Tão amados por crianças e adolescentes, os games têm tudo a ver com o contexto escolar. Para além dos jogos pedagógicos, as salas de aula têm sido invadidas por atividades on e offline que envolvem sistemas de pontuação, objetivos e recompensas, desenvolvimento de roteiros, design e programação de games e tantas outras potencialidades que engajam os alunos na construção da sua própria aprendizagem.
O uso da linguagem e da lógica dos jogos em sala de aula faz parte das chamadas “metodologias ativas”, previstas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Nelas, o aluno é visto como um ser ativo e protagonista em seu processo de ensino-aprendizagem, que busca respostas para suas perguntas, em vez de passivamente esperá-las do professor.
A lógica gamer costuma estar presente no ensino em dois formatos — nos game based learnings, ou aprendizagem baseada em jogos, em que games desenvolvem determinados aprendizados ou habilidades dos estudantes, e em atividades com gamificação, também chamada de ludificação, que não são jogos, mas trazem elementos deles, como a presença de avatares ou o ranqueamento da turma por pontos, por exemplo. Nesta reportagem, daremos exemplos do uso de ambos os formatos.
Mas por que usar a linguagem dos games em sala de aula? Segundo Roberto Rafael Dias da Silva, docente da Escola de Humanidades da Unisinos, principalmente para engajar e mobilizar o aluno na busca pelo conhecimento.
— Metodologias baseadas em jogos são importantes, porque se comunicam com alunos que, hoje, têm uma vida “onlife”, ou seja, já não há diferença entre o on e o offline. O jogo é uma forma de trazer um conteúdo complexo de forma interativa, com uma linguagem contemporânea, mas o foco é engajar e mobilizar o estudante na busca pelo conhecimento, e não converter a aula em mero entretenimento — ressalta o professor.
Roberto destaca que o mundo digital trouxe muitas potencialidades para a educação, mas é importante que o educador tenha clareza do seu propósito em cada atividade, aliando o conhecimento naquela disciplina e a diversidade metodológica, que ajuda a acessar diferentes alunos, que conseguem entender os conteúdos de formas múltiplas.
Quem entra no curso de graduação em Jogos Digitais da Feevale tem contato com termos como gamificação e game based learning já no primeiro dia de aula, conforme o professor Cristiano Max, que ministra Introdução aos Jogos Digitais e também coordena o Mestrado em Indústrias Criativas da universidade:
— Tento trazer para eles que jogos digitais e videogame não são só entretenimento, e que eles estão aprendendo uma linguagem que tem relação com interatividade, engajamento e resposta de usuários.
A gamificação está presente em muitos processos cotidianos também de adultos, seja na busca pela obtenção de pontos para ganhar descontos em passagens de avião, um almoço grátis depois de 10 pagos ou por alcançar uma categoria superior no cartão de crédito, por exemplo. Na educação, o coordenador alerta para a importância de não condicionar os alunos a um ambiente de competitividade e de alternar entre metodologias mais tradicionais e momento de autoria.
O aluno não quer não sentir o chão o tempo todo, ser desafiado a criar algo que não existe. É importante uma alternância, onde tu traz o conforto do mais tradicional e também momentos de autoria.
CRISTIANO MAX
Professor no curso de graduação em Jogos Digitais da Feevale
— O aluno não quer não sentir o chão o tempo todo, ser desafiado a criar algo que não existe. É importante uma alternância, onde tu traz o conforto do mais tradicional e também momentos de autoria. Não é a criatividade a solução para tudo, e sim a harmonia entre tutor e tutorado — analisa Cristiano, destacando que a estratégia de uso dos games que funciona para uma turma pode não funcionar para outra.
Na Feevale, os alunos da disciplina de Introdução aos Jogos Digitais elaboram games a serem jogados por estudantes de escolas. Nessa parceria, o professor do colégio disponibiliza o conteúdo a ser abordado e os estudantes criam mapas imersivos para as crianças e adolescentes experienciarem aquele assunto. Atualmente, a turma está produzindo um game no qual um extraterrestre chega ao planeta Terra e vai conhecendo seus componentes geológicos, como os tipos de solo e as cavernas, em meio a momentos mais voltados para o entretenimento. Os jogos são feitos na versão educativa do Minecraft, programa pago da Microsoft.
Professora do curso de Pedagogia da Universidade de Passo Fundo (UPF) e coordenadora do Prisma, espaço que une aprendizagem criativa e cultura geek, Maria Augusta D’Arienzo pontua três elementos que uma atividade precisa ter no processo de gamificação: a dinâmica, a mecânica, e os componentes de um game, de forma a gerar engajamento, motivar para a ação e promover a aprendizagem, por meio da resolução de um problema.
— Nas minhas aulas, por exemplo, o meu problema era que minha turma era noturna, então as alunas chegavam cansadas, com fome e dispersas, depois de trabalharem o dia inteiro. Resolvi fazer uma gamificação: a cada vez que alguém faltava, perdia um ponto e, para recuperar, no início da aula seguinte tinha que trazer uma brincadeira ou proporcionar um momento cultural para a turma. Isso fazia com que elas se movimentassem, o que aumentava a frequência cardíaca e as mantinha mais alertas para o resto da aula — exemplifica Maria Augusta.
Na gamificação, as atividades podem ter elementos como diversão, narrativa, progressão, possibilidade de adquirir pontos ou recursos para atingir objetivos, feedback imediato, necessidade de cooperação ou competição e a existência de avatares e medalhas ou outras representações visuais de conquistas do jogador.
