Com os ataques a escolas ocorridos em março e abril de 2023, diferentes instâncias do Poder Público adotaram medidas para combater os casos. O governo federal criou um grupo de trabalho interministerial para desenvolver uma proposta de políticas públicas nesse sentido. Representantes de diferentes pastas têm se reunido desde abril para desenvolver estratégias de prevenção e enfrentamento da violência nas escolas.
O prazo inicial de entrega do relatório final do grupo era em 90 dias. No entanto, o documento ainda não foi apresentado. Em 4 de outubro, o ministro da Educação, Camilo Santana, prorrogou por 30 dias esse prazo. Em nota, o Ministério da Educação informou que “tão logo o trabalho esteja concluído, haverá ampla divulgação à sociedade”.
Na época desses atentados, o governo federal anunciou apoio financeiro para que as escolas qualificassem sua infraestrutura e realizassem capacitações e treinamento para prevenir situações de violência. Foi intensificado o trabalho de inteligência da polícia e um canal de denúncias foi criado para receber alertas de postagens e outros indícios de futuros ataques, em parceria com a SaferNet.
Presidente da SaferNet Brasil – ONG com a missão de defender e promover os direitos humanos na internet –, Thiago Tavares relata que, de abril para cá, quase 10 mil conteúdos foram denunciados no canal, entre vídeos, imagens e postagens. O destaque é para os conteúdos no Twitter, que está em primeiro lugar no ranking em ameaças. Quatrocentas pessoas foram presas ou apreendidas. Tudo o que é denunciado é apurado.
– Houve uma força-tarefa grande em abril, principalmente, e em maio. Vários ataques foram neutralizados, mais de 15, a partir de denúncias anônimas. Outros foram consumados, mas dezenas foram evitados, porque foram denúncias anônimas que permitiram que os casos fossem descobertos antes da execução, ainda na fase do planejamento – ressalta o presidente da SaferNet.
Tavares pontua, no entanto, que não existe solução mágica: há muitas questões associadas ao fenômeno da violência nas escolas, entre elas o processo de radicalização, que demanda um trabalho de educação para direitos humanos, respeito às diferenças, noções de cidadania, ética e respeito. A saúde mental também é um desafio, uma vez que o suicídio é, hoje, uma das maiores causas de morte entre jovens brasileiros.
Atualmente, para além da elaboração das políticas pelo grupo de trabalho, o MEC constrói um programa baseado na Justiça Restaurativa para promover a cultura da paz nas instituições de ensino.
No conceito de ataques às escolas, o acolhimento do estudante é a coisa mais importante. Quanto mais ela se sente segura, acolhida, mais acessível vai ser às instruções dos pais, das escolas.
MÁRCIO DERENNE
Especialista em segurança com experiência na Interpol e em polícias brasileiras
Já a Secretaria Estadual de Educação (Seduc), desde o final do ano passado, passou a contar com o Núcleo de Cuidado e Bem-Estar Escolar, com uma equipe de assistentes sociais e psicólogos que trabalham situações sociais, psicossociais, de saúde e de prevenção à violência escolar. A nomeação dos profissionais adequa a rede à Lei Federal 13.935, sancionada no final de 2019, onde consta a exigência de que as redes públicas de Educação Básica contem com serviços de Psicologia e Serviço Social.
Além disso, as Comissões Internas de Prevenção de Acidentes e Violência Escolar (Cipaves) realizam atividades como palestras, dinâmicas, rodas de conversa e Círculos da Paz. A pasta trabalha, ainda, na ampliação da contratação de serviços de portaria, vigilância e câmeras de monitoramento para as escolas estaduais – em 2024, pelo menos cem instituições pertencentes ao Programa RS Seguro, localizadas em áreas de vulnerabilidade, serão atendidas.
Vigilância 24 horas por dia
Em Porto Alegre, a Secretaria Municipal de Educação (Smed) possui um serviço de vigilantes 24 horas por dia em sua rede, além do monitoramento por câmeras pelo Centro Integrado de Comando de Porto Alegre (Ceic), o trabalho das Cipaves e o sistema de botão de pânico, disponibilizado para os diretores das escolas, que receberam capacitação no primeiro semestre para seu uso. Segundo a pasta, não houve, até o momento, necessidade de acionamento desse botão por nenhum professor ou diretor. Foram ainda intensificadas as rondas da Guarda Municipal e da Brigada Militar nos horários de entrada e saída de aulas.
Com experiência na Interpol e em polícias brasileiras, Márcio Derenne, que hoje atua no Grupo GPS, de segurança privada, participou de um evento realizado pelo Sindicato do Ensino Privado no Rio Grande do Sul (Sinepe/RS) no início de outubro, que visava orientar as escolas sobre como qualificar sua segurança. O especialista destaca que não há um motivo específico para que um agressor ataque uma escola, e que, por isso, as medidas de segurança precisam andar juntas com um acompanhamento dos estudantes.
