Correção: a farmacêutica Bayer produz e comercializa cloroquina em outros países, e não no Brasil, como estava nesta reportagem entre os dias 16 e 21 de julho. O texto já foi corrigido.
Mesmo que especialistas em saúde pública temam efeitos colaterais da cloroquina no uso contra o coronavírus, o embate em torno do medicamento, com contornos técnicos e políticos, movimenta o mercado farmacêutico brasileiro. Diante de um mercado em perspectiva, laboratórios privados planejam ampliar a fabricação, medida já tomada pelo Exército, para distribuição em hospitais e postos de saúde públicos.
O aumento da produção do Laboratório Químico Farmacêutico do Exército (LQFEx) foi determinado pelo presidente Jair Bolsonaro, defensor enfático da cloroquina. Desde o início da pandemia, o LQFEx chegou a aumentar em 80 vezes a fabricação da substância.
A média era de 250 mil comprimidos a cada dois anos, quase todos para combater malária e também doenças reumatoides, como o lúpus. Agora, foram 2 milhões de pílulas em três meses (março, abril e maio), com prioridade para a covid-19.
A produção só parou por falta de insumo, vindo da Índia, mas foi retomada em junho, numa quantia ainda não divulgada pelas Forças Armadas. O assunto, aliás, já motivou uma polêmica.
O Ministério Público de Contas (MPC) solicitou ao Tribunal de Contas da União auditoria sobre possível superfaturamento nas compras de insumos de cloroquina feitas pelo Exército, sem licitação. Checa também o porquê da ampliação na oferta de um medicamento que ainda não tem comprovação científica para tratar a covid-19.
O subprocurador-geral do MPC, Lucas Rocha Furtado, investiga se procedem informes de possível superfaturamento. Afinal, o preço do quilo do sal difosfato (matéria-prima produzida na Índia) comprado pelo Exército saltou de R$ 219 para R$ 1,3 mil entre maio de 2019 e maio de 2020. O Ministério da Defesa lembra que tudo que combate o coronavírus foi inflacionado após a pandemia.
O Exército informa que toda a produção do seu medicamento se destina a uso público: 1,7 milhão para a rede civil (postos de saúde e hospitais públicos) e 250 mil para os hospitais militares. Há possibilidade de Marinha e Aeronáutica se unirem a esse esforço de fabricação. Conforme acerto entre as pastas da Saúde e da Defesa, o custo da produção é todo bancado pelo primeiro ministério. Foram gastos R$ 265 mil para fabricá-los.
Mas a produção do laboratório militar, localizado no Rio de Janeiro e criado em 1808 (com o nome de Botica Real Militar), não atende à enorme demanda criada pela maior ameaça sanitária já enfrentada pelo Brasil. O país está com mais de 1,7 milhão de infectados pelo coronavírus e parte deles permanece hospitalizada em estado grave, que é a condição na qual a cloroquina costuma ser usada. Além disso, as Forças Armadas produzem só o difosato de cloroquina (fabricado desde 1940) e não sua forma mais moderna e com menos efeitos colaterais, o sulfato de hidroxicloroquina.
É aí que entram os laboratórios privados, que prometem medicamento moderno (de última geração), em troca da perspectiva de um mercado de R$ 9,7 milhões mensais. Está longe de ser uma grande quantia no mundo dos fármacos, que movimentam R$ 4,7 bilhões mensais no Brasil — ou seja, 500 vezes mais que o da cloroquina. Mas é sempre uma fatia mercadológica a ser disputada.
Hoje, três indústrias particulares estão autorizadas a comercializar hidroxicloroquina no Brasil: a multinacional Sanofi, e as brasileiras EMS e Apsen.
A da Sanofi é importada da Europa. Essa empresa, inclusive, decidiu interromper as vendas no Brasil, em meio à polêmica sobre efeitos adversos em pacientes com covid-19. Uma quarta empresa, a brasileira Cristália, se ofereceu para produzir.
Essas indústrias farmacêuticas informaram à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que reúnem condições de produzir 7,2 milhões de comprimidos por mês. Como o remédio está com patente quebrada há quatro décadas, é só começar a produzir, assim que a Anvisa pedir.
