É enganoso um vídeo que circula nas redes sociais e atribui notícias sobre os efeitos colaterais da cloroquina e da hidroxicloroquina a uma “luta contra o presidente Jair Bolsonaro”. Na realidade, os alertas sobre a utilização dessas substâncias contra a covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, têm como base o fato de não existirem provas da eficácia da substância para tratar a doença. Como a cloroquina e a hidroxicloroquina podem gerar efeitos colaterais graves, autoridades sanitárias têm enfatizado os riscos de utilizá-las.
No vídeo, um homem apresenta uma lista de efeitos colaterais de um remédio e, em seguida, diz ao espectador não se tratar de algo retirado da bula da hidroxicloroquina, mas sim da Novalgina, um dos nomes comerciais da dipirona sódica, medicamento destinado ao tratamento de dores e à redução da febre.
O homem no vídeo acerta ao dizer que a cloroquina é usada contra a malária há 70 anos, mas engana ao insuflar sua eficácia e ao minimizar seus efeitos colaterais, o que pode causar danos à saúde de quem acreditar no que é dito no vídeo.
Por que investigamos?
O Comprova verifica conteúdos que tenham muita viralização e repercussão nas redes sociais sobre a pandemia. O vídeo em questão se insere no contexto da disputa iniciada pelo presidente Jair Bolsonaro acerca do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina como tratamento para a covid-19.
Assim como o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, Bolsonaro insiste na adoção dessas substâncias apesar da ausência de dados técnicos ou científicos que comprovem a afirmação. Além disso, os efeitos colaterais dessas substâncias podem ser graves, o que torna sua utilização arriscada em se tratando de uma doença para a qual elas não têm eficácia atestada.
Para o Comprova, o conteúdo enganoso é aquele que foi retirado do contexto original e usado em outro com o propósito de mudar o seu significado; que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; ou é o conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Como verificamos?
Foram realizadas pesquisas no Google, nas redes sociais Facebook e Instagram, resgatando informações sobre os envolvidos no vídeo, e buscas de artigos científicos no Brasil e pelo mundo, além de reportagens nacionais e internacionais. O Comprova também levantou documentos, recomendações e orientações das principais associações, instituições profissionais e científicas que discutem técnica e cientificamente o assunto.
Os envolvidos na produção do vídeo foram entrevistados por e-mail, telefone e aplicativo de mensagens WhatsApp.
Verificação
Um dos responsáveis pelo vídeo, que aparece em frente à câmera, é identificado como José Renato Castro. Com uma simples busca no Google, o Comprova identificou essa pessoa. Ele é um ator, produtor cultural e musical que fez sucesso nos anos 1990, como integrante da dupla musical e humorística “Rosa e Rosinha”. Castro atua como o cantor “Rosa” desde 1993.
José Renato diz que sentiu necessidade de se “afirmar politicamente” no vídeo devido à baixa qualidade das informações na internet. Ele afirmou querer alertar as pessoas que o uso de qualquer medicamento tem contraindicações e pode ser perigoso. A ideia “era falar sobre coisas verdadeiras” e, por isso, fez a parceria com seu amigo, o escritor Leo Reis, porque gosta dos textos produzidos por ele.
Leo Reis é o corresponsável pelo vídeo. Eles foram parceiros musicais na dupla musical Rosa e Rosinha. Reis também foi médico da família de José Renato Castro. Ele afirma ser escritor, músico e compositor e explica que é formado em medicina pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ao longo da carreira, foi dono de hospital, cirurgião, clínico geral e atuou na Amazônia tratando pacientes com malária usando a cloroquina. Há 20 anos trabalha como médico de diagnósticos por imagem.
Tanto José Renato quanto Leo Reis acreditam que a hidroxicloroquina e a cloroquina têm efeito contra o novo coronavírus quando combinada com outros tratamentos, como a azitromicina, zinco ou a aplicação de plasma sanguíneo. José Renato admite, no entanto, que as substâncias não são a cura para a covid-19, mas diz acreditar que são um “fio de esperança”.
