Uma das abordagens mais bem conceituadas e efetivas para o transtorno do espectro autista, a terapia baseada no método de análise do comportamento aplicada, conhecida como ABA (sigla a partir do nome original em inglês, applied behavior analysis), intervenção intensiva que reforça comportamentos positivos (leia mais abaixo), é impossível de se encaixar no orçamento da imensa maioria das famílias. O valor de cada hora se assemelha ao de consultas com outros profissionais de saúde — em torno de R$ 250 —, mas o que inviabiliza o pagamento é a quantidade de sessões necessárias.
Com indicações médicas para o cumprimento de 10 a 40 horas semanais, o custo mensal do tratamento pode saltar a dezenas de milhares de reais. A cobertura da terapia ABA por planos de saúde, à primeira vista, parece benéfica, um aparente alívio na sobrecarga, mas não é o que acontece na prática. Com a necessidade de pagar um percentual que varia de 40% a 88% de coparticipação, os beneficiários têm de arcar com cifras elevadíssimas, o que faz com que o paciente autista acabe por ter de interromper, diminuir a frequência ou mesmo abandonar a prática.
Para entender melhor o que acontece no momento, é preciso resgatar o debate do ano passado sobre rol taxativo e rol exemplificativo de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão regulador, vinculado ao Ministério da Saúde, responsável pelo setor de planos de saúde. Em resumo, o rol taxativo prevê tudo que o plano deve cobrir, sem exceções, enquanto o exemplificativo serve, justamente, de exemplo do tipo de serviço que pode ser prestado. O primeiro exige uma interpretação exata do texto, enquanto o segundo permite outra, mais ampla. A discussão passou pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), mobilizou mães e pais de autistas, chegou ao Congresso e, por fim, ao Supremo Tribunal Federal (STF), que entendeu que o tema já estava endereçado pela Lei 14.454, que permite a cobertura de exames ou tratamentos fora da lista da ANS. Ou seja, as famílias devem ter acesso, pelos convênios, à terapia ABA.
O que se vê é uma variedade enorme de situações e desfechos. Há tempo, a terapia ABA vinha sendo demandada por via judicial, e as famílias conseguiam acesso ao tratamento por decisão liminar, sem custos. Agora, dissemina-se o temor da perda desse direito — e, de fato, já há liminares sendo cassadas.
No âmbito da saúde suplementar, o beneficiário encaminha o laudo médico para a operadora, que o analisa e, na sequência, aprova a prestação do serviço ou não. As contrapartidas variam conforme o tipo de plano contratado.
— Mesmo com os planos liberando, a grande maioria das pessoas não consegue arcar com as porcentagens (de contrapartida), são valores altos. No âmbito do SUS, é praticamente inexistente a ABA, não acontece. Mesmo no privado, tem criança fazendo menos terapia do que deveria — observa o neuropediatra Josemar Marchezan, doutor em Pediatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que atua em consultório privado e também no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).
Clínicas especializadas nesse tipo de atendimento estão tentando se mobilizar, em conversas com as seguradoras, para que o negócio não se inviabilize economicamente. Com pouquíssimos ou nenhum paciente via rede particular e tantos desistindo do tratamento por conta da impossibilidade de manter as despesas, as agendas estão se esvaziando.
Mães e pais de autistas que vivem em cidades pequenas, longe de grandes centros, esbarram ainda em outro problema: sem especialistas locais, estão a grandes distâncias de um bom profissional que possa conduzir a terapia dos filhos. Há famílias de alto poder aquisitivo que até poderiam pagar pela terapia ABA, mas, como a carga horária é grande, com deslocamentos diários, fica impossível manter a criança em tratamento devido aos deslocamentos.
Sob a perspectiva da advogada Taiani Trindade Camargo, especialista em Direito de saúde, que trabalha com cerca de 300 casos de famílias de autistas em seu escritório, a situação é ainda mais dramática:
— Nunca vi plano de saúde pagar terapia ABA somente com pedido administrativo. Nem com contrapartida do beneficiário.
