"Cada vida tem muita história" é o bordão que a jornalista e empreendedora Gabriella Bordasch vem adotando desde que começou a se envolver na resposta aos desastres no Rio Grande do Sul. Em mais de 20 dias de trabalho arrecadando doações e colocando quem pode ajudar em contato com quem precisa de apoio, a voluntária de 38 anos percebeu que, de pouco em pouco, "pingadinho", dá para fazer muito.
Dê um pulo nos stories do Instagram dela ou da iniciativa Vamo que Vamo RS e verá que a ajuda vem e vai para todo canto.
Nas últimas semanas, fez chegar ao RS um avião vindo de São Paulo com medicamentos e cobertores, organizou a compra de uma cadeira de rodas para uma menina de Eldorado do Sul com paralisia cerebral, garantiu uma cama hospitalar para uma senhora acamada de Canoas, enviou capas de chuva para trabalhadores da Defesa Civil, contribuiu na produção de quentinhas em Porto Alegre e organizou depósitos e galpões para receber caminhões de donativos vindos diretamente de Manaus (AM), Araranguá (SC) e de vários outros Estados.
— Além de reunir grana, nosso trabalho é a articulação com gente do Brasil inteiro para fazer as coisas chegarem. É até meio caótico, estamos unindo público e privado. Compramos três barcos, motores, remos, hélice, sem nunca esquecer das necessidades de quem está nos abrigos. Precisávamos de lugar onde as pessoas pudessem deixar as doações, então conseguimos um depósito na Azenha e um galpão gigantesco no Porto Seco, para onde direcionamos todas as cargas grandes de caminhão — explica Gabriella.
A gaúcha não faz nada sozinha, há uma equipe junto dela, mas Gabriella tem o mérito de ter conseguido utilizar a rede de contatos para conectar pessoas engajadas. Em grupo fechado do WhatsApp que criou no início de maio, cerca de 160 pessoas conversam dia e noite para fazer a ajuda chegar rápido onde é necessária.
— Numa madrugada, mandei mensagem para a Paulinha Moraes, minha parceira nessa função desde o início: "Sonhei que temos de criar um grupo com outras voluntárias, gente conhecida e de confiança, para que possamos mandar Pix e pulverizar as ajudas urgentes que as pessoas pedem". Poder, por exemplo, atender a um chamado de "precisamos urgente de X latas de leite em pó para Y abrigo". Muitas das mulheres do grupo estão nos abrigos e sabem das necessidades. Jogam na conversa o que precisam e quem vê a mensagem pega para si e resolve — detalha a voluntária.
Como começou seu envolvimento na resposta à crise?
Na sexta-feira (dia 3 de maio) me cadastrei junto à Defesa Civil do Estado como voluntária. Enquanto esperava me chamarem, mandei mensagem a algumas amigas gaúchas que moram fora do Estado, falando que planejava fazer uma compra grande de colchões, cobertas e etc. Chegaram alguns Pix delas e logo alcançamos R$ 5 mil. Depois alcançamos R$8 mil e, quando vi, aquela mobilização que começou pelo WhatsApp acabou movimentando mais de R$ 500 mil em doações na minha conta. Nos primeiros dias foi a passos de formiguinha, depois explodiu.
Quem está nesse grupo de voluntárias hoje?
Principalmente mulheres, a grande maioria. Intuitivamente esse grupo está fazendo algo tão grande que acho que conseguiria administrar uma empresa como a Amazon (risos). Acho que as mulheres têm um afeto, um carinho e uma preocupação que vai além de só resolver o básico. É aquela coisa de "sobrou X lembrancinhas do aniversário do meu filho, vou levar pra tal lugar onde sei que tem crianças abrigadas", pequenas coisas que fazem uma diferença imensa na vida das pessoas. É nutrir com afeto, atenção.
Como avalia o poder das conexões em rede para ajudar os gaúchos?
Ganhei 20 mil seguidores nos últimos tempos e não tinha noção de que iríamos conseguir mobilizar tanto. Talvez as pessoas disseminem nossa iniciativa por verem que a gente está botando a mão na massa, que não é só uma articulação de dinheiro, estamos na linha de frente, botando o pé na água, ajudando até o poder público, que tem burocracia, mas está tentando fazer a coisa acontecer da melhor forma possível. Estamos vendo tudo com nossos próprios olhos, não estamos no sofá.
A gente sempre falou que desinformação mata, mas nunca tinha tido a real noção como está tendo agora.