Ambos ressaltaram ao Comprova a defesa do uso da medicação alegando ter amigos e colegas que fizeram uso das drogas com resultados positivos. Como o Comprova informou em outras verificações, experiências pessoais compartilhadas como verdade absoluta, sem pesquisa adequada e comprovação científica, podem causar danos.
Leo Reis acrescenta ainda que o remédio só deve ser receitado na “primeira fase” da covid-19, “antes que os pulmões sejam atingidos”. Depois disso, o medicamento não teria mais efeito. Como também o Comprova já mostrou, não há evidência científica sobre a capacidade de nenhuma medicação impedir a evolução para a fase inflamatória da doença.
Cloroquina e covid-19
Ao incentivar o uso da hidroxicloroquina, o vídeo engana os espectadores e pode levá-los a ter problemas de saúde para além da covid-19.
Em 22 de maio, a revista de medicina The Lancet publicou o maior estudo sobre o uso da hidroxicloroquina em pacientes com covid-19, com dados de 96.032 pacientes internados em 671 hospitais, nos seis continentes. A pesquisa desqualificou a hidroxicloroquina como tratamento eficaz para a doença provocada pelo novo coronavírus e concluiu que a substância pode estar relacionada a um aumento no risco de morte por problemas cardíacos.
Desses pacientes analisados pelo estudo, 14.888 fizeram o tratamento com macrolídeos (grupo de antibióticos, como a azitromicina): 1.868 pessoas foram tratadas com hidroxicloroquina e 3.016 com cloroquina; 6.221 pacientes tomaram hidroxicloroquina com antibiótico e outros 3.783 usaram cloroquina com antibiótico, enquanto o restante, 81.144 pacientes, não tiveram o tratamento.
A pesquisa apontou a ineficácia da hidroxicloroquina e da cloroquina para o tratamento por covid-19, tanto no uso sozinho ou combinado com os macrolídeos. Os pacientes que tiveram o tratamento específico apresentaram o aumento no risco de morte por problemas cardíacos.
Os protocolos do Ministério da Saúde
No Brasil, o uso da hidroxicloroquina para tratar a covid-19 é regulado pelo Ministério da Saúde.
Em uma nota técnica de 27 de março, a pasta sugeriu, em seu primeiro protocolo sobre o tema, o uso da cloroquina para covid-19. É necessário que o paciente declare ciência dos efeitos colaterais do remédio. Na ocasião, o documento determinava que a substância deveria ser utilizada pelos médicos no tratamento apenas de pacientes graves e hospitalizados diagnosticados com a doença provocada pelo novo coronavírus. O protocolo reforçava que tanto a cloroquina quanto a hidroxicloroquina não eram indicadas para prevenir a doença nem tratar casos leves.
Dois meses depois, em 20 de maio, o ministério publicou novas recomendações para ampliar o acesso ao medicamento por pacientes com covid-19. Desde então, o uso pode ser feito também por pacientes com sintomas leves, desde que no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). O tratamento pode variar conforme os sintomas e a saúde do paciente e o acesso ao medicamento só pode ser feito por prescrição médica, com a concordância por escrito do paciente para o uso da medicação.
O uso da cloroquina
O vídeo acerta apenas ao afirmar que a cloroquina é usada contra a malária na região amazônica há 70 anos. Ocorre que, neste caso, há estudos que comprovam a eficácia da substância, ao contrário do que se pode constatar no caso da covid-19.
A cloroquina foi descoberta em 1934, mas de início foi avaliada como uma droga muito tóxica e acabou rejeitada. Novos estudos realizados nos Estados Unidos e na Austrália mostraram que variações do medicamento eram possíveis para o tratamento de doenças, desde que a dose fosse ajustada. Em 1945, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou a cloroquina para o tratamento da malária. O medicamento foi distribuído em massa na região amazônica e outras regiões do mundo com alta predominância de casos.
