Carolina, nome fictício da paciente de 37 anos, não quer ter seu rosto revelado na reportagem, mas deixa o fotógrafo registrar suas longas unhas pintadas de laranja, feitas no salão de beleza do Hospital Espírita de Porto Alegre (HEPA), no bairro Teresópolis, onde a mulher diagnosticada com bipolaridade e transtorno obsessivo compulsivo (TOC) está em tratamento desde novembro, após sofrer intensas crises de depressão e compulsão.
Internada pela quarta vez em um dos hospitais psiquiátricos mais tradicionais do Rio Grande do Sul, a paciente já evoluiu para a modalidade aberta, com autorização para passar as noites na casa da família e retornar de dia. Segue frequentando o salão de beleza de duas a três vezes por semana, ora para fazer as mãos, ora para passar a máquina no cabelo, raspado no lado direito da cabeça, o que melhora sua autoestima.
— Agora eu estou bem, porque isso aqui levanta o astral. Em casa, entro em depressão profunda, coisa de não sair da cama. Aqui no salão de beleza a gente se sente melhor, eles dão um "up" na nossa autoestima. O familiar vem nos visitar e diz: "Nossa, tu pintou as unhas" — conta ela, que interrompeu a graduação em gastronomia para se tratar.
Se o movimento no salão de beleza é tranquilo, Carolina deixa que a terapeuta ocupacional faça as suas mãos, mas, se o dia é cheio, dá uma força e pinta as unhas das colegas de internação. Só usa cores vibrantes em si mesma e jamais se veste com uma peça de roupa destoando do esmalte.
— A compulsão não deixa — diz.
O salão de beleza do Hospital Espírita é equipado com uma bancada com espelho adornado por lâmpadas, o que faz o espaço parecer um camarim de artista. Toda segunda-feira, um voluntário vai cortar o cabelo dos pacientes, mas a intenção do hospital é que eles assumam o próprio autocuidado.
Há cadeiras de espera, mesinha de manicure e um expositor repleto de frascos de esmalte. Para quem gosta de alisar as madeixas, há secador para fazer escova e até prancha de chapinha, entre outros equipamentos para que os internados em decorrência de transtornos psiquiátricos ou dependência química possam cuidar da aparência, geralmente negligenciada por causa das doenças.
Atendo a todos aqui como atendo a um cliente tradicional
EDISON JOSÉ DE OLIVEIRA
CABELEIREIRO, VOLUNTÁRIO E ESPÍRITA
— No processo de adoecimento psíquico, uma das primeiras coisas que a pessoa abandona é o cuidado consigo mesma. Deixa de querer se olhar no espelho, de tomar banho, de fazer as necessidades higiênicas. Aqui, estimulamos que os pacientes voltem a tomar o banho diário, que voltem a escovar os dentes. E no salão de beleza eles podem cuidar do cabelo e das unhas. É um resgate. Começou com as mulheres, mas os homens também frequentam. Quando as famílias vêm visitar, não acreditam que os pacientes estão super arrumados — diz a terapeuta ocupacional Mary Fernanda Testa da Silva, responsável pelas atividades terapêuticas do Hospital Espírita.
Um dos homens que frequenta o salão de beleza é o cabeleireiro Thiago Menezes Diel, 42 anos, internado pela terceira vez por causa de uma depressão profunda. Na primeira vez em que ficou hospitalizado, no início de 2021, as visitas de voluntários haviam sido suspensas para conter os casos de covid-19. Assim, ele tomou a frente e assumiu o corte de cabelo dos pacientes.
— Fazer essa troca, para mim, era muito importante. As pessoas chegam aqui com a autoestima destruída, emagrecidas, com barba por fazer e o cabelo desalinhado. É visível o antes e o depois de frequentarem o salão, o sorriso que acabam exibindo no rosto — diz.
