Foi de maneira tão brusca quanto intensa que, em março de 2020, nossas vidas mudaram devido à ameaça de um vírus que nos obrigou a cumprir o distanciamento social – termo com o qual nossa geração tinha pouca familiaridade até então. Embora as rotinas nunca mais tenham sido as mesmas após a pandemia de covid-19, neste momento em que caem as últimas restrições de convívio já parece ser possível ensaiar o retorno a uma vida mais próxima da que conhecíamos. Mas quais são as principais sequelas emocionais deixadas pelo período pandêmico e como elas irão afetar nossas vidas daqui para a frente?
Uma das esferas sociais mais testadas foi a dos relacionamentos afetivos, especialmente a vida conjugal compartilhada sob o mesmo teto. O longo período de confinamento foi fator determinante para o aumento significativo no número de pedidos de divórcio no Brasil: um acréscimo de 15% em 2020 em relação ao ano anterior, e de 16,8% no ano seguinte. Em 2022, contudo, houve uma queda de 10% na comparação com 2021.
Para a psicóloga caxiense Lisandra Soares, que atua como terapeuta de casais, a nova dinâmica de convivência que os casais experimentaram no período pandêmico trouxe à tona elementos que não eram percebidos na correria do dia a dia, possibilitando refletir sobre insatisfações, expectativas, desamparos e desconexões. Contudo, foi preciso lidar com situações geradoras de estresse, como emprego, doença, finanças e filhos, sob um nível de ansiedade fora do normal. O resultado, muitas vezes, foi irritabilidade, impaciência e intolerância acentuadas.
– A parte mais difícil, dentro da conjugalidade, foi esse novo modelo de casamento onde a casa passou a ser um palco das aulas e do trabalho remoto, gerando aprofundamento de vínculos ou um acentuamento de conflitos. O nível de ansiedade mais alto influenciou as relações, pois fez com que os indivíduos enxergassem a vida com um olhar mais negativo, ficando mais impacientes e sem controle, e assim conduzindo a tomada de decisão para a reconstrução do casamento ou o término dele. Grande parte da procura por ajuda psicológica ocorre como uma última alternativa de sobrevivência do casamento, e quando chegam no consultório estas pessoas estão movidas a raivas e desamparos, sendo uma contra a outra e não uma com a outra. Mas elas estão ali, então há esperança. É nas sessões que “psicoeducamos” o casal com um novo repertório de estratégias, onde o foco é a escuta, a assertividade, a compaixão. Na correria do dia a dia, muitos casais deixam de lado a escuta, que é uma estratégia tão importante para a conexão.
E A REAPROXIMAÇÃO?
Lisandra considera também que, para casais cujo rompimento foi gerado por brigas e agressões emocionais, é mais difícil acreditar que a saída da pandemia possa propiciar uma reaproximação. A qualidade da relação amorosa, afinal, foi quebrada. Por outro lado, relações em que o término foi motivado por uma falta de manejo e de boas estratégias para lidar com situações estressoras, pode haver, sim, uma maior chance de reaproximação. Principalmente se há filhos envolvidos.
– Uma vez que o convívio com os filhos traz um convívio entre o casal, tendo passado a pandemia os agentes estressores já não existem mais. Para algumas pessoas a retomada da vida diária passa a ser mais gratificante, os valores são remodelados e, dessa forma, passa-se a enxergar a vida de uma nova maneira. Portanto, nesse novo “eu,” é possível encontrar uma nova forma de amar meu antigo parceiro(a). O fator principal para haver a reaproximação são as lembranças positivas dos momentos a dois.
Embora a procura pela terapia tenha crescido durante a pandemia, Lisandra ressalta que a busca se intensificou ainda mais nesse momento que podemos começar a chamar de “pós-pandêmico”. São em maioria, casais que, embora tenham conseguido atravessar esse momento, saíram dele emocionalmente mais sensíveis, que muitas vezes tiveram de lidar com perda de renda, que não se sentem com coragem de encarar novos desafios. Neste momento, especialmente, a terapia se mostrou uma aliada poderosa:
– É nesse lugar seguro semanalmente que o casal consegue enfim soltar suas armaduras e enfrentar as dificuldades. Eles olham um para o outro com mais compaixão e empatia, diferente da correria do dia a dia, em que tudo é automático. É importante que os casais tenham em mente que a terapia é uma oportunidade de autoconhecimento para as duas partes, ajuda a melhorar a comunicação e as situações pontuais de crises.
Embora algumas separações sejam inevitáveis – e a pandemia ajudou a colocar o que Lisandra chama de “lente de aumento” para situações em que o ambiente conjugal era muito nocivo – a profissional destaca a importância da busca pela terapia antes de qualquer tomada de decisão quanto ao fim de um casamento:
– Há separações que deveriam acontecer de qualquer maneira e a pandemia exaltou isso. Porém, tem também quem tenha reagido à situação se precipitando na decisão pelo divórcio. Alguns casamentos poderiam ter sido resgatados e prosperados, e é aí que a procura pela terapia de casal é fundamental. Antes de qualquer tomada de decisão definitiva, precisamos refletir sobre os seus efeitos. A pandemia fez as pessoas refletirem somente o aqui e agora, como se estivessem num modo de sobrevivência, e assim as decisões são precipitadas e deixam de enxergar o valor de uma história toda construída.
