Se já não era fácil antes, os desafios da educação no Brasil só aumentaram com a pandemia. E buscar soluções é uma das cruzadas de Maria Rebeca Otero Gomes, coordenadora do Setor de Educação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil.
Maria Rebeca integra o escritório de Brasília desde novembro de 2001 e, em 2012, assumiu a coordenação dos projetos de cooperação em educação que a Unesco implementa no país. Mestre em Ciências da Saúde, com especialização em Saúde Pública, ela foi uma das palestrantes convidadas do Experience Senac, evento que ocorre entre esta quarta (13) e sexta-feira (15), com transmissão pela internet.
GZH conversou com ela sobre educação plural, as dificuldades no Brasil e medidas mais urgentes.
A respeito dos desafios identificados pela Unesco, como você vê o acesso à educação hoje no Brasil?
Nós temos desafios na questão do acesso à Educação Infantil, ao Ensino Médio, ao Ensino Superior e ao técnico ou profissionalizante. No Ensino Fundamental, a gente conseguia ter bons números de crianças na escola, mas, com a pandemia, estamos perdendo muitos alunos. Muitos não conseguiram fazer aulas remotas. Ou porque não tinham tecnologia, ou ela era insuficiente, como um celular para cinco irmãos. Outros não tinham alimentação adequada ou tinham que trabalhar, ajudar os pais. E muitos estudantes se desestimularam, acham que não aprenderam o suficiente e não estavam conseguindo acompanhar.
Além do abandono da escola, que outro impacto da pandemia de covid-19 na educação você destacaria?
Estão saindo algumas avaliações mostrando que, infelizmente, muitos jovens tiveram retrocessos nesse período. Eu falava no início da pandemia que o importante era manter o jovem engajado, para ele pelo menos não perder o que aprendeu. Mas muitos retrocederam até alguns anos no aprendizado. Apesar de todos os problemas que já tínhamos, como de aprendizagem, agora nós temos um contingente maior de jovens fora da escola e, muitos alunos que retornaram, andaram para trás. Isso agora vai ter que ser recuperado.
E quais são os primeiros passos para essa recuperação?
O primeiro é trazer o jovem de volta para a escola. A gente precisa fazer uma busca ativa, preparar as escolas, o currículo, o professor, até para aspectos relacionados à saúde mental e à autoestima desse estudante. A gente precisa fazer com que o aluno seja estimulado a aprender. Já tínhamos mais de 1,5 milhão de estudantes fora da escola, a maior parte dos alunos abandonam a escola no segundo ciclo do Ensino Fundamental. Muito provavelmente essas pessoas não terão uma profissão adequada, que possa trazer uma qualificação da sua vida, um aumento do salário.
O segundo passo é fazer uma avaliação de como esses jovens retornaram e quais são suas reais necessidades. Será preciso arranjar novamente o currículo, de forma que atenda às necessidades dos alunos, e proporcionar a estrutura adequada para que tenha segurança e saúde dentro da escola, para a gente não ter que parar novamente.
Do ponto de vista da Unesco, principalmente a educação básica tem que ser pública e gratuita. A implementação cabe ao Estado, e as famílias devem estar dando todo o respaldo para que isso aconteça. No entanto, a responsabilização por uma educação de qualidade é de todos. Ela é da comunidade, dos professores, dos estudantes também, de todas as pessoas.
O quão importante é o desafio da inclusão nas escolas brasileiras?
É importante porque a gente precisa dar uma educação de qualidade para todo mundo, não só para uma parte dos jovens. Isso não se faz dando vaga, colocando para dentro da escola. Isso se faz dando a real oportunidade de aprendizagem. É matricular com as devidas oportunidades.
Por exemplo, o estudante que é LGBT+ tem que se sentir integrado e incluído. Muitas vezes, o estudante trans abandona a escola por bullying ou por não ter banheiro adequado. Se é um estudante cego, surdo, paraplégico, eu tenho que dar condições para ele, para que possa, de fato, aprender. Se é um estudante pobre, que andou vários quilômetros para chegar na escola, com fome, eu preciso suprir essas necessidades. A escola tem que estar atenta e promovendo inclusão. No Brasil, quando se fala de educação inclusiva, se pensa só em aluno com deficiência, mas, para a Unesco, é geral.
Equidade de gênero ainda é uma questão na educação brasileira?
O Brasil alcançou a paridade de gênero, a gente dá o mesmo número de vagas para meninos e meninas. Mas a gente não tem uma equidade de gênero, realmente. Se uma menina engravida, por exemplo, ela não é acolhida pela escola. Às vezes por causa da amamentação, ela acaba abandonando, porque a escola acha que não é problema seu.
