O Dia Mundial de Conscientização do Autismo é celebrado neste domingo (2). Para marcar a data, GZH conversou com especialistas e ouviu as histórias de três famílias: a de Benjamin, quatro anos, a de Theodoro, oito, e a de Guilherme, 15. Nas reportagens, mães e pais falam sobre o impacto do diagnóstico, a rotina com diversas terapias, os desafios de cada fase e a busca por inclusão.
Confira outras partes da reportagem:
De acordo com o psiquiatra da infância e adolescência Thiago Rocha, que é coordenador do Centro Especializado em Neurodesenvolvimento Infantil (CENI) do Hospital Moinhos de Vento, o autismo, hoje chamado de transtorno do espectro autista (TEA), é um transtorno do neurodesenvolvimento, em que há alterações do processo de desenvolvimento e comunicação das células cerebrais. É caracterizado por dois eixos principais de sintomas: um nas áreas de interação social e comunicação e outro relacionado à presença de um padrão de comportamentos ou interesses mais restritos e repetitivos.
Assim, crianças com TEA podem ter dificuldade na conexão e interação com outras pessoas ao seu redor, inclusive seus pais, podendo apresentar menor contato visual ou responder pouco às tentativas de interação, afirma Thiago. Dentro desse eixo, há muitas situações em que o primeiro sinal identificado por pais ou responsáveis é um atraso ou uma não progressão do desenvolvimento da fala. Marta Hemb, médica neuropediatra e doutora em neurociências pela PUCRS e pela Universidade da Califórnia em Los Angeles, enfatiza, contudo, que, atualmente, se sabe que muitos autistas falam e olham nos olhos, a diferença é que apresentam socialização e comunicação falhas ou inadequadas.
Já no segundo eixo, é possível perceber um interesse muito insistente por determinadas coisas. Isso se apresenta em uma dificuldade de alternar brincadeiras e assuntos ou em manifestações corporais diferentes, como balançar o corpo e sacudir as mãos de forma repetitiva.
— Por ser um transtorno do neurodesenvolvimento, crianças com TEA apresentam alterações na forma como seu cérebro amadurece e se desenvolve. Isso nos ajuda a entender não apenas as dificuldades de interação e comportamento, mas também a ocorrência de dificuldades em outras áreas, como na área psicológica, psiquiátrica ou motora, as quais costumam ser chamadas de comorbidades — afirma o especialista, que também é doutor em Psiquiatria e Ciências do Comportamento pela UFRGS.
Os sinais de alerta podem variar de acordo com cada período do desenvolvimento e devem servir como motivação para buscar por um atendimento especializado. Como exemplos, Thiago cita a maior preferência por objetos do que pessoas, a menor expressão facial ou das emoções na criança, baixo contato visual, falta de iniciativa de começar interação com adultos e não buscar o olhar da mãe e do pai. O especialista ressalta que, dentro de cada fase, diferentes aspectos vão aparecendo e que o momento de percepção clara dos sintomas depende da intensidade com que o transtorno se manifesta.
Diagnóstico
Para o diagnóstico, as crianças não precisam apresentar necessariamente todos os sinais, mas, em geral, são ao menos três, segundo Marta: alguma dificuldade de comunicação e de socialização e algum comportamento repetitivo ou padrão obsessivo. Ela acrescenta ainda um ponto considerado muito importante, que são as alterações de processamento sensorial, que se manifestam de diferentes formas em todos os autistas.
— O diagnóstico sempre vai necessitar de uma avaliação clínica e, cada vez mais, a literatura científica e a experiência clínica mostram que é fundamental que essa avaliação seja multiprofissional — diz Thiago.
Em relação à prevalência, o especialista do Hospital Moinhos de Vento afirma que não há dados específicos no Brasil e comenta que os números do Centro de Controle de Prevenção e Doenças (CDC), do governo dos Estados Unidos, são atualizados a cada dois anos com os registros de diagnósticos ou de situações sugestivas de diagnósticos em crianças de até oito anos, que costumam servir como um norteador dos números de diagnóstico no país. A última atualização, com base em dados coletados em 2020 e publicada neste ano, indica que a frequência seria de uma criança autista a cada 36 que não apresentam a condição.
Conforme Thiago, mesmo sem números oficiais no Brasil, a percepção de aumento está relacionada a pelo menos três fatores: o primeiro é uma mudança do sistema de classificação do transtorno, que a partir de 2013 passou a englobar mais condições embaixo do “guarda-chuva” chamado TEA. Isso ocorreu ao alterar os tipos de sintomas que seriam considerados para o diagnóstico, o que fez com que casos que seriam classificados de outras formas fossem englobados na mesma nomenclatura, permitindo que casos mais leves que antes não eram reconhecidos passassem a ser identificados. O segundo é o aumento do acesso à informação, que possibilita que muitas famílias consigam detectar de forma mais precoce. Já o último é a modificação de fatores de risco como a prematuridade e o aumento da idade materna e paterna:
— Crianças prematuras têm um risco aumentado de desenvolver transtorno espectro autista. A maior qualidade de assistência neonatal para crianças prematuras possibilitou que mais crianças prematuras sobrevivessem. Então, temos uma maior proporção de crianças que podem desenvolver esse quadro clínico. Outro fator é postergação de muitas gestações, com idades maternas e paternas mais velhas, que também tem se identificado como um fator de risco para aumento do TEA.
...não existe nenhum exame que nos faça definir se a criança tem autismo ou não, então é uma avaliação médica, em que precisam existir algumas características, sendo as principais dificuldades de comunicação e de socialização
MARTA HEMB
Médica neuropediatra e doutora em neurociências
Assim, a condição é considerada multifatorial, mas com uma implicância genética muito importante, que representa mais de 90% dos casos, ressalta Marta. Por ser um transtorno, não é considerado doença, mas sim uma deficiência, então, consequentemente, não existe um tratamento único ou cura.
— O tratamento é uma abordagem dos sintomas e dos sinais que incapacitam essas crianças nos seus diferentes momentos e graus de severidade. O diagnóstico é puramente clínico, não existe nenhum exame que nos faça definir se a criança tem autismo ou não, então é uma avaliação médica, em que precisam existir algumas características, sendo as principais dificuldades de comunicação e de socialização — afirma a neurologista, reforçando que a reabilitação precisa de uma equipe multidisciplinar com profissionais como terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas e fonoaudiólogos.
Psicomotricidade, ecoterapia e musicoterapia também podem ser indicados, dependendo do nível de suporte de cada criança. Marta aponta ainda que isso não significa que o indivíduo vá precisar do mesmo suporte terapêutico para o resto da vida, porque há avanços. O melhor prognóstico, salienta, são das crianças que têm a inteligência preservada e, assim, conseguem respostas mais efetivas. A especialista cita também a questão da plasticidade cerebral:
— Quanto mais cedo fizermos esses diagnósticos, mais cedo vamos começar a oferecer tratamentos. E quanto mais cedo oferecemos tratamentos para um cérebro em desenvolvimento, maior a chance de o cérebro conseguir se transformar. Então, quanto mais cedo se fizer o diagnóstico, mais chance de sucesso nas terapias.