Corte especial
Nesta segunda-feira (2), penúltimo dia de internação de Thiago, quando a reportagem visitou o salão de beleza, ele aparava o cabelo com o atual voluntário, o também cabeleireiro profissional Edison José de Oliveira, 62 anos. Antes um frequentador do Departamento de Assistência Espiritual (DAE), casa que fica no mesmo pátio do Hospital Espírita e é destinada ao estudo do espiritismo, Edison teve a ideia de cuidar das madeixas dos pacientes ao deparar com um internado bem vestido e de banho tomado, mas com os fios compridos, pedindo por um corte.
Assumiu a tesoura do salão de beleza em setembro do ano passado e atende sempre às segundas-feiras, das 14h às 17h. Faz todo o tipo de corte, até os conhecidos por serem os mais caros nos salões tradicionais, sem cobrar nada.
— Agora há pouco, sentou uma paciente aqui que me disse: "Ai, teu corte é muito famoso". Imagina, estou famoso dentro do hospital. Mas atendo a todos aqui como atendo a um cliente tradicional — diz ele, que atua em uma estética do bairro Petrópolis.
Quando as famílias vêm visitar, não acreditam que os pacientes estão super arrumados
MARY FERNANDA TESTA DA SILVA
TERAPEUTA OCUPACIONAL DO HOSPITAL ESPÍRITA
Espírita há seis anos, Edison entende que o fundamento da religião é dedicar-se ao outro, o que ele já faz, de certa forma, ao escutar os desabafos de quem se senta na cadeira para cortar o cabelo. Ouve histórias de sofrimento tanto de clientes que estão lá fora, vivendo suas vidas tidas como normais, quanto dos pacientes psiquiátricos. Com os internados, entretanto, costuma lançar mão de uma mesma pergunta, que garante ser infalível para puxar assunto.
— Uma das coisas que mais gosto de perguntar é quando eles vão embora. É uma meta deles ir embora daqui. Claro, há os que não podem sair, então para esses eu não pergunto. Mas, no geral as pessoas, querem ir embora, então é um assunto bom de desenvolver.
O salão de beleza integra o corredor terapêutico do Hospital Espírita, espaço situado no terceiro andar do prédio e que oferece diversas oficinas além dos cuidados com a aparência, como aulas de teatro, culinária e costura. Completa 10 anos de atividades em abril deste ano. Segundo a diretora técnica da instituição, a psiquiatra Lúcia Cunha, é um serviço inovador entre os hospitais psiquiátricos do país.
— Todo o nosso corredor terapêutico é algo que não tem no Brasil. Aqui, os pacientes podem usar piano e violino, além de frequentar o salão de beleza. Normalmente, eles chegam regressivos, com perda de cuidados básicos de higiene. O salão de beleza é uma forma de verem que tomar banho e cuidar do cabelo é algo saudável e que faz bem — diz.
Para manter a boa aparência dos pacientes, o hospital precisa de doações de roupas e produtos de higiene, como sabonete, hidratante corporal, absorvente íntimo e frascos de esmalte, além de meias, cuecas e calcinhas. As doações podem ser combinadas ligando no telefone (51) 3320-5748.
História
O Hospital Espírita foi fundado em 1926 por um grupo de espíritas seguidores da doutrina de Allan Kardec que desejavam erguer um espaço exclusivo para tratamento de pessoas com problemas psiquiátricos. É uma instituição privada, de caráter filantrópico, com mais da metade das vagas reservadas ao Sistema Único de Saúde (SUS). Enquanto 159 leitos são para pacientes SUS, 105 são para particulares e convênios.
Segundo a terapeuta ocupacional Mary Fernanda Testa da Silva, a divisão da Central de Leitos do Estado acaba destinando pacientes SUS da Região Metropolitana ao Hospital Espírita, enquanto os do interior do Estado costumam ficar no Hospital São Pedro, outra referência em tratamento psiquiátrico no Rio Grande do Sul.
Para ser hospitalizado no Hospital Espírita, o paciente precisa passar por avaliação psiquiátrica e apresentar pedido de internação. Se quiser, pode participar dos encontros do Departamento de Assistência Espiritual, onde receberá atendimento, o que pode ser negado caso seja de outra religião ou mesmo não tiver crença alguma.
— Temos pacientes que se consideram ateus e não querem esse atendimento. Nós respeitamos isso — garante Mary.