
Assim como é visível que as enchentes estão desorganizando a vida das pessoas no Rio Grande do Sul, também é nítido o trabalho das mulheres na tentativa de estruturar uma rotina digna para famílias que perderam tudo — e inclusive amparar os animais que se separaram de seus tutores.
Embora o momento impossibilite aferir em dados, o que psicólogas e antropólogas estão observando, no que diz respeito ao comportamento de uma parcela das mulheres neste momento, é uma forte resposta à crise no sentido organizar abrigos, vestir as pessoas, alimentá-las e oferecer um olhar humano a quem mais precisa — nesta terça-feira (21), o Rio Grande do Sul ainda tem mais de 72 mil vítimas da enchente em abrigos.
Assumir funções focadas em cuidar das pessoas quando a catástrofe bate à porta é algo que se repete ao longo da história. Segundo relatórios de agências relacionadas à Organização das Nações Unidas (ONU), ao mesmo tempo em que as mulheres são mais vulneráveis aos desastres naturais, com maior probabilidade de morrer e responsáveis pelos cuidados com as vítimas num contexto em que os sistemas alimentares geralmente estão destruídos, elas também têm um papel importante na resiliência e no processo de recuperação após o desastre, como salienta a psicóloga Marisa Marantes Sanchez, sócia-diretora do Instituto de Terapia Cognitiva em Psicologia da Saúde (Itepsa):
— Elas são mais vulneráveis aos desastres, mas, por outro lado, são muito atuantes nos cuidados básicos com as vítimas e na organização de grupos, não ficam como observadoras pacíficas. As mulheres são protagonistas no enfrentamento aos desastres naturais, tentando reconstruir tudo o que mantém a vida. Elas dão uma ênfase muito grande à vida e é literalmente isso que estamos observando agora, o trabalho dessas organizadoras — afirma Marisa.
— Na medida em que elas organizam a vida externa, também se permitem organizar o seu mundo interno, num movimento de reconstrução de mão dupla — completa.
Embora a figura feminina seja frequentemente colada à imagem de cuidadora, a antropóloga e psicóloga-social Gabriela Maia pondera que o comportamento de cuidar dos outros não é uma característica natural e inerente às mulheres e, sim, resultado de um processo histórico que vai construindo os desejos e influenciando a forma como as pessoas se movimentam no mundo.
— O universo histórico-social de divisões das nossas subjetividades nos leva a desejar fazer determinadas coisas, como por exemplo, decidir ir para a linha de frente de resgate nos barcos ou atuar num abrigo. Isso explica o cuidado das mulheres com pessoas em situação de trauma e desastre, enquanto os homens estão mais numa linha de frente de entrar na água, resgatar — exemplifica Gabriela.
Se hoje as mulheres ocupam posições mais ligadas ao cuidado — seja em suas vidas conjugais, familiares ou até profissionais — isso se deve, em parte, ao processo de formação do ideal de família, por volta do século 18, detalha a pesquisadora. Naquele momento, houve uma valorização da figura da mulher mãe, zelosa com os filhos, o marido e a casa.
— Historicamente, o cuidado é relegado ao feminino e isso se dá pela própria formação da ideia de família, na qual a mulher está no ambiente doméstico colada à ideia de amor: ela está no lar por amar o marido, os filhos e porque teria um "instinto materno", noção que surge nesse período. Só que nessa ideia de família, o trabalho doméstico e de cuidado são invisibilizados, motivo pelo qual hoje em dia utilizamos justamente a palavra "trabalho" para nos referirmos a esse tema, politizando o cuidado e a esfera doméstica como espaços de trabalho mesmo — problematiza a antropóloga.
A sociologia do trabalho tem mostrado, segundo Gabriela, que há, em certa medida, uma divisão sexual do mundo do trabalho, que fica ainda mais nítida quando observada pela ótica do cuidado: em áreas como enfermagem, fisioterapia, psicologia etc, as mulheres geralmente são maioria. É mais um dos fatores que contribui para a forma como o público feminino tem reagido ao momento caótico no Rio Grande do Sul:
— Várias profissões que demandam muito cuidado e muito tempo de atenção intensa tem predominantemente mulheres atuando nelas. Trazendo para o nosso contexto de hoje (num processo de desastre e organização das pessoas para ajudar com voluntariado, montar abrigos e amparar pessoas que estão vivenciando um trauma), temos uma subjetividade que vai se produzindo historicamente e que chega, então, à forma como as mulheres se colocam para cuidar do outro.
Por mais que as questões da desigualdade entre homens e mulheres tenham influência sobre o ato de cuidar, o trabalho incansável e essencial realizado pelas mulheres no front da crise no RS mostra mais uma vez, segundo Gabriela, a grande força feminina para a transformação da realidade.
— A gente está falando da sobrevivência da humanidade. No livro Ponto Zero da Revolução, Silvia Federici diz que a revolução é feminista pois são as mulheres que estão na linha de frente quando as pessoas estão passando fome ou quando precisam se organizar em grupos para sobrevivência em espaços de miséria, catástrofes de guerra ou em situações de grande abandono do Estado. Quando as mulheres unidas se envolvem pela reprodução da vida, que é a alimentação, a educação, o cuidado com as crianças, o cuidado de idosos, o mundo pode ser transformado — conclui.