Você também tem sido uma voz contra as fake news. Era algo que esperava que surgisse num momento em que o RS já enfrenta tantos problemas?
Eu não imaginava e estou sempre arrumando briga por causa disso, inclusive na minha família . A gente sempre falou que desinformação mata, mas nunca tinha tido a real noção como está tendo agora. Atrapalha quem está tentando fazer um bom trabalho, tem influencer embarcando em fake news. Muitas pessoas estão querendo lacrar nas redes, mas aí pegam uma particularidade da situação e fazem tomar uma dimensão imensa. Uma meia informação já faz as pessoas divulgarem algo que não é verdade.
E quando o pico da crise tiver passado, o que vai ser essencial para continuar ajudando?
Estamos em contato com empresas que estão criando um dashboard para fazer um registro de todas as famílias que estão nos abrigos. Isso porque temos várias pessoas conectadas que querem ajudar as famílias nesse momento “pós”, por exemplo mulheres que têm marcas de roupas em São Paulo e estão montando kits de roupas para mandar para as pessoas, ou então a Magalu, que vai nos vender fogão e geladeira a preço de custo ou fazer a doação de uma grande quantidade. Estamos planejando criar kits para as casas com geladeira, fogão, cama etc.
Tem recebido apoio de iniciativas semelhantes à sua?
Algo legal que aconteceu foi que Marina Maciel, uma guria de Petrópolis (RJ) que comanda a ONG @tetoparatodos e que passou por algo parecido com o que estamos passando, me ligou e falou "Gabi, quero te dizer que eu sou você dois anos atrás”. Ela vinha me acompanhando, me incentivou a continuar e também quis marcar uma conversa para mostrar como eles fizeram para lidar com o pós-crise, que será muito punk. Estamos trocando áudios, e a ONG dela fez para nós uma doação de R$ 8 mil, uma guria que nunca me viu na vida! Ela está nos dando uma consultoria do “pós” e nós também já montamos o perfil e o site @vamoquevamors, que possivelmente vai virar uma ONG, para que numa próxima crise a gente possa ajudar as pessoas com todo o know-how que estamos adquirindo.
Você escreveu que descobriu que é libertador sair de cara lavada para ajudar os outros...
Sim! Sou uma pessoa que eu não sai de casa sem blush e rímel pelo menos, tenho uma certa vaidade. Mas, nesses últimos dias, vou te dizer que é libertador poder sair feia e ter ciência que isso não importa. Saio de cara lavada, cabelo desgrenhado, roupa que não combina e uma pochete horrorosa para eu poder botar minhas coisas e ter mais mobilidade e agilidade na rua. Ninguém está olhando pra mim, tem coisa muito mais importante rolando.
Qual é o seu papel nisso tudo?
Venho pensando sobre isso há algum tempo. Eu tinha tantas vontades e sonhos que tive que colocar o pé no freio durante a pandemia, e frear mais ainda depois, com o câncer do Scola (Gabriela foi casada com o jornalista Daniel Scola, com quem tem duas filhas). E agora que eu estava no melhor momento da minha vida financeira, de trabalho, eu sinceramente não sei como vai ser. Mas acho que está cada vez mais claro que a gente está aqui para servir o outro, fazendo o melhor para fazer as pessoas ficarem bem, quentinhas, dormindo num colchão. Acho que vamos ser cada vez menos ego e desejos em prol do todo. Eu talvez esteja sendo utópica, mas vou muito a eventos de inovação fora do país e todos eles estão falando sobre comunidade e colaboração, e é numa crise que a gente vê esse tipo de coisa.
O que tem visto de melhor e de pior?
Estamos vendo aflorar coisas incríveis, uma criatividade para conectar as pessoas, saber onde buscar, comprar, saber quem chamar e quem precisa, sem preguiça. Mas o que tem de pior é essa coisa de ficar focado nas picuinhas e querendo queimar instituição pública para se sobressair e para tentar provar que “o privado é melhor”, que “tal espectro político é melhor”. Isso, pra mim, é sair do foco.
Acha que sairemos desse momento transformados?
Estamos vivendo várias coisas ao mesmo tempo, como guerras, epidemias, pandemias e crise climática, e os conceitos de policrise e permacrise dizem que a gente não vai sair disso, não existe mais o mundo como imaginávamos. Nesse sentido, se mar calmo nunca fez bom marinheiro, então vamos virar ótimos marinheiros porque teremos que nos acostumar com isso. É horrível pensar assim? É, mas a gente tem que saber criar no meio da crise e, para isso, colaboração é essencial.