As ações que tomam o tempo da advogada são diversas: há casos em que conseguiu derrubar integralmente a necessidade de pagamento de coparticipação do usuário, outras em que o juiz entendeu que essa contrapartida poderia ser reduzida e ainda aquelas em que o contratante do plano de saúde ficou sem qualquer amparo, tendo de se virar com as linhas do contrato previamente assinado.
— A demanda das famílias é para que não se tenha contrapartida — resume Taiani.
Ana Paula Dihl Kohlmann, diretora-executiva do Instituto Autismo & Vida, confirma o mesmo desejo. O ideal, segundo ela, seria a oferta gratuita da terapia, universalizando o serviço.
— Em resumo, enquanto instituto, pensamos que, se a família já ganhou a terapia via judicial, tem que manter. Se começar a ter que pagar, onera muito. Queremos um sistema que oferte para todos. Tem que ficar mais acessível urgentemente ou ser oferecido pelo sistema público — diz Ana Paula, pedagoga e mãe de Carlos Eduardo, 19 anos, autista.
A reportagem de GZH contatou a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) para questionar sobre as dificuldades encontradas por usuários para conseguir a liberação da terapia ABA e também a respeito da coparticipação no pagamento do serviço. Até o fechamento desta reportagem, não houve retorno.
A ANS, por meio da assessoria de imprensa, destacou que a Resolução Normativa 539/2022, vigente desde julho passado, "estabelece que é obrigatória a cobertura para qualquer método ou técnica indicado pelo médico para o tratamento de paciente diagnosticado com transtornos enquadrados na CID F84 (transtornos globais do desenvolvimento), conforme a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), da Organização Mundial de Saúde (OMS), dentre os quais está o transtorno do espectro autista".
Prossegue a nota: "Desse modo, a operadora é obrigada a disponibilizar atendimento com profissionais de saúde aptos a executar o método ou técnica indicados pelo médico assistente para seu tratamento (§4º do art. 6º da RN 465/2021), conforme indicação médica para o tratamento dos beneficiários diagnosticados com transtornos globais do desenvolvimento, e observando-se as regras de garantia de atendimento previstas na RN 259/2011". Se o médico assistente não especificar técnica ou método a ser empregado, a definição caberá ao terapeuta.
A agência afirma ser o principal canal de recebimento de demandas de usuários de planos "e atua fortemente na intermediação de conflitos entre beneficiários e operadoras", por meio da Notificação de Intermediação Preliminar (NIP), ferramenta criada pela ANS para agilizar a solução de problemas relatados pelos consumidores "que conta com mais de 90% de resolutividade". A reclamação registrada nos canais de atendimento, segundo o comunicado, é automaticamente enviada à operadora responsável, que tem até cinco dias úteis para resolver o problema nos casos de não garantia da cobertura assistencial e até 10 dias úteis para demandas não assistenciais. Se a questão não for solucionada, poderá ser aberto procedimento administrativo, com eventual aplicação de multa.
Canais de atendimento ao consumidor da ANS
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Como funciona a terapia ABA
Considerada a terapia mais indicada para o autismo, a ABA não se restringe a esse transtorno. Trata-se de um modelo de análise comportamental. A abordagem considera o comportamento humano como resultado do meio e se utiliza disso para reforçar ações adequadas e extinguir as que são inadequadas. Não se trata da única abordagem indicada para o paciente autista, conforme o neuropediatra Josemar Marchezan, do HCPA.
— Existem outros métodos que não o ABA. O tratamento do autismo é individualizado para cada criança. De maneira geral, sim, o que mais se deve usar para transtorno do espectro autista, hoje, é ABA. Não é para todos, mas é a primeira linha de tratamento. Dentro da ABA tem derivados, como Denver, geralmente para crianças menores — explica Marchezan, também doutor em Pediatria.
