Desde 2019, a legislação brasileira exige que as escolas ofereçam serviços de Psicologia e Serviço Social. O novo desafio será a implementação da Política Nacional de Atenção Psicossocial nas Comunidades Escolares, sancionada em janeiro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A Lei 14.819/2024 ampliou a legislação já vigente para promover a saúde mental de alunos, professores, demais profissionais que atuam nas escolas, pais e responsáveis.
Entre os objetivos da nova política também estão garantir o acesso da comunidade escolar à atenção psicossocial, promover a intersetorialidade entre os serviços educacionais, de saúde e assistência social, informar a sociedade sobre a importância da saúde mental nas instituições de ensino e promover a formação continuada de gestores e de profissionais. O texto menciona a divulgação de informações "cientificamente verificadas" sobre o tema.
A execução da Política Nacional ocorrerá em articulação com o Programa Saúde na Escola (PSE) e o desenvolvimento das ações ficará a cargo dos Grupos de Trabalho Intersetoriais, com a participação obrigatória de representantes da área da saúde e da comunidade escolar.
A Lei nº 13.935, em vigor desde o final de 2019, depois de 20 anos de tramitação, já determinava a contratação de psicólogos e assistentes sociais para atuarem nas escolas. Apesar do texto estabelecer que os sistemas de ensino dispunham de um ano para tomar as providências necessárias, somente 85 municípios brasileiros regulamentaram a lei, conforme levantamento divulgado em agosto de 2023 pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP).
A pandemia de covid-19 dificultou a implantação da legislação, período em que cresceu a discussão sobre saúde mental e o papel das escolas na conscientização dos jovens a respeito da questão. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), entre 2010 e 2020, o número de casos de depressão em crianças de 6 a 12 anos subiu de 4,5% para 8%. No mundo, 13% dos adolescentes entre 10 e 19 anos apresentam diagnóstico de algum transtorno mental.
Novos desafios
No Rio Grande do Sul, embora já existam iniciativas alinhadas à legislação, a política ainda não foi regulamentada. Agora, com essa ampliação, será necessário planejamento e recursos para viabilizar a proposta, segundo as entidades e especialistas ouvidos por GZH.
— O Estado implementou de forma muito precária a legislação de 2019. São poucos profissionais, que atendem a uma rede muito ampla, com escolas muito distantes uma da outra. Foram definidos polos que atendem determinadas regiões, com um psicólogo responsável pelo atendimento. A lei sugere trazer psicólogos e assistentes sociais para as escolas. O processo de regulamentação é muito lento. Esperamos que, com essa nova lei, possamos avançar mais — diz Rafael Carneiro, que é presidente da Comissão de Educação do Conselho Regional de Psicologia do RS.
A entidade enxerga a nova política como algo muito positivo, por trazer essa articulação entre três áreas que são um “tripé fundamental no âmbito da qualidade de vida das pessoas”: saúde, educação e assistência social. Segundo Rafael, já existem políticas ligadas a essas áreas nas escolas, mas elas não costumam dialogar entre si.
O Estado implementou de forma muito precária a legislação de 2019. São poucos profissionais, que atendem a uma rede muito ampla, com escolas muito distantes uma da outra.
RAFAEL CARNEIRO
Presidente da Comissão de Educação do Conselho Regional de Psicologia do RS
— O ideal é que tenhamos profissionais para atender a todo o contexto escolar, toda a comunidade, como essa lei coloca. Não podemos ter profissionais só para apagar incêndios — destaca o psicólogo. Segundo ele, a sanção da nova lei foi uma surpresa para o CRP. Ainda não havia expectativas a respeito, como o projeto estava tramitando desde 2021.
O mesmo aconteceu com o Sindicato dos Professores e Funcionários de Escola do RS (Cpers), que recebeu com surpresa a notícia da sanção da lei. A entidade afirma que, para implementar a lei, o governo precisará investir cada vez mais recursos para contratar profissionais de qualidade.
— Hoje, temos problemas nas escolas por falta de especialistas, educadores, supervisores, em termos pedagógicos. Imagina para conseguir psicólogos em cada escola? É uma política importante, que pode contribuir também com o problema do adoecimento de profissionais da educação. Mas não podemos tirar recursos da educação — diz Rosane Zan, diretora do Cpers.
Para a professora Vilene Moehlecke, do curso de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), a nova lei vai demandar investimentos da gestão pública, mas também um olhar para ações que já existem, embora sejam isoladas, muitas vezes.