Gamificação para engajar
No Colégio Israelita Brasileiro, em Porto Alegre, dois professores criaram uma empresa (a Press Start) que ajuda instituições de ensino a desenvolverem metodologias com o uso de jogos. Na escola, utilizam uma plataforma de gamificação – cada aluno tem um perfil e, conforme realiza atividades, ganha moedas fictícias com as quais, depois, pode “comprar” algum benefício, como uma pausa musical, passar na frente na fila de perguntas, escolher a ordem de apresentação de um trabalho, ter uma aula no pátio, entre outros.
— Isso permite que o aluno personalize a aula quando ele não está curtindo tanto o que está acontecendo e que mesmo quando o conteúdo não é tão engajante, ele se engaje pela dinâmica de que tudo se torna um jogo — explica Rafael Moris, um dos dois professores, que ministra Cultura Judaica na escola.
No caso das aulas de Rafael, as moedas só podem ser obtidas em atividades relacionadas a cooperação, como trabalhos em grupo e organização da sala, por exemplo. A ideia é que o foco seja no engajamento, mais do que nos resultados, já que cada aluno tem seu ritmo no que se refere à aprendizagem. A metodologia é utilizada com turmas do quarto, do quinto, do oitavo e do nono ano.
O aluno tem que estar muito motivado internamente para tu só expor e eles aprenderem. A realidade é que a gente tem muitos estímulos na nossa volta, então é importante entender como fazer com que o estudante valorize mais aquele momento do que as outras coisas que tentam chamar a atenção dele.
RAFAEL MORIS
Professor no Colégio Israelita Brasileiro
Além da gamificação, a dupla de professores usa o game based learning em um curso extracurricular voltado para o desenvolvimento de soft skills, como habilidades de comunicação, liderança, tomadas de decisão e estratégias. Em sala de aula, como são mais alunos, se torna mais difícil usar jogos digitais, então Rafael prefere usar atividades com materiais físicos, que envolvam histórias e peças teatrais. Ambas as estratégias funcionam melhor, normalmente, do que as aulas expositivas.
— O aluno tem que estar muito motivado internamente para tu só expor e eles aprenderem. A realidade é que a gente tem muitos estímulos na nossa volta, então é importante entender como fazer com que o estudante valorize mais aquele momento do que as outras coisas que tentam chamar a atenção dele. Esse é o desafio, e os jogos são muito bons para isso — analisa o professor.
Games na Educação Infantil
O Colégio Marista Rosário, em Porto Alegre, tem adotado cada vez mais os games em seus processos de ensino-aprendizagem, de forma interdisciplinar. Na Educação Infantil, a turma N3E – com crianças de cerca de cinco anos – está desde o início do ano participando de um projeto que iniciou offline e, agora, está em uma etapa online, com o uso da versão educacional do Minecraft.
— Nós trabalhamos muito com a experimentação. As crianças trazem consigo uma curiosidade imensa, e é a partir dela que construímos os projetos — explica Glauce Bencke, coordenadora pedagógica da Educação Infantil da escola.
No projeto atual, as crianças começaram trabalhando com os animais do fundo do mar. Nesse processo, construíram, por exemplo, animais feitos de sucata e argila. Depois, as professoras “construíram” o fundo do mar em uma sala de aula, objetos que representavam a areia, a água e os bichos, além de trazer luzes, sons e cheiros que permitissem a sensação de imersão nos alunos. Em seguida, o mesmo foi feito com a simulação de uma floresta.
A segunda etapa foi levar o conhecimento deles sobre a natureza para o mundo virtual. Com o Minecraft, as crianças estão fazendo construções, colocando animais, plantando árvores e criando habitats de forma colaborativa em um ambiente digital em que cada um tem um avatar, mas pode interagir com os colegas. Com isso, além de aprenderem sobre a natureza, desenvolvem o raciocínio lógico computacional, traçam estratégias para resolver problemas e ampliam o vocabulário, quando explicam essas estratégias aos parceiros.
— Tudo isso vem para desenvolver habilidades. Ficar só no tablet, eles fazem em casa. No nosso projeto, cada um tem um computador e consegue ver o que o outro está fazendo, tornando todo o processo colaborativo — relata a professora Patrícia Cavedini, da área de Tecnologias.
Em três semanas, o “mundo” feito pela turma N3E já estava povoado. Por conta própria, os estudantes já haviam descoberto muitos elementos do jogo, como a possibilidade de flutuar e enxergar de cima tudo o que está acontecendo, a forma de construir casas e até mesmo de mobiliá-las.
Nós trabalhamos muito com a experimentação. As crianças trazem consigo uma curiosidade imensa, e é a partir dela que construímos os projetos
GLAUCE BENCKE
Coordenadora pedagógica da Educação Infantil do Colégio Marista Rosário
No segundo semestre, uma turma de nono ano vai ingressar no projeto, fazendo a parte de urbanização do mundo criado pelos pequenos. Ao final, todos se encontrarão para observar, juntos, o resultado do trabalho colaborativo.
Educação financeira
Foi a partir da impressão de um economista de que muitas pessoas chegam à vida adulta sem noções básicas de educação financeira que deveriam ser oferecidas nas escolas que surgiu a Blocos Educação, uma plataforma de jogos para instituições de ensino. Foram criadas aulas semanais de 50 minutos para estudantes da sexta série ao final do Ensino Médio sobre consumo sustentável, orçamento familiar, empreendedorismo, economia, investimento e mercado de trabalho.
De acordo com um dos fundadores, Marcus Muller, o principal desafio foi pensar em uma metodologia que prendesse um aluno que se dispersa facilmente.
— Nos encontramos com os recursos lúdicos que os games permitem — destaca.
Entre os recursos utilizados, estão caça-palavras, quebra-cabeças e perguntas e respostas. Para o empresário, se o estudante consegue refletir sobre o conteúdo e aplicá-lo em uma situação de estresse, como um jogo com tempo definido, conseguirá fixar melhor aquele conhecimento.
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