Não há legislação no Brasil que determine quais profissionais podem aplicar a terapia ou não. Há terapeutas e seus aplicadores, que são supervisionados. De maneira ideal, o profissional — em geral, das áreas de Psicologia, Fonoaudiologia, Pedagogia e Terapia Ocupacional, entre outras — deveria ser capacitado para a atividade em nível de pós-graduação, com prática supervisionada, mas há diferentes cursos com carga horária e demandas inferiores no mercado.
A terapia é intensiva e demanda um mínimo de 10 ou 15 horas semanais — daí o alto custo que representa no orçamento familiar. A partir do encaminhamento pelo neuropediatra ou psiquiatra infantil, o terapeuta ABA analisa a criança e esquematiza um programa de intervenção, que será aplicado por um assistente terapêutico, sob supervisão do terapeuta. Cada caso é constantemente discutido para avaliações e redefinições de rumo, almejando sempre o progresso do paciente. Em algumas situações, o assistente terapêutico acompanha a criança na escola.
Há uma grande diversidade de atividades a serem realizadas nas sessões, que não se restringem ao consultório do especialista: ensinar a olhar nos olhos, utilizar objetos com a função correta, falar, usar o banheiro, lavar as mãos, comer sem auxílio. Esse tipo de comportamento, o desejado, é sempre reforçado. Por outro lado, trabalha-se para acabar com atitudes consideradas inadequadas, como gritar ou se atirar no chão quando confrontado com um episódio que causa frustração.
— O ABA vai analisar o que está gerando essas frustrações e ensinar a ouvir “não” sem que a criança se desorganize — exemplifica Marchezan. — Há evidência científica de benefício. Claramente, as crianças que fizeram tratamento intensivo e precoce atingiram melhores níveis. Tem crianças que melhoram muito. De maneira geral, os ganhos consolidados não têm retrocesso. É pouco provável que se perca um ganho consolidado, mas comportamentos não consolidados podem regredir — complementa.
É importante ressaltar que o benefício do método depende da carga horária adequada e da regularidade. Há ainda profissionais que estudaram ABA e aplicam isso nos atendimentos de suas especialidades, mas não se pode dizer que se trata de terapia ABA.
O autismo
- É um transtorno do desenvolvimento. Caracteriza-se por falha de interação e comunicação social associada a apego a rotinas, estereotipias (repetições e rituais de linguagem, movimento ou postura) ou hiperfoco (interesse restrito). Pode haver ainda hipersensibilidade ou hipossensibilidade sensorial — sons altos incomodam e um corte no pé não dói, respectivamente, por exemplo. Esses são os critérios básicos para o diagnóstico
- Atraso na fala costuma ser a principal razão que leva os pais a procurarem ajuda. De fato, é o traço mais comum, de acordo com a literatura e também a prática clínica
- Há indícios que podem se manifestar antes, e esses relatos ajudam o especialista no diagnóstico: o bebê não olha para o rosto da mãe ao mamar no seio, sente-se incomodado por ficar no colo, não levanta a mãozinha para tocar a pessoa que se aproxima do berço
- Se uma criança apresenta estereotipia mas interage e fala bem, não se trata de autismo, mas de outro transtorno de desenvolvimento, que será avaliado pelo especialista
- A criança nasce com autismo, ela não se torna autista. Vacinação não provoca autismo, ao contrário do que alardeiam fake news em redes sociais
- Síndrome de Down e prematuridade estão entre os fatores de risco para autismo
- Em geral, o neuropediatra recomenda uma investigação genética
- O tratamento é baseado em terapias comportamentais. O fator precocidade é fundamental: quanto antes forem iniciadas as práticas, melhores tendem a ser os resultados. De acordo com o neuropediatra Josemar Marchezan, o mais importante é dar início ao tratamento tão logo se percebam problemas, mesmo que ainda não se tenha chegado a um diagnóstico conclusivo. Podem se realizar, concomitantemente, a abordagem terapêutica e a investigação do transtorno para que não se perca a janela ideal de tempo
- As terapias dão resultado a longo prazo, com custo elevado dos pontos de vista financeiro e emocional. A depender dos sintomas, definem-se quais profissionais deverão ser procurados