Desde que o filho Benjamin foi diagnosticado com transtorno do espectro autista (TEA), há cerca de três anos, a jornalista Debora Saueressig escreve sobre sua jornada como mãe atípica e trabalha para aproximar cada vez mais essa comunidade. Junto com a nutricionista Roberta Vargas, criou o Instituto Colo de Mãe, em Porto Alegre, que oferece acolhimento social e emocional para pais e mães de crianças autistas desde o ano de 2022.
Essa dedicação à causa ajuda a explicar os mais de 50 mil seguidores que a entidade acumula no Instagram e a agilidade que a dupla de sócias teve em montar, de um dia para o outro, um abrigo para famílias com crianças PCDs de até 12 anos. Tão logo a população da Capital começou a ser afetada pelas enchentes no Rio Grande do Sul, no início de maio, as duas sócias improvisaram um espaço de acolhimento numa academia de crossfit Zona Norte. A iniciativa, inclusive, chamou a atenção do apresentador Marcos Mion, que também é um pai atípico e veio ao Estado visitar o abrigo na última quarta-feira (15).
— Desde que isso tudo começou, ficou muito marcado em mim o dia em que uma mulher com um filho autista chegou ao abrigo e começou a apontar para mim, desesperada. A única coisa que ela carregava era um guarda-chuva fechado que ela não soltava por nada, como se fosse uma arma. Quando me aproximei, ela me abraçou e disse, chorando sem parar: "eu sou tua seguidora e estou caminhando há três dias na chuva e ninguém me recebe". Ela estava absolutamente encharcada e o filho também — relata a jornalista.
O menino estava identificado com o cordão do autismo, com a estampa de quebra-cabeça, e não falava uma palavra, recorda Debora. Após o apelo da mãe, a dupla foi avaliada por um médico e acolhida no abrigo. A história é um exemplo da batalha ainda mais árdua que as famílias atípicas enfrentam: além dos lares devastados, também vai por água abaixo toda a rotina organizada para cuidar dos filhos PCDs.
Na quarta-feira (15), as cerca de 60 pessoas que estavam no abrigo temporário na academia de crossfit foram realocadas na sede oficial do Instituto, na Avenida Dr. Nilo Peçanha. O local tem seis andares e conta com uma equipe de voluntários e profissionais da saúde aptos a lidar com as particularidades dos jovens autistas. A iniciativa se mantém por meio de donativos e de valores repassados ao pix do Instituto, que serão necessários por um longo tempo, já que o objetivo do Colo de Mãe é servir de lar para as famílias atípicas durante um semestre.
— As famílias nos perguntam todos os dias “quando que a gente vai ter que ir embora?” e é muito difícil ouvir isso. Nós vamos ficar seis meses com as pessoas abrigadas aqui porque já entendemos que o nosso público tem especificidades, têm muitas questões sensoriais, alimentares, todas as quais estão sendo abarcadas pelo efetivo do abrigo. Não dá só para abrigá-los de forma emergencial e simplesmente dizer para irem embora daqui a 10 dias – argumenta Debora.
De que forma vocês se envolveram na resposta à crise no Rio Grande do Sul?
Começamos a ver os resgates na televisão e entendemos que, se fossem os nossos filhos em abrigos convencionais, eles entrariam em surto. Foi um desassossego interno, primeiramente. Não tínhamos muito claro um formato, se seria um abrigo provisório, um alojamento, mas sabíamos que era preciso um lugar que resguardasse melhor essas crianças.
A força motriz é feminina. A força emocional e a integridade psíquica é feminina.
Não sei como é ser mãe de uma criança com paralisia cerebral ou cadeirante, etc, sou mãe de um menino autista. Mas o que sei, e é por isso que nós nos sentimos à vontade para receber diferentes crianças PCDs no abrigo, é da invisibilidade dos PCDs e da nossa busca por reconhecimento social.
Como as conexões online fazem a diferença nesse momento? Vem apoio por lá?