A ansiedade se espalhou como um vírus
Para a população que já era tida como a mais ansiosa do mundo de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o abrandamento da pandemia deixou como legado o que a psicóloga caxiense Marian Martins considera como uma “segunda pandemia”, que é a de transtornos de saúde mental. Nas palavras dela, todo mundo está sofrendo com ansiedade em algum nível, independente de ter ou não o diagnóstico.
– O impacto emocional de perdas familiares, o sentimento de medo, a falta de socialização e a instabilidade no trabalho aumentaram o nível de estresse e sofrimento psíquico do ser humano no momento atual. Nós sabíamos que a ansiedade seria o mal deste século, mas ficou muito preocupante após a pandemia. Aumentou a preocupação com o medo da morte, do sofrimento, de não conseguir lidar com a situação, e tudo isso ocasionou alterações psicológicas que fizeram disparar a ansiedade. Somando a isso o avanço muito rápido da tecnologia, é como se o mundo tivesse acelerado ainda mais as pessoas – analisa.
Entre as principais sequelas deixadas pelo período pandêmico, segundo a psicóloga, estão desde lapsos de memória até depressão, passando por diversos transtornos relacionados à ansiedade, como fobia social, síndrome do pânico, agorafobia, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e estresse pós-traumático. Por outro lado, toda a repercussão midiática quanto a gravidade da pandemia para a saúde mental tornou as pessoas mais atentas e cientes da necessidade de cuidar não apenas da saúde do corpo, mas também da mente:
– A busca pela saúde mental é o maior legado que eu vejo após esses três anos. Estatísticas como a de que transtornos mentais e comportamentais foram responsáveis por milhares de afastamentos do trabalho no Brasil, e uma enxurrada de números alarmantes não somente se referindo ao trabalho, mas também a casos de separações e suicídio, fez com que muitas pessoas passassem a ter uma preocupação maior com o seu mundo interno.
A psicóloga recorda de um estudo realizado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e publicado na revista científica Lancet, no qual foi constatado que casos de depressão tiveram aumento de 90% no Brasil entre março e abril de 2020, dois primeiros meses de distanciamento social. O novo momento que atravessamos, de saída da pandemia, também é de lidar com o que ela fez de nós:
– Tenho no consultório muitos pacientes que relatam estarem entristecidos e traumatizados. Muitos chegam com queixas, como se fossem os mais afetados mentalmente, e exigindo de seus familiares, amigos e demais pessoas de seu convívio social que os entendam, como se fossem sensíveis demais. O ser humano está tão ansioso que ele quer e exige que as pessoas olhem para ele como vítimas que estão gritando por socorro desesperadamente.
Para a infância, trauma a ser superado com afeto
Fase da vida crucial para o desenvolvimento humano, a primeira infância foi profundamente afetada pela alteração das dinâmicas sociais impostas pela pandemia. Num período em que as crianças deveriam estar experimentando a socialização e aprendendo – inclusive a brincar – ficaram ainda mais expostas aos dispositivos eletrônicos. Para entender a extensão do trauma, uma pesquisa da ONG brasileira Núcleo de Ciência pela Infância (NCPI) apontou que o cérebro de crianças de 0 a 6 anos reagiu à pandemia da mesma forma que reagiria a um desastre natural ou a uma guerra.
Ao avaliar os efeitos negativos da pandemia para as crianças, a psicóloga caxiense Caroline Marchett aponta os prejuízos para a educação como os mais urgentes a serem reparados.
– A escola vai muito além de ser apenas um espaço de aprendizado. É a primeira instituição, depois da família, em que há o convívio social e o amadurecimento de vários aspectos, sejam eles físicos, cognitivos, emocionais, sociais e afetivos da vida da criança – observa a psicóloga.
Com a volta à normalidade, Caroline orienta que os pais estejam especialmente atentos a sinais de dificuldades que os filhos possam apresentar, possivelmente frutos do período em que sofreram com a perda de convívio fora do ambiente familiar. Entre elas estão o embaraço em se aproximar de desconhecidos nas brincadeiras, comunicação restrita, inibições e agressividade. O uso excessivo de telas também requer especial atenção:
– Podemos pensar em alguns combinados que envolvem o tempo de uso (de dispositivos eletrônicos) com pausas para outras atividades, estimulando atitudes mais ativas. Promover momentos de desconexão e isso vale para toda a família, pois é preciso ter em mente que os exemplos fazem toda a diferença.
Como desafio para a criação no cenário pós-pandêmico, Caroline Marchett considera que deve ser prioritário o desenvolvimento de habilidades socioemocionais, assim como o fortalecimento de laços e relações interpessoais.
– A aprendizagem de habilidades socioemocionais é essencial para a formação da personalidade e do caráter das crianças. Tais habilidades são fundamentais para vivermos de forma positiva em sociedade. Algumas habilidades que devemos desenvolver e estimular nas crianças: autoconfiança, coragem, paciência, responsabilidade, altruísmo e empatia.