As sensações geradas pelos dois cenários muito se parecem: inquietação, ansiedade, medo, incerteza, sofrimento, angústia, cansaço. A pandemia de coronavírus, iniciada em 2020, e a atual catástrofe das enchentes no Rio Grande do Sul mobilizam as pessoas de maneira semelhante, gerando reações que são consideradas normais até certo ponto e por determinado período. Especialistas alertam para o momento de procurar ajuda especializada para que seja possível lidar com os acontecimentos das últimas duas semanas.
O temor pela integridade de cada um e de seus familiares e amigos se repete, contaminando perspectivas de futuro quanto a vida diária, trabalho, estudos. É preciso lidar com fatores altamente ansiogênicos: a previsão de mais chuva, a alta do nível dos rios, a possibilidade de novas inundações e ainda mais destruição.
Mas há uma diferença fundamental, apontada pelo psiquiatra Fernando Uberti: na crise sanitária mundial da covid-19, o perigo estava do lado de fora, com a circulação do vírus mortal. Neste momento, os lugares de segurança material da população foram afetados e, em milhares de casos, irremediavelmente danificados.
— Na pandemia, os grandes fatores causadores de ansiedade eram a imprevisibilidade e o isolamento. Agora temos a imprevisibilidade e o fator muito forte da perda material, da sua casa, um local não só patrimonial, mas também afetivo. Algumas cidades e bairros terão que ser construídos em outros locais. Isso envolve questões ainda mais íntimas. Na pandemia, se aguardava uma normalidade externa para que a nossa vida se encaixasse na nova realidade, mas todo mundo estava em suas casas. É uma situação muito mais ampla do que a pandemia em relação à funcionalidade da vida das pessoas, que está com o nível mais básico afetado — analisa Uberti, vice-presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) e coordenador de Políticas Públicas da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
A psicóloga Rita Prieb, chefe do Serviço de Psicologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), atuou na linha de frente da pandemia num dos pontos mais nevrálgicos: as unidades de terapia intensiva (UTI), onde pessoas adoeciam criticamente e morriam em decorrência das complicações de uma doença até então desconhecida.
— A liberdade de ir e vir está novamente afetada, só que, desta vez, muitos não têm mais o porto seguro. Na covid, estar em casa era a proteção. Agora as pessoas perderam a casa, concretamente ou simbolicamente falando — diz Rita.
Perder a sensação de segurança que tínhamos antes, nas mais diferentes esferas, é o impacto extra ao da pandemia, opina a psicóloga do HCPA.
— Desde o ponto de vista individual, passando pelo social, pelo urbano: sair de casa, mudar as rotas que fazíamos há anos, perder a arquitetura da cidade. Fico pensando nas perdas que não são tangíveis, como o significado que têm, para cada um, a rua, o bairro, a arquitetura afetiva que perdemos — acrescenta Rita.
Procurar ajuda
Existem reações esperadas para esse período de forte estresse, sublinha o psiquiatra, como sentir tristeza e enfrentar dificuldade para dormir. Quem tem ligações emocionais e empáticas mais fortes com a tragédia vai se abalar mais. Essa resposta individual não significa estar doente. O tempo de duração desses sintomas, entretanto, deve ser considerado.
— Se isso se prolongar, ficar mais intenso, com uma alteração mais profunda da saúde mental, passando de 30 dias, é fundamental procurar ajuda especializada. A ajuda está sendo disponibilizada para as vítimas mais diretas, e a sociedade como um todo tem que se observar — alerta Uberti.
Mesmo quem não foi diretamente afetado pelas cheias pode sentir de forma profunda o impacto dos acontecimentos, chegando a níveis preocupantes.
— Nos primeiros dias, há reação aguda ao estresse. Depois de 30 dias, pode se tornar transtorno de estresse pós-traumático. Tem que dosar o contato com as informações sobre a tragédia, não colocar toda a energia emocional em cima disso. Tem que colocar o foco em outras coisas, a vida tem que seguir — orienta o psiquiatra.
As redes de apoio, como sempre, são fundamentais. Indivíduos precisam estar conectados uns aos outros, falando, ouvindo e prestando apoio mútuo.
— Muitos se sentem culpados por não estarem nos abrigos auxiliando, mas há várias formas de ajudar. A dor de cada um é distinta. Cada um age conforme seus recursos internos, que estão sendo exigidos ao máximo — atesta Rita.
Como lidar com o momento
- Mantenha o uso de medicamentos psicotrópicos que já eram utilizados antes e também as consultas com psiquiatras e psicólogos.
- Procure ajuda se sentir que não está conseguindo lidar sozinho com suas próprias reações e emoções.
- Dentro das possibilidades, siga realizando suas atividades habituais.
- Ajude da forma que puder. Nem todos precisam realizar trabalho voluntário nos abrigos. Há diversas maneiras de contribuir, e a ajuda será necessária por muito tempo.
- Limite o contato com o noticiário e demais conteúdos sobre a tragédia, como vídeos e fotos que circulam nas redes sociais. Não se mantenha conectado nesse assunto o dia inteiro.
- Ao falar com quem teve perdas humanas ou materiais, seja acolhedor. Ouça mais do que fale. Demonstre interesse no que a pessoa tem a dizer. Evite fazer questionamentos muito específicos sobre o que aconteceu. Se a pessoa estiver demasiadamente alterada, oriente-a a procurar ajuda especializada ou contate você mesmo uma rede de apoio que possa auxiliá-la.