CORREÇÃO: diferentemente do que foi publicado nesta reportagem, pacientes de Transtorno Afetivo Bipolar não receberam alta após passar pela terapia EMDR. A abordagem terapêutica é coadjuvante no tratamento de pacientes após a estabilização da crise, quando o paciente está medicado e estabilizado, regulado emocionalmente.
O medo de voar era tanto figurado quanto literal na vida da florense Nicolle Costa, 31 anos, cujas crenças negativas costumavam mantê-la com os pés presos ao chão, mesmo quando a mente queria viajar para longe. Embarcar em um avião era uma aflição cujo ápice ela experimentava no momento de fazer o check-in, no totem de autoatendimento.
– A hora que tinha que preencher o contato para emergências eu, inevitavelmente, imaginava minha mãe e meu irmão recebendo a notícia de que o voo tinha caído e eu estava morta. Quando ia pra fila do embarque, imaginava todas aquelas pessoas morrendo. Vivia à beira de um ataque de pânico – relata.
Por ter de encarar uma maratona de viagens profissionais, a maioria delas até São Paulo, Nicolle já cogitava começar a viajar de ônibus até a capital paulista quando decidiu encarar o medo com ajuda profissional. Foi então que amigas a indicaram uma psicóloga em Caxias do Sul que utilizava uma abordagem ainda pouco conhecida em 2016, mas que viria a livrá-la não apenas do trauma de embarcar no avião, mas também ajudá-la a superar cada uma das barreiras que a impediam de se realizar pessoal e profissionalmente.
O EMDR é uma abordagem terapêutica que pode ser utilizada por psicólogos ou médicos, e que utiliza a estimulação bilateral do cérebro como método para “descongelar” memórias dolorosas que provocam traumas e fobias. É reconhecido e recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) desde 2013 como tratamento para estresse pós-traumático, mas vem sendo cada vez mais utilizado por psicólogos e psiquiatras no combate a transtornos de ansiedade e depressão, elaboração de luto, além de distúrbios alimentares e de sono, na medida em que novos estudos atestam a expansão da sua eficácia.
– Nosso cérebro tem dois hemisférios, sendo que o direito é mais racional, concreto, objetivo, enquanto o esquerdo é mais ligado às emoções, às sensações e aos afetos. Quando a gente pensa numa sensação traumática, ela está muito mais presente do que a memória do que aquilo que almoçamos ontem. Isso porque o trauma fica gravado a fim de impedir que a gente se coloque naquela situação de novo. O movimento bilateral vai integrar essa memória, ajudando a compreendê-la e ressignificá-la. É uma abordagem integrativa, pois trabalha as crenças, o fator emocional e as sensações corporais – explica a psicóloga Tanila Cavagnolli.
Para fazer a estimulação bilateral, o terapeuta pode utilizar o método ocular, através do movimento dos olhos (com o auxílio de uma barra de luz ou de um aplicativo); auditivo, com música e fones de ouvido, ou tátil, com toques sutis de mão. Durante a sessão, que pode ser presencial ou virtual, o paciente irá revisitar os episódios que geraram as memórias traumáticas, enquanto o estímulo bilateral irá reprocessá-las num processo adaptativo, ajudando o cérebro a não mais entender aquele registro como uma ameaça presente.
– O EMDR ajuda a digerir a sensação traumática. A pessoa às vezes não entende o que a trava, e a terapia funciona como uma investigação, na qual ela vai me trazer alguma crença, algo que passou a acreditar sobre ela. O EMDR é muito preciso ao ajudar a identificar quais crenças originaram o trauma e que atrapalham a vida inteira da pessoa. Quando a gente já tem uma crença de incapacidade, isso vai ocasionando vários traumas dentro de uma mesma crença, como se fosse um nó. Após desatar esse nó, a gente passa então a trabalhar a crença positiva, trazendo memórias boas que antes a pessoa não conseguia acessar, mas que mostram que ela é capaz – acrescenta Tanila.
