Desnorteada pela catástrofe que assola o Rio Grande do Sul, a desabrigada Shisle Laurindo, 34 anos, se perdeu um pouco no calendário. Moradora do bairro São Luís, em Canoas, um dos afetados pela enchente, ela calcula que começou a pensar em sair de casa alguns dias depois da visita do presidente Lula ao Estado, no início de maio. Sabia que a água barrenta chegaria até sua casa, no térreo.
— Disse pra mim mesma: "Eu tô saindo, seja o que Deus quiser". Não sabia para onde ir, mas já fui preparando duas cobertas, roupas e alguns documentos, pensei nos meus filhos em primeiro lugar. Não sei se entrou água na minha casa ou não, não voltei lá, estava mais preocupada com as minhas cinco crianças. Como é que eu ia sair com eles se a água chegasse? Será que ia vir barco, helicóptero? — pondera ela, que é natural de São Paulo.
A família ficou alguns dias em uma escola do bairro, mas foi foi conduzida a um abrigo montado em uma paróquia da cidade quando a instituição de ensino também alagou. O novo local, confortável a princípio, logo ficou apinhado de gente, relembra Shisle. Sentindo-se ameaçada e temendo pelo bem-estar dos filhos, assumiu uma postura de "mãe-leoa" e fez o que estava ao seu alcance: parou de dormir e ficou em vigília.
— Vi coisas lá que me deixaram muito desesperada, ainda estou em choque. Era muito estranho, ficavam rodeando a gente, eu ficava assustada. Foram sete dias sem dormir. Com cinco crianças para cuidar, sem saber quem estava dormindo do nosso lado, com homens e mulheres todos misturados... Você dormiria? — questiona.
Em resposta à demanda de mulheres e mães que têm se sentido inseguras em abrigos mistos, especialmente após denúncias e prisões por conta de abuso sexual nesses espaços, algumas ONGs, entidades privadas e municípios têm montado abrigos exclusivos para mulheres e seus filhos.
Um desses locais é um abrigo no bairro Niterói, em Canoas, inaugurado na quinta-feira (9). Ao ser convidada para ir pra lá, na semana passada, Shisle encontrou enfim alguns momentos de sossego.
A regra é clara: homens não passam da soleira
A reportagem de Donna foi ao local nessa segunda-feira (13) e foi recebida pelas voluntárias que fazem o controle de quem entra e sai pela porta. A regra é clara: homens não passam da soleira.
O espaço, que costumava ser uma loja de motos, foi cedido temporariamente e convertido em lar temporário, que já está lotado: são 28 crianças e 32 mulheres, além das cerca de 20 voluntárias, que se revezam em turnos. A coordenação é feita pelas chamadas "voluntárias da linha de frente", que deram origem à iniciativa e raramente deixam o abrigo. Muitas, inclusive, também tiveram que sair de suas casas e se alojar em lares de familiares e amigos. O que as move, segundo a canoense Marianne Calixto, é caminhar pelo mesmo propósito.
— Nosso papel é fazer as mulheres se sentirem verdadeiramente seguras e acolhidas. E ainda que esteja um pouco bagunçado, com roupas lavadas e estendidas por aí, a diferença aqui é que elas estão mais em casa. Nesse abrigo você vê algo raro, que são as mães conversando e as crianças longe, brincando, porque elas se sentem seguras para deixar os filhos mais soltos enquanto conversam, jogam carteado — diz a voluntária.
O abrigo nasceu de uma casualidade do destino que uniu mulheres que não se conheciam, mas tinham o mesmo propósito: Marianne trabalhava nos resgates e doações em Canoas quando ficou sabendo de denúncias de abuso em abrigos do RS; através de um amigo, foi colocada em contato com a ex-BBB e médica Marcela McGowan, que estava atuando no Hospital Nossa Senhora das Graças, no mesmo município, e também desejava fazer algo pelo público feminino dos abrigos. Depois, elas encontraram nas redes sociais um grupo de voluntárias da cidade, que também já desenhava uma ideia de iniciativa exclusiva para mulheres.
— Cada uma entrou com uma coisa. Mídia, colchões, acesso, espaço, o que fosse, e de um dia para o outro estava pronto. Quem deu o start midiático foi Marcela, que trouxe muito apoio pra nós — afirma Marianne.
