— Entre o oito e o 80, temos 72 possibilidades — assegura a nutricionista Catiane Scudella, especialista em comportamentos alimentares.
A fala da profissional refere-se a estilos vida que tendem a ser mais saudáveis ou realistas do que os extremos. E, para seguir na metáfora, o “oito” seriam as barrigas negativas e trincadas que preenchem as redes sociais e o “80” representaria a ruína da relação das pessoas com os alimentos e atividades físicas – situação em que comer pode provocar culpa, comportamentos compulsivos e necessidade de compensação, segundo a nutricionista.
Este equilíbrio, que é objeto de desejo de algumas mulheres na atualidade, é o tema sobre o qual se debruçam a seguir profissionais e pesquisadoras em nutrição, psiquiatria, relações de gênero e sociologia, convocadas por Donna para refletir acerca de como encontrá-lo e dos benefícios e desafios dessa jornada.
A psiquiatra Karen Anicet, coordenadora da equipe de Transtornos Alimentares da Fundação Mário Martins, aponta que, com o amplo uso das redes sociais, fica difícil não fazer comparações entre a própria vida e à da amiga, da influenciadora digital ou almejar um corpo como o da celebridade.
— É um momento de muita comparação, do “se elas conseguem, por que eu não?”. Só que, muitas vezes, não nos damos conta de que a pessoa tem a vida construída em torno daquilo, é parte do seu trabalho. Ficamos buscando o ideal de corpo delas quando, na realidade, para quem trabalha oito horas por dia sentada, tem casa, amigos, família, estudo, fica complexo colocar a quantidade de exercícios ou o tipo de alimentação apregoada nas redes — afirma Karen.
Para além da vontade de sentir-se bem, a ambição pelo ideal de “corpo perfeito” tem um quê de pressão social, conforme a assistente social Flávia Novais, que é pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Sexualidade e doutoranda em Psicologia Social na UFRGS. Isso porque o “valor” da mulher, historicamente e até hoje, está muito mais atrelado à sua aparência física do que o do homem: eles, embora também sejam interpelados pelas exigências estéticas, são apreciados, principalmente, pelo intelecto. Já o julgamento das capacidades dela ainda é muito ligado à beleza.
— Assim, a gente acaba sendo mais cobrada para ter determinados tipos de corpo e para se comportar de determinada forma. É uma pressão que toda mulher acaba reconhecendo, independente do seu biotipo — pontua ela.
No padrão
A voz de Flávia Novais soma-se às falas de pesquisadores, jornalistas e críticos de moda que, há meses, têm denunciado que a valorização da magreza extrema está de volta à luz e com força total, ameaçando bagunçar ainda mais a vida de quem não se encaixa no estereótipo da modelo de passarela. Alguns exemplos de onde os sinais desse fenômeno se mostram, segundo ela, são o emagrecimento de celebridades até então curvilíneas e o retorno da estética que fazia sucesso no início do século.
— O padrão atual é o magro bem magro, é a volta dos anos 2000, do abdômen chapado e da calça de cintura baixa. Hoje, a barriga é a negativa mesmo, o que a gente percebe em figuras como a (Bianca Andrade, influencer) Boca Rosa e a (cantora) Anitta, por exemplo, que tinham toda uma imagem de corpo curvilíneo e estão aparecendo cada vez mais magras. Magrezas altamente produzidas — aponta a pesquisadora, que complementa: — Não estou dizendo que é errado ser muito magro, mas que, quando cria-se a imposição de que o que é bonito é o “cadavérico” e as pessoas tentam se encaixar a qualquer custo, o preço pode ser pesado.
Contrastando com a atualidade, há pouco mais de meio século, o ideal de beleza admirado e buscado era mais curvilíneo e menos distante da realidade das mulheres, argumenta a pesquisadora em Envelhecimento e pós-doutora em Sociologia pelo Goldsmiths College, Gisela Castro. Exemplos disso são o sucesso da atriz Marilyn Monroe e das dançarinas de cabarés do início do século 20.
— As vedetes costumavam ser o padrão de beleza. Mulheres lindas e curvilíneas, com coxa, peito, bochecha. E o padrão do que é considerado belo interfere no que é considerado saudável. Por isso, o padrão da magreza extrema é muito grave. Se você não atende, se pune, sua saúde mental fica prejudicada. Precisamos pensar sobre o que estamos dizendo que é saúde — reflete Gisela.
Sobre o tema, a psiquiatra Karen Anicet faz a ressalva de que a busca por ser encaixar em um padrão muito diferente do atingível por uma pessoa comum pode, sim, estar relacionada ao desenvolvimento de transtornos alimentares. Porém, esta não pode ser considerada sua única causa. Isso porque o aparecimento desses males é sempre multifatorial, em que pesam fatores biológicos, genéticos, psicológicos, socioculturais e familiares. O que ocorre com mais frequência, observa Karen, é uma visão distorcida sobre o papel dos alimentos e atividades físicas.
