatro anos sem reajuste, nem reposição da inflação, sem falar dos parcelamentos. Quase 40% dos docentes são temporários. O senhor vai trabalhar por reajustes e abertura de concurso?
Hoje não tem como fazer nada diferente, a não ser reestruturar, reorganizar e otimizar a educação.
Não tem como dar reajuste?
Hoje, não.
Ao longo de quatro anos, o senhor vislumbra a possibilidade de reajuste?
Foi feito um levantamento aqui. De 2009 a 2018, houve redução de 262 mil alunos na rede estadual. Tem 500 explicações: escolas dos municípios são melhores, o professor ganha mais, o aluno tem uniforme, tem computador. Tudo isso é facilitador para a escola municipal no Ensino Fundamental, ela é mais atrativa do que a escola do Estado. Tem algumas exceções, mas no básico é isso. Houve esvaziamento da rede. Além disso, as famílias começaram a ter menos filhos. Foi feito enxugamento de salas de aula, não de vagas, uma racionalização. Não houve redução no número de professores. O primeiro passo é tentar entender o que acontece na educação, por que temos tantos professores fora da sala de aula (em serviços administrativos). Porque cada professor fora é um contrato temporário, são duas despesas. Então, tudo isso precisa passar por uma reavaliação desse quadro, é matemático, não tem milagre, e tanto o Cpers (sindicato dos professores do Estado) quanto os professores precisam entender.
Mas o que vai ser feito especificamente para garantir esse fluxo de caixa para a educação?
O que é prioridade é a otimização e a racionalização de custos. É entender por que a máquina é tão pesada e de que forma a gente pode trabalhar para fazer ela desinchar. Significa daqui a pouco perdas de alguns privilégios.
Que tipo de privilégios?
Professores que estão lotados numa CRE (Coordenadoria Regional de Educação). Hoje, cada CRE tem, em média, 54 funcionários. Precisa? Não sei, é uma questão. O Estado gasta, no orçamento de 2019, R$ 177 milhões em transporte escolar rural. Tem que ser revisto isso, tem de ter um georreferenciamento para acompanhar em tempo real.
Eu sinto que o professor jovem que se forma tem visto a educação não como uma vocação, mas como uma forma de sobrevivência. A grande maioria desses profissionais já começa de forma errada.
Mas isso já existe na rede estadual...
Não, não foi implantado na totalidade. Então, tem um processo muito intenso de gestão que precisa ser feito. Mas tu sabes que isso tem suas implicações políticas, em todos os sentidos. São barreiras que precisamos discutir com todas as forças políticas, com o Cpers e outros.
Já está definido que cairá de 30 para 12 coordenadorias?
Não tem definição ainda. É um estudo que nós fizemos aqui (na Seduc). Mas que vai ter de conciliar com Saúde, com Obras, com Emater, com os Coredes (Conselhos Regionais de Desenvolvimento). A ideia é centralizar tudo isso em regionais onde o cidadão encontre tudo o que ele precisa. É uma racionalização de prédios, aluguéis e funcionários. Agora, se serão 12, 18, 20, não está definido. Isso exige análise ainda do desempenho da região no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, importante indicador da qualidade da Educação Básica no Brasil) de quilômetros rodados. Então, tem de ser muito bem estudado, e isso está sendo feito agora.
Dentro desse enxugamento da estrutura, o senhor vai seguir a política do governo Sartori de fechamento de escolas?
Houve redução significativa de escolas e de salas de aula no governo Sartori. Nós precisamos fazer essa discussão. É inadmissível que se tenha uma sala de aula com 10 alunos e outra com 25. E tem um dado interessante: não significa que a escola com 10 alunos tem Ideb melhor do que a com 25. Por que isso? Teoricamente uma turma menor teria desempenho melhor.
Sobre o tempo integral, hoje menos de 2% dos alunos têm atividade ampliada na rede estadual. Como fazer isso diante desse enxugamento da estrutura?
Esse enxugamento é importante porque poderemos ver se tem professores que poderão ser ocupados no turno inverso. É um primeiro passo. O segundo é que o governo federal terá que aportar recursos.
Hoje, a União aporta recursos para apenas 12 das mais de 1,1 mil escolas de Ensino Médio no Rio Grande do Sul. E o valor é de R$ 2 mil por aluno o ano inteiro. O senhor acredita que o governo federal vai conseguir dar esse suporte?
