A cada dia ou noite que chegava em casa, a médica de 29 anos, que faz residência em um hospital de Caxias do Sul, e que prefere ter a identidade preservada, sentia a exaustão provocada por muitas horas passadas no trabalho. Com o cansaço vinha o desânimo, que refletia numa alimentação ruim, na falta de vontade de fazer atividades físicas e de sair com os amigos ou conversar com a família, que vive em outra cidade. Mais do que a carga-horária desregrada e excessiva, contudo, era o ambiente que encontrava no trabalho o que mais consumia sua energia.
– Eu estava esgotada e muito chorosa, sofrendo por conta daquele clima de muita disputa de ego, de poder e de conhecimento do que é certo e do que é errado, e isso estava abalando muito a minha autoconfiança. Além de não saber lidar bem com as críticas, eu acabava assumindo culpas e responsabilidades que não eram minhas, e que iam comigo pra casa – conta, já se referindo ao período mais difícil no passado.
Foi seguindo o conselho de uma psicóloga do hospital que a médica recorreu à psicoterapia, numa tentativa de resgatar o prazer das atividades cotidianas e de suportar com mais leveza o trabalho. Resgatar o prazer e suportar com mais leveza, afinal, é o que querem boa parte dos brasileiros que procuram o atendimento profissional para lidar com problemas emocionais. Somos, afinal, o país mais ansioso do mundo, de acordo com a Organização Mundial de Saúde: 9,3% da população (18,6 milhões) é ansiosa. Também somos o quinto no mundo que mais sofre com depressão, transtorno que atinge 5,8% dos brasileiros (cerca de 11,5 milhões de pessoas).
Junção das noções de psico (mente) e terapia (cura), a psicoterapia é a principal aliada cientificamente reconhecida para tratar de problemas de origem emocional. Prática de consultório exclusiva de profissionais com formação em Psicologia ou em Medicina, com residência ou especialização em Psiquiatria, pode ser melhor compreendida como a cura pela palavra, segundo explica a psicóloga e psicanalista Camila Scheifler Lang, professora do Uniftec Centro Universitário.
– Psicoterapia é um método de tratamento que busca investigar os problemas que têm início no aspecto emocional, e se presta a todas as pessoas que têm o desejo de se escutarem, de resolverem os seus conflitos de natureza psíquica. Quando alguém busca a psicoterapia, é com o motivo de remover, de modificar algum sintoma que cause angústia ou sofrimento na sua vida. Também há a função importante de retardar ou diminuir o aparecimento de outros sintomas psíquicos. Neste processo de escuta, em que o paciente dispõe de um tempo que é só dele, para ser ouvido sem julgamentos, ele normalmente vai melhorar suas relações e também vai conseguir se desenvolver melhor em termos de personalidade.
Tendo como ancestrais a Filosofia e a Medicina, o conhecimento que fez evoluir a psicoterapia foi construído ao longo dos últimos três séculos, com contribuições significativas de psicólogos como Wilhelm Maximilian Wundt (1832-1920), Sigmund Freud (1856-1939), Carl Jung (1865-1961), Jacques Lacan (1901-1981), Abraham Maslow (1908-1970), entre outros. Além de diversas linhas teóricas (psicanalítica, cognitivo-comportamental, behaviorista, sistêmica, humanista, positiva, etc.), Camila explica que há diferentes tipos de psicoterapia, que fazem diferir também a dinâmica entre psicólogo e paciente:
– A abordagem psicanalítica, que é chamada de análise, é um processo mais profundo de conversa do paciente consigo mesmo, em que o psicanalista irá falar menos, questionar mais e auxiliar na produção de pensamentos do próprio sujeito. Na psicoterapia, o profissional irá buscar oferecer ao paciente uma nova versão de si, transformando os mecanismos que levam ao sofrimento através da escuta e da fala. A psiquiatria, por sua vez, aplica mais o modelo biomédico, com a medicalização. Neste caso os encontros costumam ser mensais, enquanto os psicólogos atendem semanalmente ou até mais de uma vez por semana.
Para a médica residente do início desta reportagem, ter buscado a psicoterapia teve como principal efeito positivo a mudança de atitudes no dia a dia, passando de um estado de resignação para uma postura mais ativa, e de resgate da autoestima e autoconfiança que estavam escondidas pela ansiedade e pelo estresse:
– O principal ganho que eu tive com a terapia foi o de refletir sobre o meu modo de pensar e de agir, interpretando de outro modo as situações que se apresentavam para mim. Aprendi a valorizar mais a minha própria trajetória e a deixar as coisas externas me afetarem menos. Os problemas ainda existem, ainda passo muito tempo no hospital, mas consigo ter uma atitude diferente frente a eles, e isso passou a refletir também na pessoa que sou fora do trabalho.