Farmacêuticos e a cloroquina
O vídeo engana, também, ao destacar que a cloroquina ou a hidroxicloroquina podem ser indicadas por farmacêuticos. No caso da covid-19, entidades que reúnem farmacêuticos têm feito alertas importantes a respeito disso.
O Conselho Federal de Farmácia (CFF) publicou um texto em seu portal, no dia 31 de março, explicando que o uso da hidroxicloroquina e da cloroquina “não evita que pessoas fiquem doentes por coronavírus e, por isso, não devem ser usados para prevenir a covid-19”. No mesmo texto, o CFF ressalta que ainda não há um estudo definitivo e que o “uso se justifica apenas com prescrição e supervisão médica, com acompanhamento de profissionais de saúde, dentro de hospitais, como parte de um protocolo de pesquisa”.
O Conselho Regional de Farmácia de São Paulo (CRF-SP), por sua vez, publicou em 18 de maio uma nota técnica com diversos alertas à classe. O documento ressalta que, diante das orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS); da Lei 13.021/2014 sobre o uso racional de medicamentos; do código de ética do Conselho Federal de Farmácia (CFF); e de uma resolução do CFF de 2001, o farmacêutico só deve liberar a “cloroquina e outros medicamentos utilizados para a covid-19” diante da apresentação da “prescrição médica, ainda que não seja medicamento sob regime especial de controle”.
Contexto
Desde março, o presidente da República, Jair Bolsonaro, tornou-se um dos principais defensores do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19, mesmo sem confirmações científicas e após o apoio e recuo de líderes estrangeiros, como Donald Trump, presidente dos Estados Unidos. Por várias vezes, Bolsonaro defendeu o uso do medicamento em coletivas de imprensa, vídeos e textos publicados nas redes sociais e até mesmo em pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão.
A insistência no medicamento já provocou a saída de dois ministros da Saúde durante a pandemia do coronavírus – Henrique Mandetta e Nelson Teich. Ambos discordavam da indicação do presidente da República. O segundo protocolo do Ministério da Saúde, citado acima, só foi publicado após o general Eduardo Pazuello assumir interinamente a pasta.
Com a defesa do presidente ao medicamento, muitos apoiadores, entre eles seus filhos, como o vereador pelo Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro, atacaram adversários, como o governador de São Paulo, João Doria, para apoiar o uso da cloroquina.
A Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), a Sociedade Brasileira de Virologia (SBV), a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), a Associação de Medicina Intensiva Brasileria (AMIB), a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e a Associação Médica Brasileira (AMB) são algumas das organizações científicas e profissionais que publicaram orientações e recomendações reforçando que ainda não há evidências que comprovem a eficácia do medicamento, e que sua eventual aplicação seja feita conforme a situação ou protocolo determinado.
Alcance
O Comprova verificou que vídeo original foi publicado na página do Facebook de José Renato Castro no dia 19 de maio. Até 25 de maio, já foi visualizado mais de 90 mil vezes, com 74 comentários, 745 reações e mais de 5 mil compartilhamentos. No Instagram, o vídeo também já foi visualizado mais de 2 mil vezes.
Projeto Comprova
Em expediente especial, a nova fase da coalizão do Projeto Comprova, composta por 24 veículos de comunicação brasileiros irá se dedicar a monitorar redes sociais e aplicativos de mensagens em busca de informações duvidosas sobre o coronavírus. O objetivo da iniciativa é expandir a disseminação das informações verdadeiras. Fazem parte da coalizão do Comprova veículos impressos, de rádio, de TV e digitais de grande alcance. Este conteúdo foi investigado por SBT e verificado por Estadão, Poder 360, Nexo, BandNews e UOL.
É possível enviar sugestões de conteúdos duvidosos e que podem ser verificados por meio do site e por WhatsApp (11 97795-0022). GaúchaZH publicará conteúdos checados pela iniciativa. O Comprova tem patrocínio de Google News Initiative (GNI), Facebook Journalism Project, First Draft News e WhatsApp e apoio da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). A coordenação é da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).