Se ele não der para o Rio Grande do Sul, não dará para o país inteiro. E aí você sabe o quadro da miserabilidade da educação. Que país nós queremos? Claro que não vai resolver em quatro anos, nem no governo Bolsonaro nem no de Eduardo Leite. Mas se não enxergarmos a educação como prioridade não vamos a lugar nenhum. Eu sinto que o professor jovem que se forma tem visto a educação não como uma vocação, mas como uma forma de sobrevivência. A grande maioria desses profissionais já começa de forma errada. Estão ali porque precisam viver, alimentar seus filhos, ter um padrão de vida mínimo possível. Se surgir qualquer oportunidade, vão embora, então não é vocação. Mas esse é um processo que não é só nosso, ocorre em várias partes do mundo. Nos Estados Unidos, tem falta de professores. Há um estudo que diz que, em 40 anos, não haverá mais professores lá. A Alemanha caminha para isso também.
Não adianta eu ficar dizendo que vai ter reposição (reajuste salarial), se não vai ser pago. Essa consciência, infelizmente, é um sacrifício a mais que o funcionário terá de dar.
Qual a perspectiva que o senhor dá para os professores que trabalham na rede estadual, diante dos parcelamentos, desse enxugamento da estrutura, da falta de perspectiva de um reajuste e até mesmo de cumprimento da lei do piso? Como motivar esses educadores que no dia 20 de fevereiro retomam as aulas?
A única mensagem que eu coloco de forma muito clara é que precisamos regularizar a vida dos professores e dos funcionários como um todo. Esse é o grande esforço. Não adianta eu ficar dizendo que vai ter reposição (reajuste salarial), se não vai ser pago. Essa consciência, infelizmente, é um sacrifício a mais que o funcionário terá de dar. O ideal é se fosse extensivo aos três poderes, mas são poderes independentes.
O que mais envolve esse enxugamento, além da reestruturação das coordenadorias e do fechamento de escolas e de turmas com poucos alunos?
Temos de buscar parcerias com as prefeituras, porque um dos problemas do poder público estadual hoje é o peso da máquina, de não ser ágil. Quando destelha uma escola no interior do Estado, por exemplo, esse processo é muito lento. A escola, mesmo sendo estadual, está dentro do município, o prefeito não pode se omitir. Elas (prefeituras) podem fazer um projeto e nós aportamos recursos. Se a prefeitura tem quadro técnico, podemos fazer essa parceria. Vamos propor para a Famurs (Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul, entidade que representa os municípios do Estado) .
O senhor vai buscar parcerias com a iniciativa privada também?
Vamos estimular as parcerias privadas, coisa que hoje já é feita na Seduc. A segurança pública é um exemplo disso. Muitas vezes têm empresários que querem melhorar a sua escola, mas depende de um projeto, o poder público acaba sendo um entrave. Queremos nos aproximar das comunidades e buscar recursos que hoje o Estado não tem.
O governador Leite diz, desde a campanha, que é preciso mudar o plano de carreira do magistério. O que é preciso ser alterado?
Eu não conheço, honestamente, esse plano a fundo. Mas não adianta ter o atual plano se, economicamente, ele é inviável e todo mundo perde – o educador aposentado, o educador que vai se aposentar. Então, acho que isso tem de ser encarado de frente. Não podemos mais ter 70% de comprometimento (do orçamento) com a folha, mesmo que a economia volte a crescer. Nunca teremos equilíbrio. Não existe milagre. Então, acho que uma coisa que foi boa do Sartori é que escancarou a crise. Mesmo que eu saiba que o sacrifício que o funcionário tem feito é muito grande, ele (o sacrifício) vai continuar até se conseguir reorganizar a casa.
O senhor já conversou com a direção do Cpers?
Ainda não. Quero conversar com a presidente nos próximos dias, mas não consegui sair aqui de dentro (da secretaria) ainda.
No Ensino Médio, acho que o grande investimento é nas escolas técnicas, com ações voltadas para as demandas da sociedade. O jovem precisa sair da escola com perspectiva de vida.
Entre as mudanças, o senhor considera importante atribuir uma remuneração por mérito?
Sem dúvida nenhuma. A vontade pessoal minha é de que, dentro das coordenadorias, possamos ter critérios de avaliação, e que sejam justas, porque hoje tratamos todas iguais, mas os desempenhos são diferentes. O professor também caminha para isso. Se tratar todo mundo como igual, não reconhece o esforço individual. E se não houver essa questão de avaliação e de diferenciação, não vamos a lugar nenhum.
No Ensino Médio, 70% dos estudantes tiveram desempenho insuficiente em matemática e português no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Qual a sua proposta pedagógica para melhorar a aprendizagem dos alunos?