Escrevo sobre maternidade atípica há três anos, desde o diagnóstico do meu filho, então a identificação das pessoas conosco e o grande número de seguidores começou bem antes da enchente. Foi uma coisa imediata que essas pessoas esperavam que eu fosse me envolver na situação de agora. Estou recebendo apoio delas de todas as formas que você pode imaginar, desde doações por pix, entrega de pacotes de biscoito, comidas, até já mandaram bolo para minha casa. É principalmente através de outras mães que está vindo esse apoio.
Por que uma criança com autismo teria dificuldade num abrigo convencional?
Elas têm dificuldade, é fato, é isso que dizem os relatos que estamos recebendo. Há excesso de sons, barulhos e estímulos, tem muita música e televisão. Uma pessoa dorme enquanto outra levanta, uma caminha, outra se bate, alguém abre uma janela. É muito comum que uma criança autista entre em crise diante de uma sobrecarga sensorial.
E, por exemplo, se você chegar num abrigo típico e enxergar uma criança gritando e balançando o corpo para frente e para trás, ou usando um abafador, vai estar todo mundo olhando. No meu abrigo ninguém olha. Se você for a um abrigo típico num dia de frio e encontrar uma criança sem roupa, todo mundo vai dizer que a mãe é irresponsável e não quis esquentar a criança. Já aqui sabemos que há crianças com intolerância sensorial a ponto de não conseguirem vestir sapatos, então pensamos em estratégias para cada família.
Como é feita a seleção de acolhimento?
Nosso abrigo recebeu, entre muitas aspas, "quem estava dando problema nos outros abrigos" porque as pessoas não têm manejo com os atípicos. Também vieram pessoas que ficaram sabendo através das redes sociais e bateram na nossa porta, chegaram pela rua mesmo.
Por que decidiu se envolver no front do combate à crise?
O start foi quando o meu filho autista pegou uma sacola, botou vários brinquedos dentro e falou "mamãe, é para as crianças que os helicópteros estão pegando", pois nós moramos no Bom Fim, perto de hospitais, então é helicóptero e ambulância o tempo inteiro. Hoje ele me pergunta quando é que os helicópteros vão parar.
Que leitura você faz do trabalho das mulheres nesse momento?
Há uma frase que sempre digo e que é mais válida que nunca nesse momento: "a mão que balança o berço é a mesma que move o mundo". São as mulheres que vão para a água com os filhos e elas não saem da água sem eles. São mulheres que estão aqui montando esse abrigo, não que não haja homens, mas a força motriz é feminina. A força emocional e a integridade psíquica é feminina.
Em números oficiais, a despeito da tragédia, a história da deficiência é que 80% dos homens abandonam os lares de crianças com deficiência até o quinto ano de vida delas. Isso quer dizer que a maioria das mães de crianças com deficiência são mães solo, e isso é assustador. E agora, durante a catástrofe, essa realidade não se alterou, é a mesma: são mulheres cuidando de mulheres, lutando e dando abrigo para elas.
Como está se mantendo em pé nessa jornada junto ao abrigo?
Medicada e seguindo alguns rituais dos quais não abro mão, que é tomar café da manhã com meus filhos e de colocar meu filho autista para dormir à noite, nem que precise sair de novo depois, marcar reuniões à meia-noite.
Criei rituais de presença para continuar sendo a mãe dos meus filhos, já que estou sendo a mãe de muita gente. São rituais importantes para aguentar, porque já são duas semanas que estou nessa jornada, dormindo uma média de duas horas por noite.
As pessoas acham que isso fica num lugar de “voluntariado”, mas, na verdade, toda a minha estrutura familiar fica modificada porque estou aqui o dia inteiro, recebendo uma carga emocional imensa. Quando chego em casa, muito cansada, meu filho, que é autista e muito visual, fala para mim "mamãe, você tá com olhos de 'canso'; está com o rosto sem dentes". É uma doação grande de energia.
Você tem uma mensagem para as famílias atípicas do RS afetadas pelas enchentes?
É muito importante que nesse momento a comunidade atípica permaneça muito unida. Não quer dizer que a gente não valorize o apoio ou o olhar dos típicos, mas como a gente precisa de muitas coisas que são muito específicas, é muito importante que a comunidade esteja próxima.