E qual você considera o principal desafio da educação no Brasil hoje?
O desafio da qualidade é o mais importante, e não é alcançado se não tivermos trabalhados esses outros desafios que citei. Há uma série de componentes nele, como o componente curricular. Hoje a gente tem a Base Nacional Comum Curricular, o que é muito bom. Mas cada município tem que desenvolver seu currículo de acordo com sua realidade, fazer um currículo abrangente, que incorpore os aspectos daquela comunidade.
A parte de estrutura também é importante na qualidade, eu tenho que ter uma sala de aula segura, tenho que ter banheiro, quadra de esportes, computadores, internet rápida, tenho que ter biblioteca. Preciso oferecer uma estrutura que proporcione ao estudante expandir seu aprendizado. Além disso, a gente tem o planejamento educacional, desde o planejamento na secretaria, até dentro da escola, e o relacionamento com os pais também é importante para a qualidade do ensino. Outra questão que influencia demais é a formação dos professores: eles têm que estar preparados para o estudante.
E como os professores precisam ser preparados?
O professor faz o curso de Licenciatura, cai numa sala de aula de educação básica e não sabe como lidar com a realidade que tem ali. É muito diferente do que é ensinado na formação inicial. A gente precisa melhorar o currículo da formação inicial, para que tenha mais prática, para que ele conheça melhor onde ele vai trabalhar depois.
Além disso, é necessário haver uma formação continuada, que vai discutindo com o professor, atualizando ele e debatendo os temas mais atuais e importantes de acordo com a sua necessidade de formação. A ideia é ir avaliando e vendo as deficiências do professor para poder saná-las. Mas uma avaliação construtiva, que pretende melhorar e não punir.
O Rio Grande do Sul tem mais ou menos os mesmos desafios do que o brasil na sua totalidade, com uma condição um pouco melhor em alguns aspectos, como na aprendizagem. Mas tem um problema grande, por exemplo, na diversidade. Ainda há muito racismo no estado e, falando em equidade, há também a questão de gênero, ainda há muito machismo.
E a quem cabe resolver todos esses desafios?
Do ponto de vista da Unesco, principalmente a educação básica tem que ser pública e gratuita. A implementação cabe ao Estado, e as famílias devem estar dando todo o respaldo para que isso aconteça. No entanto, a responsabilização por uma educação de qualidade é de todos. Ela é da comunidade, dos professores, dos estudantes também, de todas as pessoas.
Fala-se muito sobre educação plural? O que é?
Educação plural é uma educação para todos, uma educação que compreende as dificuldades existentes e faz com que todas as pessoas, de qualquer etnia, de qualquer raça, qualquer gênero, orientação social, pobre ou rica, tenham oportunidade de aprendizagem igual. A educação plural reconhece a diversidade existente, e a diversidade é muito rica, são muitas experiências, muitas formas de conhecimento. Não há uma juventude no Brasil, há juventudes.
Cada estudante tem a sua forma de aprender, e nenhuma é melhor que a outra. Todas são boas, desde que valorizem o aluno e possamos dar a oportunidade de ele aprender. Por exemplo, os indígenas. Eles aprendem de uma forma diferente da nossa, têm uma forma de pensar que não é errada, é diferente. E eu tenho que ofertar ensino na língua deles, sei que a criança aprende muito mais quando aprende na língua materna. É minha obrigação fornecer uma educação em português e também na língua dele.
Essa pluralidade é muito importante de ser reconhecida por todos, incluindo os pais. Há pais que não querem seus filhos em salas com deficientes, ou então são racistas. Isso infelizmente existe. É preciso ir ensinando a essas pessoas sobre essa pluralidade. Que somos todos diferentes e que, se somos todos diferentes, somos todos iguais.
E como a educação plural impacta positivamente a sociedade?
Uma educação que reconhece as diversidades é qualificada e consegue ter melhores resultados. Não no sentido de “tirar 10” na prova, mas no sentido de ter uma construção, uma transformação daquele jovem em uma pessoa melhor. E ele vai poder usar esse conhecimento na sua cidade, no seu Estado, no seu país e globalmente. E progredir. É assim que a gente progride. É importante aprender a viver juntos e desenvolver uma compreensão dos outros, até mesmo um apreço pela interdependência. Por isso é importante respeitar os valores do pluralismo e aprender a gerir conflitos.
De que forma se ensina a gerir conflitos em sala de aula?