Era tabu, hoje é motivo de orgulho
Pensando em desmitificar o cuidado com a saúde mental, o psicólogo mineiro Leonardo Abrahão Rezende criou a campanha Janeiro Branco, que desde 2014 vem sendo adotada por diversos municípios brasileiros. É um movimento de conscientização não apenas quanto à importância da terapia, mas também da luta antimanicomial e do autocuidado como forma de ajudar a promover bem-estar e a prevenir quadros de ansiedade, estresse ou depressão.
A campanha segue um momento de derrubada de tabus e de popularização de temas de saúde mental, que nos últimos anos alcançou também as redes sociais. Na enxurrada de memes que viralizam diariamente, a terapia se tornou tema recorrente, geralmente com abordagem positiva. Estar com a terapia em dia virou cool. Se antes o “tá pago” era na academia, agora é no consultório. Nos aplicativos de paquera, não são poucas as descrições de usuários que pedem a tal “terapia em dia” como pré-requisito para iniciar uma conversa.
Para além do meme, é cada vez mais comum encontrar nas redes conteúdos especializados, porém com linguagem acessível e, muitas vezes, despojada, como recurso para facilitar a comunicação com os seguidores e estimular a interação com a própria postagem. A psicóloga bento-gonçalvense Marina Zuccolotto entendeu muito bem isso, e fez de suas redes sociais um espaço para falar sobre saúde mental de forma descontraída, abordando temas como relacionamentos, procrastinação, compulsão alimentar e perfeccionismo.
– A busca pelo psicólogo, infelizmente, ainda é mais acessível a quem tem mais renda, e às vezes não chega a muitas pessoas que também precisam de um acompanhamento e de aprender a olhar para si próprias. Passei a usar a rede social com o objetivo de divulgar a Psicologia e de expandir o meu trabalho, também o tornando mais acessível. Gosto de divulgar curiosidades sobre a mente humana, porque tende a despertar maior interesse do que abordar apenas questões de saúde mental, transtornos e sintomas. Ainda há quem vincule a terapia com uma ideia muito antiga e conservadora... por isso, tornar a Psicologia aplicável ao cotidiano das pessoas ajuda a quebrar esses tabus – explica a profissional.
Em alguns posts Marina aproveita para refletir sobre assuntos do momento, como o exemplo da ginasta norte-americana Simone Biles, que desistiu de participar dos Jogos Olímpicos de Tóquio alegando problemas emocionais. Além de gerar mais identificação, por falar de um ídolo, também mostra que nem mesmo uma atleta multicampeã tem uma vida perfeita.
– Ao longo da minha atuação acabei percebendo que a falta de autoconfiança é uma questão central, que acaba despertando muitos outros problemas. O perfeccionismo, o medo de falhar, de ser julgada. Muitas das demandas que eu atendo vêm dessa falta de autoestima, que passei a trabalhar também nos conteúdos para as redes sociais – diz.
Marina, que tem mais de 10 mil seguidores e atende a 80% de seus pacientes no formato virtual, também aponta que o público adulto jovem, entre 25 e 35 anos, assim como os adolescentes, encara seus problemas emocionais com mais naturalidade:
– É muito interessante ver o quanto a mentalidade está mudando. A nova geração tem a terapia como um motivo de orgulho. Tenho pacientes jovens que nem contam pros pais que fazem terapia, porque para os pais é um motivo de vergonha.
Tem de ter compatibilidade
Para quem decide recorrer à terapia, tão importante quanto procurar um profissional devidamente credenciado para prestar o serviço, é encontrar alguém com quem se estabeleça uma identificação, principalmente quanto à abordagem e à metodologia. Isso nem sempre ocorre na primeira tentativa. Uma vendedora e estudante de design gráfico de Caxias do Sul, de 23 anos, e que também prefere não revelar seu nome, conta ter consultado com mais de 10 psicólogos, até finalmente encontrar aquela com quem se sentiu à vontade.
A vendedora sofria desde a infância com problemas familiares, e na adolescência passou a praticar automutilação e a se machucar de outras formas. Passava muitas horas por dia trancada no quarto e mais de uma vez tentou suicídio. O acolhimento que não sentia ter em casa, também não percebeu nas primeiras tentativas com terapia.
– Eu não queria alguém que apenas me ouvisse. Queria uma psicóloga que me guiasse, que me desse um retorno sobre as coisas que eu tinha para falar. Que eu sentisse estar formando uma parceria – relata.