Isso significaria um mercado de R$ 9,7 milhões para os laboratórios. Isso é 50 vezes menos que o medicamento mais vendido no país, o relaxante muscular Dorflex. A grande diferença é o tipo de droga: a cloroquina só é usada em inflamações graves e traz embutida a possibilidade de uma gama de efeitos colaterais, a começar pela arritmia cardíaca.
As fábricas vendem cada comprimido de cloroquina pelo dobro do custo de produção, sendo o custo da hidroxicloroquina sete vezes maior que o da fabricação da cloroquina. Um exemplo: o custo atual é de R$ 0,20 por comprimido de cloroquina. Já os hospitais pagam R$ 0,45 pelo comprimido de cloroquina (o dobro do custo de fabricação) e R$ 1,36 pelo de hidroxicloroquina.
Capacidade operacional os laboratórios privados garantem ter. O grupo EMS, por exemplo, disse à Anvisa que pode fabricar até 1,4 milhão de comprimidos de sulfato de hidroxicloroquina 400 mg ao mês. Já a Apsen projetou mais 5,8 milhões de unidades desse tipo, mensais. A Cristália assegura conseguir fabricar 1,35 milhão de comprimidos, no mesmo período.
Os laboratórios não informam o total de cloroquina fabricado, mas o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) diz que o consumo de cloroquina cresceu 358% durante a pandemia, noticiou o jornal O Estado de S. Paulo.
O governo também trabalha com alternativas. A Fundação Oswaldo Cruz, por exemplo, informou que possui insumo para a produção de 4 milhões de comprimidos, com entrega estimada em 30 dias a partir do pedido.
Não há uma estimativa da necessidade de cloroquina no país, até porque os médicos relutam muito em usar o medicamento e não se sabe a quantia de pacientes que farão uso, nem quantos comprimidos cada um vai ingerir (depende da gravidade do quadro clínico).
Apesar do entusiasmo com a cloroquina e a hidroxicloroquina, é a própria Anvisa que alerta: não há resultados que garantam sua segurança e eficácia no tratamento da covid-19. Existem oito estudos clínicos aprovados pela agência, em andamento, mas nenhum está concluído. Estão em etapa de análise ainda, não de liberação para tratamento.
Quem é quem nos laboratórios privados
A hipótese de ampliar a produção de cloroquina conta com o entusiasmado apoio de donos de laboratórios farmacêuticos, que se reuniram com integrantes do governo em reuniões virtuais em abril e maio. Conheça os interessados:
Cristália - Disposto a fabricar hidroxicloroquina, o laboratório Cristália é especialista em medicamentos de baixo custo. O controlador da fábrica, Ogari Pacheco, é suplente de senador em Tocantins pelo DEM e apoiador de Bolsonaro, que compareceu a recente inauguração de nova planta do laboratório em Itapira (SP). Foi o terceiro candidato mais rico do país em 2018, com patrimônio declarado de R$ 407 milhões, segundo levantamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
EMS - Chamado de "rei dos genéricos", o EMS produz uma hidroxicloroquina genérica, semelhante ao Plaquinol, da francesa Sanofi-Aventis (que tem como acionista o presidente norte-americano Donald Trump). O dono do EMS e de outro laboratório apto a produzir cloroquina, o Germed, é Carlos Sanchez, que participou de duas reuniões de industriais com Jair Bolsonaro, nas quais o presidente prometeu pressionar a Índia pela venda de produtos necessários à fabricação do medicamento. Sanchez foi um dos que pediram e conseguiram que o imposto de importação dos insumos da cloroquina fosse zerado. Ele também obteve aprovação da Anvisa para estudos clínicos apoiados pela EMS para uso de hidroxicloraquina em pacientes com coronavírus.
Apsen - Fabricante do Reuquinol, o laboratório encampou a proposta de aumentar a produção do medicamento. O Reuquinol foi exibido por Bolsonaro em conferência online com os líderes do G20. A foto do presidente mostrando o medicamento em entrevista coletiva com participação da imprensa mundial foi reproduzida nas redes sociais pelo dono do laboratório, Renato Spallicci, apoiador de Bolsonaro. O empresário prometeu "turnos extras" de jornada industrial para conseguir triplicar a produção do remédio.