O abrigo é mantido por doações com o apoio do Instituto Survivor, do movimento Me Too Brasil e de incontáveis anônimos. O objetivo das organizadoras é manter o refúgio durante dois meses, pelo menos, e elas estão estruturando o espaço para isso. Há dezenas de beliches e camas, uma brinquedoteca para as crianças, uma farmacinha, prateleiras para guardar alimentos, fraldas, produtos de higiene e roupas, mesas e cadeiras para as refeições, que são entregues em marmitas por voluntários externos.
Mas o espaço ainda precisa de melhorias, principalmente na questão dos banheiros: há no total quatro sanitários e dois chuveiros — sendo um único um com água quente — para as cerca de 70 pessoas no local, entre voluntárias e desabrigadas. Com isso, os banhos acabam tendo que ser escalonados. O plano das voluntárias agora é conseguir uma empresa que doe uma estrutura de banheiros, a ser montada no estacionamento ao lado do prédio, já que relatam não terem sido atendidas por órgãos públicos.
— Todas as mulheres que estão aqui já entraram sabendo como prerrogativa que teriam que ajudar esse espaço a funcionar. Nossa ideia é que seja uma comunidade quase autossuficiente. Tem pessoas responsáveis pela limpeza dos banheiros, pela cozinha, pelas roupas, e temos a regra de acordar e arrumar a cama, para dar um ar de organização.
Abandono e resiliência
Embora represente mais segurança, o local está longe de ser um oásis de paz: tem os gritos das crianças, o choro dos bebês e o olhar pesado de mulheres que passaram por diversos traumas até se encontrarem ali. Mas paira também uma aura de alívio e de identificação entre as moradoras, um "estou vivendo a mesma situação inacreditável que você, isso vai passar". É algo que fica ainda mais forte pelo fato de que o denominador comum entre boa parte delas é o abandono por parte do marido ou companheiro.
— A maioria relata que tinha marido, mas que, quando veio a enchente, os homens pegaram suas coisinhas, foram para a casa de alguém e deixaram elas com os filhos. Aqui tem uma mulher de 25 anos que é mãe, está grávida, prestes a ter bebê, cujo marido a largou em um abrigo e foi para a casa da mãe. Em breve teremos um recém-nascido aqui dentro, e já preparamos toda a bolsinha da maternidade. As mulheres daqui choram juntas, desabafam, mas se apoiam e dizem "gurias, juntas a gente supera", "quem sabe vamos morar juntas quando a gente sair" — relata a voluntária Camilla Steinhaus.
"Depois de sete dias sem dormir, consegui descansar"
Os danos que a situação toda causa ao emocional dos atingidos pela crise climática no RS é imensurável, mas estar em um grupo de mulheres que estão passando pela mesma coisa — e sem soltar a mão de seus filhos — tem incentivado a rede de solidariedade entre elas. Somado a isso, elas têm também o apoio da psicóloga e psicopedagoga Maria Inês Lopes Peres, uma das voluntárias da linha de frente que está em dedicação total ao abrigo.
— Elas chegam assustadas, ansiosas e comentando "nós não somos mais ninguém, perdemos nossas casas, documentos, nossa roupa, perdemos tudo". Mas, aos poucos, quando chegam aqui, vendo que de fato é um lugar bom, as falas delas mudam, ficam carregadas de futuro, de desejo de conquistar, de não desistir, e isso é muito especial. Nós temos muito orgulho dessas mulheres que estão buscando superar isso tudo com dignidade e vontade.
Sentada numa cama de casal e abraçada ao filho de sete anos — o que mais chora e demonstra estar abalado pelos acontecimentos desse mês —, Shisle afirma que sua vontade já é de "cortar o cordão umbilical" que a deixa ligada aos traumas dos últimos dias .
— Depois de sete dias sem dormir, consegui descansar. Desde que cheguei só tenho a agradecer as meninas, que nos tratam bem, respeitam, ajudam. Vou ficar aqui um tempo e seguir a vida, fazer o quê? Ainda estou um pouco chocada, mas faz parte. Aqui sei que estou bem segura e, quando sair, quero ir para um lugar em que a gente também fique bem. Dizer "vou pra minha casa" eu não posso, porque não sei se vou ter segurança lá, mas estou preparada para tudo.