— É justamente isso que a lei propõe, pensar em soluções conjuntas. Será um trabalho coletivo, que envolve a articulação de serviços que já existem, mas também pensar em novos projetos. Tem muito trabalho pela frente, mas precisamos trabalhar em rede, para que não seja algo fragmentado. É o início de algo maior — explica.
Conforme a pesquisadora, que já atuou em projetos com esse caráter na Secretaria de Educação de São Leopoldo, também é preciso propor iniciativas permanentes, especialmente quando se trata do combate à violência.
— Só vamos conseguir prevenir a violência nas escolas propondo espaços de diálogo, debates e trocas entre os diferentes sujeitos que fazem parte do contexto escolar. Precisamos estimular o respeito à diversidade. Temos que envolver nos debates questões como bulliying, racismo, homofobia, discriminação — ressalta a docente.
O que diz o poder público
A Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre informou, por meio de nota, que, no momento, atua junto à Secretaria Municipal de Saúde, e demais órgãos da administração municipal, “na construção de estratégias e ações que atendam às orientações previstas na lei”, tendo em vista o caráter intersetorial da pauta. Conforme a pasta, as ações serão realizadas em conjunto.
Em outubro de 2023, por exemplo, foi anunciado pela prefeitura de Porto Alegre o programa Incluir+POA, iniciativa em parceria com órgãos públicos, que visa a contratação de 421 novos profissionais para atender aos mais de 3.391 alunos com deficiência intelectual matriculados na rede municipal.
O programa possibilitou a chegada de 27 psicólogos, 16 assistentes sociais, oito fonoaudiólogos, oito psicopedagogos, cinco coordenadores e 357 agentes de Educação Inclusiva. Os profissionais dão apoio aos professores durante o contraturno nas salas de aula. Mas ainda não há previsão de ações especificamente voltadas à nova legislação.
Em âmbito estadual, a nova lei também está sendo estudada. Serão aproveitados programas já existentes para operacionalizar e articular a Lei n° 14.819, segundo a Secretaria da Educação do RS (Seduc), vinculados ao Núcleo de Cuidado e Bem-estar Escolar. Entre eles, estão o Programa Saúde na Escola (PSE), a Equipe de Assistentes Sociais e Psicólogas e as Comissões Internas de Prevenção de Acidentes e Violência Escolar (Cipave+).
As ações do núcleo buscam garantir a promoção e sensibilização referente a indicadores positivos de saúde mental nas comunidades escolares, bem como a articulação intersetorial dos equipamentos e serviços das redes de saúde, educação e assistência social a partir de assessoramento técnico às equipes escolares e eliminar e prevenir a violência, entre outros.
Segundo a Seduc, a promulgação da lei “é imprescindível para que as diretrizes propostas sejam implementadas, melhor investidas e continuadas nos âmbitos federal, estadual e municipal. Sobretudo, no que tange a articulação e o protagonismo coletivo das políticas da saúde, assistência social e educação”. A Seduc classifica a lei como “importante marco para que a articulação intersetorial e a comunidade escolar estejam em permanente diálogo rumo a construção de uma educação democrática, equitativa e de qualidade”.
Ações nas escolas particulares
Conforme o Sindicato do Ensino Privado do RS (Sinepe/RS), as instituições particulares contam equipes multidisciplinares, incluindo profissionais da Psicologia, para acompanhar a saúde mental dos alunos e auxiliar em projetos de prevenção. Segundo o presidente da entidade, Oswaldo Dalpiaz, esse trabalho foi ampliado após a pandemia de covid-19.
"As escolas estão investindo mais em projetos e programas de prevenção e de acompanhamento para minimizar os impactos que o isolamento social provocou nos últimos anos. Além de ações pontuais como palestras para pais e alunos, muitas instituições possuem programas permanentes em que oferecem espaços de escuta e diálogo aos estudantes, além de projetos de prevenção que valorizam o relacionamento interpessoal, o respeito, a diversidade" informou o presidente em nota.
Para a entidade, a nova lei vem a somar e reforçar o trabalho já existente nas escolas particulares do RS. Dalpiaz também destacou o programa "Rede de apoio em... luz, câmera, protagonismo e ação!", do Colégio Santa Clara, de Getúlio Vargas, vencedor do Prêmio Inovação Sinepe/RS 2023, que se alinha ao que propõe a Lei n° 14.819.