O corte de 87% na verba do governo federal prevista para ciência e tecnologia — de R$ 690 milhões para R$ 89,8 milhões — pegou as universidades federais de surpresa. Procurados pela reportagem de GZH, reitores apontaram que a comunidade científica havia criado expectativas, diante do lançamento recente de um edital com previsão de R$ 250 milhões para pesquisas, e que a mudança cria frustração e situação “vergonhosa”, que põe o Brasil “de joelhos” em relação a países que investem no setor.
O próprio ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, expressou, em rede social, descontentamento com a redução.
“Falta de consideração. Os cortes de recursos sobre o pequeno orçamento de ciência do Brasil são equivocados e ilógicos. Ainda mais quando são feitos sem ouvir a comunidade científica e setor produtivo. Isso precisa ser corrigido urgentemente”, defendeu o ministro em sua conta no Twitter.
Os cerca de R$ 600 milhões cortados seriam destinados a bolsas de apoio à pesquisa e a projetos já agendados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Entre eles, estão os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), que incluem, por exemplo, o Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que realiza expedições à Antártica.
Outra iniciativa que deve sofrer cortes é o edital da Chamada Universal, que não era lançado há três anos e, há pouco mais de um mês, foi publicado, com previsão de destinar R$ 250 milhões a pesquisas em todas as áreas de conhecimento.
Presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Marcus David afirma que a publicação de editais de chamamento para pesquisas havia dado esperança à comunidade científica, após uma sucessão de reduções orçamentárias observadas desde 2016.
— Quando tivemos expectativa de ter algum investimento, ainda que muito aquém das nossas necessidades, esse projeto se frustra neste momento. Compromete a ciência e a tecnologia e seus laboratórios, mas também o próprio futuro do Brasil — destaca.
E prevê:
— O Brasil vai pagar a conta disso pelos próximos 15, 20 anos.
Pesquisas de tratamentos para câncer e covid-19 serão afetadas
Segundo a reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Lucia Pellanda, boa parte das pesquisas que recebem aporte de recursos do CNPq na instituição tem aplicações imediatas, que geram economia de recursos para o Brasil.
— Quando desenvolvemos uma intervenção mais barata dentro das nossas instituições, o país precisa comprar menos de fora. Então, na verdade, a gente economiza. Ou seja: é um investimento, e não um gasto — compara a reitora.
De 30% a 40% dos estudos feitos na UFCSPA têm financiamento do CNPq. Entre os projetos realizados na universidade está uma pesquisa para desenvolver uma imunoterapia para o câncer e para o tratamento da covid-19, que recebeu o Prêmio Bolsista Iniciação Científica Tecnológica.
Um projeto para o uso de inteligência artificial para determinar o prognóstico para pacientes com câncer, premiado no concurso Falling Walls, e outros estudos, envolvendo o desenvolvimento de estratégias de reabilitação para pacientes recuperados da covid-19, novos tratamentos para queimaduras e novas terapias para enfrentar bactérias multirresistentes, também estão em andamento. Todos eles serão afetados pelos cortes.
A instituição tem buscado aportar recursos próprios nas pesquisas já em andamento. As que começariam em 2022, entretanto, podem nem sequer sair do papel. Até mesmo as bolsas de mestrandos e doutorandos podem ser comprometidas.
— Com o tamanho desse corte de recursos, não temos como fazer a manutenção das bolsas. Temos alunos prodígios, que se destacaram e ganharam do CNPq bolsas de R$ 2,2 mil, mais uma taxa de bancada (usada para comprar insumos para o laboratório) de R$ 300, e o governo fará cortes nesses trocadinhos. É a famosa fuga de cérebros: os estudantes querem ficar no Brasil, mas não conseguem — lamenta a pró-reitora substituta de Pesquisa e Pós-Graduação da UFCSPA, Elizandra Braganhol.
Reitor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Paulo Burmann considera essa uma situação vexatória. Na instituição, a estimativa é de que pelo menos 200 projetos em andamento sejam afetados.
— É vergonhoso passar por um cenário orçamentário como este. Havia uma perspectiva de retomada, que lutamos muito para acontecer. Nos deixa perplexos tamanha irracionalidade — ressalta Burmann, sinalizando, ainda, a importância da ciência no contexto da pandemia, com o desenvolvimento de experimentos com vacinas e produção dos imunizantes.
O reitor também destaca que o Brasil despendeu muitos recursos para formar pesquisadores que, agora, acabarão migrando para outros países:
— É uma irresponsabilidade com o recurso público. Um dos grandes pesos da balança comercial hoje é a importação da ciência, e estamos fazendo o caminho inverso: temos todo o custo de produção de cientistas e, depois, os exportamos, sem ganho algum. Tudo isso nos coloca novamente de joelhos em relação a quem investe em pesquisas — critica.
Além das universidades, o Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) também sofrerá o impacto dos cortes. Lá, centenas de alunos recebem bolsas de iniciação científica para participarem de pesquisas de diferentes áreas — saúde, orientação a pequenos empresários, tecnologias para pessoas com deficiências, estudos com alimentos, mecânica, agricultura, entre tantos outros. O reitor da instituição, Julio Heck, diz que ainda não é possível mensurar o que a redução orçamentária representará, mas espera que as bolsas já em andamento sejam mantidas.
— As bolsas vão de agosto de um ano até julho do outro. Via de regra, o CNPq prioriza o pagamento de bolsas em detrimento dos projetos. O que nos preocupa, mais do que tudo, é o impacto no edital da Chamada Universal — pontua Heck.
O reitor do IFRS afirma que quanto mais preparado o país está, em termos de inovação e pesquisas, mais rapidamente consegue reagir às crises, e, na pandemia, foi possível perceber a dificuldade do Brasil nesse sentido.
— Aqui, nós engatinhamos. O Brasil não tem valorizado a pesquisa e a ciência. Sentimos isso no dia a dia, e quem não desenvolve pesquisa, não desenvolve soberania. Cortar 90% da verba da ciência em um único ato diz muito sobre o Brasil — resume o reitor.
UFRJ pode abortar criação de vacina brasileira contra a covid-19
Em fase final das etapas pré-clínicas da elaboração de uma vacina contra a covid-19, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) poderá abortar os estudos em virtude do corte orçamentário. O investimento no imunizante, chamado UFRJvac, seria do CNPq. Os pesquisadores planejavam receber a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para dar início aos testes em humanos até o final de 2021.
— Precisamos desse medicamento envasado, com boas práticas de laboratório, contratar o ambiente de empresas que produzem medicamentos, para poder fazer essas vacinas, para, então, serem testadas em seres humanos. Podemos perder a chance de termos uma vacina até mais eficaz do que as desenvolvidas pela Inglaterra, pela China, pela Índia. Investimentos como este colocariam o Brasil no protagonismo — salienta a reitora da UFRJ, Denise Carvalho.
A reitora cita como exemplos de ocasiões nas quais o Brasil foi protagonista ao investir em ciência, como quando criou uma tecnologia para tratar águas poluídas por estações de petróleo ou quando desenvolveu aeronaves para a Embraer. Denise ressalta, ainda, investimentos que seriam necessários hoje, como em tecnologias que ajudassem o Brasil na transição energética para energias limpas, fugindo, assim, da possibilidade de apagões.