– No conceito de ataques às escolas, o acolhimento do estudante é a coisa mais importante. Vamos supor que um estudante denuncie outro por ter trazido uma arma para a escola, ou ter postado que gostaria de agredir alguém. Qual deve ser a atitude da escola e dos pais quanto a isso? Acolher a criança. Quanto mais ela se sente segura, acolhida, mais acessível vai ser às instruções dos pais, das escolas – resume Derenne.
O especialista defende o monitoramento das mochilas e a atenção ao que o jovem anda consumindo na internet. Apoia, ainda, algo que é polêmico entre pesquisadores de Educação e Psicologia: o treinamento dos alunos para situações de emergência como um ataque.
– Esses treinamentos acontecem em todos os países de primeiro mundo. São para diferentes situações, seja de incêndio, de agressor ativo, de terremoto. Cada um exige um procedimento operacional diferente. Isso é do dia a dia das crianças – opina Derenne.
Implementadas em 2015 pelo governo do Estado, as Cipaves ganharam, em 2018, um apoio de peso: a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) se propôs, na época, a capacitar 1,2 mil professores em um ano na metodologia circular existente na Justiça Restaurativa. Desde então, a união dessa ferramenta com o ambiente escolar só cresceu. Em novembro, em alusão ao Ano Pela Justiça Restaurativa na Educação, declarado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), será realizada mais uma edição do curso Justiça Restaurativa nas Escolas, voltado para gestores e docentes da Educação Básica. As inscrições estão abertas até o dia 25 de outubro. As aulas são gratuitas.
Pioneiro na metodologia no Brasil, o desembargador Leoberto Narciso Brancher, coordenador do Núcleo Gestor da Justiça Restaurativa (NugJur) do Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RS) lembra que a ferramenta nasceu no campo do conflito penal, para evitar rupturas de relacionamentos, que são as mais dolorosas e difíceis na vida de uma pessoa.
– Abriu-se a possibilidade de permitir que, ao invés de haver a perseguição de um culpado, se possa encontrar um responsável, e, ao invés de punir esse culpado, se possa fazer um acordo com esse responsável para que ele repare o dano. Esse mecanismo só é possível com diálogo, e substitui aquela visão de uma autoridade que impõe uma decisão de cima para baixo, que nem sempre é efetiva, nem sempre tem adesão, nem sempre tem continuidade, por uma adesão que resulta da própria vontade das pessoas – sintetiza o magistrado.
Para além de lidar com o que já aconteceu, a metodologia se propõe a criar um espaço para entender as causas do ocorrido e melhorar o contexto, buscando harmonia. Como essas habilidades de resolução de conflitos e desenvolvimento de uma comunicação não violenta são importantes em todas as esferas da vida, não só a criminal, a ferramenta casou bem com a realidade escolar.
– A mesma metodologia que serve para resolver o conflito serve para fortalecer laços, vínculos familiares, fortalecer equipes de trabalho, integrar famílias com escolas, com professores, construir um senso de pertencimento a uma comunidade. Isso tudo dependendo da forma como as reflexões são conduzidas – adverte Brancher.
À medida que essas pessoas têm a oportunidade de falar e ser compreendidas, é possível que elas até superem esse quadro, porque a gente nota que a tendência à violência se alimenta das mídias sociais, da deep web, das redes sociais negativas criadas nas salas de jogos online.
LEOBERTO NARCISO BRANCHER
Desembargador e coordenador do Núcleo Gestor da Justiça Restaurativa TJ-RS
A partir de uma rotina de interação dialógica, de cuidado e escuta atenta e permanente, a escola, de acordo com o desembargador, desenvolve habilidade de perceber quando um aluno está fora de sintonia, em um quadro depressivo e ensimesmado que, muitas vezes, desencadeia comportamentos violentos.
– À medida que essas pessoas têm a oportunidade de falar e ser compreendidas, é possível que elas até superem esse quadro, porque a gente nota que a tendência à violência se alimenta das mídias sociais, da deep web, das redes sociais negativas criadas nas salas de jogos online. Essas pessoas não estão tendo pertencimento à sua comunidade familiar, escolar ou social. Promover espaços de pertencimento no dia a dia da escola é um grande antídoto para a evolução de situações violentas – afirma o magistrado.
Coordenadora de projetos no Instituto Sou da Paz, que lançou, em maio, uma pesquisa com um raio X do perfil de agressores e atentados em escolas nos últimos 20 anos, Danielle Tsuchida destaca que não é à toa que a relação do autor do ataque com a instituição de ensino seja de intimidade.
– Não são ataques quaisquer, não são escolhidas instituições de maneira aleatória. Então, é importante a gente olhar para essa relação que a escola tem e que a levou a ser o centro desse ataque. São meninos que sofreram bullying e tiveram relações de conflito com a escola, situações que geraram sofrimento emocional. Isso mostra a importância de cuidar dessas relações prévias, para evitar que gerem uma situação mais grave lá na frente – analisa Danielle.
É nesse contexto que a criação de espaços de socialização em que sejam mediadas as relações e os conflitos surgem como algo essencial, na opinião da coordenadora do Sou da Paz. No seu entendimento, conflitos são inerentes ao ser humano, e é preciso sair da lógica educacional atual, muito baseada na punição e na expulsão dos estudantes.