Por um tempo a jovem também consultou um psiquiatra, que receitou remédios. A medicação ajudou, mas ela sentia que não estava vivendo plenamente:
– Acho que os remédios ajudam a manter a pessoa estável, mas, no meu caso, eu sentia que ficava sem reação, não era nem capaz de chorar. Preferia o meu humor verdadeiro.
A vida nos últimos anos se tornou mais fácil, e a jovem atribui grande parte disso à terapia. Considera que as sessões fizeram abrir não apenas a porta do quarto para o restante da casa, mas também para o mundo, que passou a encarar com mais alegria.
– Hoje sou uma pessoa que se ama e que se importa. A terapia me ensinou a viver com propósito. Se ainda sou muito jovem pra saber qual o meu propósito de vida, pelo menos sei qual o meu propósito para esse dia, para essa semana, para esse ano. É estar presente na minha vida, deixando a apatia longe.
A psicóloga Marina Zuccolotto considera muito importante que exista o “match”, ou a compatibilidade, entre psicólogo e paciente, e que é normal isso não ocorrer na primeira tentativa. Não é razão para desistir:
– Já é algo difícil para muitas pessoas irem até a terapia, e quando a primeira tentativa é frustrante, muitas vezes elas não vão nem querer ouvir falar em psicólogo. Não é como um médico, que vai te examinar apenas clinicamente. É um profissional que vai te fazer acessar conteúdos muito sensíveis, que tu não compartilhas com ninguém. É fundamental que a pessoa interessada faça uma busca ativa, e não apenas seguir uma recomendação genérica.
Conhece a ti mesmo
(por Rafael Iotti, 29, escritor)
Meu primeiro contato com uma terapeuta profissional, pelo que eu me lembre, é claro, foi aos 13 anos. Eu era um adolescente comum, mas muito introvertido. Era viciado em RPGS, gibis, livros e desenhos animados. O maior convívio com pessoas reais era: a) na escola, onde eu me dava bem com todo mundo; b) na casa da minha avó, os almoços de domingo, quando toda família, até mesmo familiares que tu nem conhecia, iam lá. Então eu acho que isso gerava uma certa apreensão nos meus pais, eu não saia muito de casa, era muito tímido, e resolveram me levar numa psicóloga. Isso foi muito bom. Eu não sei qual técnica ela usava, mas imagino que fosse TCC, voltada mais às crianças. Eu fui me abrindo, me abrindo pro mundo, comecei a caminhar na rua, ir e voltar da psicóloga a pé, sozinho. E me entender um pouco melhor, também. Devo ter ido por quase dois anos nessa terapeuta, depois parei, fui pro Ensino Médio, comecei a andar de skate, fumar uns cigarros, me abrir e viver como boa parte da geração que nasceu nos anos 1990 viveu, totalmente maluco.
Depois, eu passei pelas mãos de muitos e muitas profissionais. Talvez nem lembre de todos. Morei seis anos em Porto Alegre, e, no final, no sexto ano, tive crises de pânico homéricas, fiquei seis meses sem sair de casa. Meu psicólogo cogitava a hipótese vir até a minha casa me ver. Ele fez isso uma vez. Mas queria me forçar a tentar sair. Mas dessa vez eu não conseguia. Enfim. Voltei para Caxias e comecei a me medicar, a ir em outra psicóloga. E as coisas começaram a melhorar. Desde então, troquei mais três vezes de psicóloga, indo da psicanálise para comportamental e voltando pra análise.
Uma das grandes questões que tenho me resignado a apreender, com a análise, é aquela que atribuem a Platão, mas que pode ser de qualquer outro grego da época: conhece a ti mesmo. Isso talvez seja o mais difícil porque na maior parte das vezes a gente não quer conhecer o nosso lado obscuro, brutal e frágil. A gente lida com isso de diversas formas, seja comprando muito no Shopee, torcendo pro Caxias ou dormindo 16 horas seguidas.
A questão, pra mim, é que a terapia faz sentido, desde cedo, desde a minha adolescência. Talvez eu nunca me conheça de uma forma ideal, porque acho que ninguém se conhece dessa forma. Mas eu me respeito um pouco mais, consigo gostar um pouco mais de mim, e sei que muitos dos meus próprios erros foram intencionais, porque eu quero, de certa forma, me machucar. Essa é a velha pulsão de morte do Dr. Freud. Mas é bom saber disso. É melhor saber do que não saber. A terapia tem sido isso, um conhecimento, não só meu, de mim, mas do mundo, de um mundo que às vezes é um pouco mais tangível, acessível e compreensível. Mesmo que na sua podridão.