Eu estive conversando com o pessoal do pedagógico. A gente nota que esse fluxo entre aluno, professor e coordenadoria é muito falho. Hoje, tem os processos de avaliação, tanto do Ideb quanto do critério que se adotou aqui, de avaliação interna. O primeiro passo é monitorar isso, ver o que está dando resultado e corrigir o que não está dando resultado. Mesmo com o reforço em matemática e em português que se fez na rede, o desempenho é baixo.
O Ideb do Ensino Médio foi de 3,4, em uma escala de zero a 10, em 2017. O mesmo índice de 2005, quando se começou a série histórica. O que fazer?
No Ensino Médio, tem alguns fatores que pesam mais: a falta de perspectiva de futuro, que leva à evasão. Esse jovem entra no primeiro ano e não sabe o que vai fazer lá na frente, não tem proposta de Ensino Técnico. Acho que o grande investimento é nas escolas técnicas, com ações voltadas para as demandas da sociedade. Esse jovem precisa sair com perspectiva de vida.
A reforma do Ensino Médio, sancionada em 2017 pelo presidente Temer, prevê cinco itinerários formativos para o aluno, mas mais de 70% dos municípios do RS só têm uma escola. Como garantir um currículo diversificado diante da realidade do Estado?
Este é o grande problema. Como concentrar esses jovens dentro dessa nova base curricular. Recurso para isso não tem. O governo federal não pode só criar uma nova formatação, mas aportar recursos, não temos de onde tirar. E o meu medo é que isso acabe esvaziando ainda mais o Ensino Médio.
Da situação que está posta hoje, o senhor acredita que essa reforma não tem como ser implementada?
Não, não tem como ajustar.
A reforma também prevê o ensino a distância para os jovens. Isso será feito na rede estadual?
Discutimos isso na sexta-feira (4). É uma boa alternativa, a questão é avaliação, qualidade e resultados. Isso baixa o custo-aluno, mas também precisa dar qualidade.
Então pode ser adotado?
Sim, ainda estamos avaliando de que forma montar essa estrutura. Existem algumas disciplinas com número escasso de educadores, então, isso pode ser uma alternativa. Mas ela também precisa ser avaliada constantemente para dar resultado.
O presidente Bolsonaro defende a militarização das escolas públicas, inclusive foi criada uma subsecretaria no MEC para tratar do assunto. O senhor vai procurar o novo governo para trazer essa proposta para as escolas estaduais?
Temos hoje nove escolas Tiradentes, da Brigada Militar, que têm desempenho bom, mas têm turno integral, os professores são uma elite, apesar de eu não gostar desse termo, e há disciplina. É uma coisa que me atrai bastante. Todo o benefício que trouxermos para o aluno, seja militar ou não, é bem-vindo.
No dia em que foi anunciado como novo secretário, o senhor falou que este não é o momento para discutir o Escola sem Partido. Mas não ficou clara a sua posição sobre o projeto. O senhor concorda com as propostas do Escola sem Partido?
Eu acho que o momento em que vivemos no país não é o melhor para essas discussões. Temos tantas prioridades hoje, será que não temos coisas mais importantes para debater neste momento? Eu concordo que a escola tem de ser independente de questões políticas, mas não é o momento para essa discussão.
O senhor acredita que existe ideologia de gênero e doutrinação marxista nas escolas?
Existe.
O senhor pode citar um exemplo?
Essa discussão do que é correto. A ministra fez um comentário, já voltou atrás, disse que não é bem assim do azul e rosa. Para aí: muda o quê?
Mas o senhor acredita que os professores estimulam os alunos a seguirem uma determinada orientação sexual?
Não diretamente, porque hoje o grau de liberdade que se tem, de informação... A gente sabe que aumentou muito essas relações (de pessoas do mesmo sexo) e elas muitas vezes não são bem vistas dentro da escola. Eu parto do pressuposto de que homem é homem e mulher é mulher. Ok, mas tem que respeitar o espaço do outro.
Paulo Freire tem sido demonizado pela direita, especialmente pelo governo Bolsonaro e seus apoiadores. Mas ele é o intelectual brasileiro mais citado em pesquisas sobre educação no mundo, sendo referência para renomados autores estrangeiros. Qual a sua opinião sobre Paulo Freire e sua visão sobre a educação?
O Paulo é uma referência, não política, mas de todos os educadores. Na prefeitura de Campo Bom, no mínimo em seis anos de aberturas do ano letivo com educadores na rede (municipal), Paulo Freire era referência. Sempre se buscou pessoas para fazer palestras da linha de Paulo Freire. Educação não é direita ou esquerda. E o Paulo Freire é alguém que conseguiu se sobrepor a isso. Se as suas ideias na área da educação, fantásticas, de valorização do nível intelectual do educador, não forem aproveitadas, vai nivelar por baixo.