— Se você for uma pessoa tranquila em relação ao seu corpo, dificilmente terá um transtorno, mas pode desenvolver uma relação ruim com a comida e o exercício, além de passar a abrir mão de alimentos e horas de sono para malhar. Muitas vezes, as mulheres restringem totalmente os carboidratos, porque querem perder peso, por exemplo, e acabam desencadeando irritabilidade, alterações de sono e de memória. Temos que nos dar conta disso, buscar informação — alerta.
De bem com os alimentos
A enfermeira Fernanda Boeira, 41 anos, precisou reconstruir sua relação com a comida para alcançar o objetivo de ter um corpo mais funcional. Ela conta que se sentia em sua melhor forma física quando engravidou, aos 34, e que, depois do nascimento do bebê, levou anos para conseguir retornar ao seu peso habitual. Nesse intervalo, a autoestima e a libido caíram e faltava disposição para acompanhar o ritmo do filho. Insatisfeita, passou a tentar por conta própria uma série de programas alimentares, que até deram certo durante um período, mas não no longo prazo.
— Resolvi fazer sozinha dietas malucas, como a cetogênica, a do ovo e outras. Até emagrecia, mas quando terminava a dieta e pensava “agora vou seguir um caminho normal, sem loucuras”, não conseguia, não sabia o que comer. Sentia falta de saber mais sobre os alimentos e o que era importante consumir para me sentir saciada — relembra ela.
A experiência chegou a fazer a enfermeira estranhar o prato à base de arroz com feijão que lhe foi indicado quando, em 2021, buscou ajuda profissional. E esta crença enganosa de que para emagrecer é preciso comer pouco aparece com frequência nos atendimentos de nutricionistas, como Carolina Martins. A profissional relata que uma das principais queixas é sobre não conseguir alcançar o objetivo.
— Na maioria dos casos, é resultado de dietas mal feitas por muito tempo ou muito restritivas, seguindo o que a blogueira está falando ou informações aleatórias da internet. Muitas mulheres já chegam para atendimento com déficit de carboidrato. Isso faz com que o metabolismo fique pior e haja o efeito platô. Elas também costumam ter perda de massa muscular, porque consomem pouca proteína, já que não conhecem bem as fontes proteicas ou a quantidade de que precisam — explica ela.
O conselho da nutricionista é filtrar as informações e buscar conhecimento com pessoas especializadas. Para o sucesso no longo prazo, ela defende que o ideal é começar aos poucos:
— Recomendo colocar uma meta que realmente vá conseguir fazer. De manhã, está acostumada a comer pão? Come, mas coloca proteína junto, como um ovo. É importante encarar o processo de forma sustentável e prazerosa.
Já a nutricionista Catiane Scudella reforça que comer bem também remete ao prazer e aos encontros. E, na opinião da profissional, essa dinâmica pode e deve ser encaixada na rotina sem culpas:
— É ilusório achar que vamos excluir completamente as comidas hiperpalatáveis. Saudável é entender que precisamos dos alimentos construtores, reguladores e energéticos, que são as frutas, vegetais e legumes. Mas também temos um lugar para esses outros. O bom é ter uma relação equilibrada, leve e tranquila com isso.
Auto-observação
De 2021 para cá, a enfermeira Fernanda Boeira conquistou o resultado desejado: está no peso em que se sente melhor, mais ativa e se achando mais bonita. Fez isso encontrando as jogadas que funcionam especificamente para si, em um tabuleiro que inclui família e trabalho. Aprendeu sobre cada alimento, prepara suas refeições sempre que pode, respeita as quantidades ideais e tenta se exercitar diariamente.
Além disso, reserva duas refeições livres por semana para comer o que tiver vontade. Seu processo nos últimos dois anos revelou uma dinâmica de alimentação e exercícios que ela confia que conseguirá levar adiante:
— Sempre tive na cabeça que tinham que ser pequenas porções para emagrecer, e não é assim. Hoje estou praticamente de alta do nutricionista, faço escolhas mais assertivas e tenho uma relação melhor com a comida. E se vou buscar meu filho na escola e ele pede um sorvete, vou com ele, como um pouco do doce e no outro dia sigo a dieta normal, não bate o desespero de “botei tudo a perder”.
Ter um olhar amplo sobre si é a chave para uma vida mais saudável, na perspectiva da nutricionista Catiane Scudella. E, no contexto atual, essa visão precisa vir acompanhada de alguma desconexão com o externo, para que se possa buscar seu próprio conceito de saúde.
— Parece que as pessoas apenas seguem um padrão e acham que está tudo certo. Mas acredito fortemente que saúde é o que nos faz bem, e isso é algo individual. Sou eu quem precisa identificar isso. É sobre auto-observação e autoconhecimento, para que tenhamos o entendimento do que é possível fazer por nós e como podemos nos cuidar — conclui.