É trabalhar as habilidades socioemocionais, como a empatia, a autoestima, o respeito, o pensamento crítico. Isso você trabalha desde a Educação Infantil, claro que adaptado à idade. Se eu tiver autocontrole, eu não vou entrar em uma briga. Se eu respeito a diversidade, não vou fazer bullying com os colegas. O professor tem que construir uma educação que seja contra a violência e a favor da paz, trazendo todos os elementos da diversidade cultural e da pluralidade.
Como você vê o aumento da lacuna entre o ensino privado e público durante a pandemia?
O ensino público se prejudicou porque o público com o qual trata é mais pobre, precisa de mais cuidado e de estrutura. Mas eu considero que o setor privado também teve um grande desafio, precisou trabalhar a metodologia, um sistema híbrido. Esse setor conseguiu segurar melhor a peteca, mas também teve dificuldades. A lacuna aumentou mais pela perda do setor público do que pelo privado ter ido melhor.
O ensino híbrido vem para ficar?
O que a gente fez na pandemia foi o ensino remoto, muitas vezes intermediado por uma apostila ou outros materiais. Uma educação híbrida não necessariamente é assistir à aula transmitida por computador, na casa do aluno. A educação híbrida é aquela que utiliza tecnologia para complementar a aprendizagem. E a tecnologia veio para ficar, então é importante formar os professores na tecnologia, formá-los nas metodologias que devem ser usados com a tecnologia. Devemos pensar em formatos híbridos de educação para cada disciplina e implementar, de fato, uma educação híbrida.
Especificamente no estado do Rio Grande do Sul, quais são os principais desafios identificados pela Unesco?
O Rio Grande do Sul tem mais ou menos os mesmos desafios do que o Brasil na sua totalidade, com uma condição um pouco melhor em alguns aspectos, como na aprendizagem. Mas tem um problema também bastante grande, por exemplo, na questão da diversidade. Ainda há muito racismo no Estado e, falando em equidade, há também a questão de gênero, ainda há muito machismo. É claro que tem muitos lugares avançados, tem muita gente boa. Mas trabalhar a diversidade é superimportante.
Qual é a realidade da educação no Brasil em comparação com outros países da América Latina e do mundo?
A América Latina é a região mais desigual que existe. Em todos os países, a gente tem problema de inclusão, de qualidade, todos os problemas que existem no Brasil se repetem nas outras nações. E o Brasil é um país continental, tem 48 milhões de estudantes, 2 milhões de professores, uma realidade extremamente difícil de trabalhar.
Quem está um pouco melhor são o Chile e o Uruguai, mas há países piores em termos de proficiência mínima, conhecimento de leitura, matemática – casos de Honduras, Guatemala e Paraguai.
Com relação aos países desenvolvidos, é complicado fazer esse tipo de comparação, porque os currículos e a realidade socioeconômica são muito diferentes. A Coreia do Sul, por exemplo, no século 12 já tinha universidade. Acho melhor fazer comparações dentro da América Latina, tem uma realidade mais parecida com a nossa.
Entre as metas da Onu para o desenvolvimento sustentável, quais são as prioritárias para a realidade da educação do Brasil?
Os objetivos para desenvolvimento sustentável da ONU são 17, e o número 4 é o que fala da educação, que é “garantir o acesso à educação inclusiva, de qualidade e equitativa, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”. Dentro dele, tem metas para a Educação Infantil, de dar aprendizagem profissional aos jovens, de formar professores. Depois, cada país desenvolve suas prioridades. O Brasil tem um Plano Nacional de Educação muito bom, mas muito desse plano, que se estende até 2024, não vai ser cumprido. Já estamos vendo que não vai ser cumprido, não está sendo e não vai ser.
Na realidade do Brasil, dentro das metas da ONU, eu destacaria a meta 4.7, que diz o seguinte: “Até 2030, garantir que todos os alunos adquiram conhecimentos e habilidades necessárias para promover o desenvolvimento sustentável, inclusive, entre outros, por meio da educação para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida sustentáveis, direitos humanos, igualdade de gênero, promoção de uma cultura de paz e não violência, cidadania global e valorização da diversidade cultural e da contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável”. Uma educação de qualidade depende disso, depende de que seja transformadora.
No seu entendimento, qual é o real objetivo da educação?
É promover o cidadão para que ele realmente transforme sua vida. Para que ele saiba aprender a aprender, porque ele tem que continuar aprender ao longo da vida; aprender a fazer, ou seja, ter uma profissão; aprender a ser, e aí entra a questão de virtudes, de ética; e aprender a conviver, que é onde vai aprender a viver em sociedade de uma forma harmoniosa. A educação não é apenas aquela que passa conhecimento cognitivo, ela visa a transformar.