Para quem se pergunta o quão difícil pode ser o processo de revisitar as próprias memórias que provocaram o trauma, a psicóloga Luciana Cassina pontua que o EMDR é aplicado em protocolos, sendo que as primeiras etapas são preparatórias:
– A gente faz a instalação de um lugar seguro dentro da mente do paciente, onde ele vai se sentir bem e nós vamos descobrir qual a janela de tolerância dele. Porque vêm à tona lembranças que ele não quer acessar, mas a ideia é que primeiro ele tenha de suportar um pouco de desconforto, para que depois esse nível abaixe e ele fique mais tranquilo. Ele não vai esquecer do que aconteceu, mas a lembrança não vai mais trazer aquela emoção gigante que trazia antes. O passado vai ficar no passado, não vai mais atormentar o presente.
Para Nicolle Costa, o EMDR foi um divisor de águas. A importância que a florense atribui à terapia pela estimulação bilateral vai muito além da superação do medo de embarcar em um avião, que teve origem na exposição excessiva ao noticiário de um acidente aéreo pela mídia, quando era criança. Considera fundamental para exercer o cargo de gestão na fábrica de móveis da família e também ser uma das responsáveis por uma ONG de proteção animal em Flores:
– Há cinco anos que faço a terapia EMDR e nesse tempo consegui identificar, em episódios na infância, a origem de crenças como a de ser uma pessoa egoísta, e que por isso tinha muita dificuldade em dizer não, e me manifestar contrariamente a situações que não me agradavam. A Nicolle de 14 anos, que via tudo como o fim do mundo, ficou no passado. A de 31 anos é uma pessoa muito mais livre.
Descoberta nos anos 1980, terapia ficou popular na última década
Sigla em inglês para Eye Movement Dessensitization and Reprocessing, (Dessensibilização e Reprocessamento através do Movimento dos Olhos, em tradução livre), a terapia EMDR tem como “mãe” a psicóloga norte-americana Francine Shapiro (1948-2019), que foi sua própria cobaia no desenvolvimento da técnica, em 1987.
Certo dia Francine passeava por um parque de Nova York imersa em pensamentos aflitivos, quando passou a perceber que os movimentos oculares faziam a carga negativa diminuir. Desenvolveu a técnica que passou a aplicar primeiro em amigos, e mais tarde em veteranos de guerra e vítimas de abuso sexual, sempre com sucesso.
Nos últimos anos a abordagem ganhou mais visibilidade sendo mencionada em séries conhecidas, como Grey’s Anatomy, Criminal Minds e Russian Doll. O príncipe Harry também contou, em um programa de TV coproduzido com a apresentadora Oprah Winfrey, como o EMDR o ajudou a superar traumas e controlar a ansiedade.
A médica psiquiatra caxiense doutora Maria Inês Mesquita é entusiasta do EMDR, técnica que é coadjuvante no tratamento de pacientes que lidam com ansiedade, depressão e transtorno bipolar.
– Sempre tive esse foco de buscar que meus pacientes saíssem das crises e identificassem os motivos pelos quais eles entraram em crise, que aprendessem a lidar melhor com as emoções. O EMDR consegue ser mais objetivo do que a terapia verbal, permitindo que o paciente se sinta o foco do tratamento e com mais autonomia para ser capaz de encontrar as suas próprias respostas, ao invés de consultar um terapeuta que sabe tudo – analisa.
A médica exemplifica contando o caso de um paciente que lutou 10 anos contra um quadro de gastrite nervosa, e que com o EMDR conseguiu superar as sensações crônicas de ansiedade e de queimação no estômago:
– Pedi para ele focar nesse sintoma e deixar o cérebro levar para onde quisesse. A sensação ora intensifica, ora acalma, vêm as memórias, e, partindo para a estimulação bilateral, ele conseguiu recordar de um episódio em que passou uma vergonha em sala de aula, que também o fez desenvolver uma timidez muito grande. Ainda criança desenvolveu uma ansiedade de desempenho, com a sensação de que estava sempre sendo desaprovado. Reprocessando aquela memória, a gastrite e a ansiedade se resolveram.
Inês ressalta ainda que nem todos os traumas estão ligados a eventos marcantes, como um sequestro ou acidente. E que sequer precisam ser apreendidos pela nossa consciência para deixar marcas:
– Há traumas que vêm desde a barriga da mãe. As nossas células sabem disso e irão guardar essa transformação. O trauma é um evento perturbador que o cérebro, sozinho, não conseguiu curar.