Camila Maccari, especial
Há pouco mais de dois anos, Lívia Fossatti foi morar em Porto Alegre, deixando a casa dos pais em Passo Fundo. A mudança de endereço foi acompanhada por um momento mais introspectivo: ela sentia que precisava de outras mudanças, mas não sabia muito bem o quê. Até que ficou uma semana sem comer carne e percebeu que o ânimo melhorou e as manhãs não eram mais preguiçosas.
– Na hora, só pensei que eu estava vegetariana: não sabia até quando aquilo iria durar, mas sabia que era uma mudança para valer e fui em busca de manter a alimentação saudável.
Desde então, Lívia nunca mais comeu nenhum tipo de carne – nem peixe, como costumam perguntar. Aos 29 anos, a advogada faz parte da estatística que animou a Sociedade Vegetariana Brasileira recentemente: nos últimos seis anos, o número de vegetarianos cresceu 75% no país. Os dados vêm de pesquisa do Ibope que mostra que 14% dos brasileiros concordam total (8%) ou parcialmente (6%) com a afirmação: “Sou vegetariano”. Em 2012, quando o levantamento foi feito pela primeira vez, esse total era de 8%. A Região Sul é a que tem menos vegetarianos, com 10% da população – na outra ponta está o Nordeste, com 17%.
Há quem pense nesse dado como resultado de um modismo. Pode ser que você já tenha até escutado que “agora todo mundo é vegetariano” – ainda que, de acordo com a mesma pesquisa do Ibope, 81% da população brasileira ainda tem uma alimentação onívora. Para Lívia, essa impressão é potencializada pelo fato de que não comer carne ainda é um ponto fora da curva:
– O vegetarianismo não está ligado apenas a comer ou não comer carne animal, mas também com questões que refletem padrões estabelecidos que não são questionados. A gente dá por natural comer carne e não reflete muito sobre o assunto.
Para a gerente de campanhas da Sociedade Vegetariana Brasileira, Mônica Buava, o salto no número de pessoas que exclui carne de seu cardápio reflete um movimento que busca uma alimentação mais saudável, sustentável e ética:
– Os dados do Brasil coincidem com uma tendência mundial de mudança na forma de se alimentar. Tem a ver com o crescimento de mercado, das redes de serviço e até mesmo com o aumento de informação. As pessoas sabem o impacto que a alimentação tem para o meio ambiente. Quando o termo está tão “na boca do povo”, é uma coisa sem volta e a gente acolhe, não é passageiro.
No Google Trends, por exemplo, o volume de buscas por vegetarianismo cresce de duas a três vezes a cada ano. Não à toa, a gente percebe o aumento de opções nas prateleiras do supermercado e nas opções de restaurantes. Sem falar nos produtos feitos para veganos, que não consomem nada de origem animal, incluindo roupa e cosméticos.
Vegetariana há 10 anos e vegana há cinco, a engenheira química Cíntia Selbach acompanhou também o aumento de serviços e produtos voltados especificamente para as pessoas que não comem carne. Antes uma ida a um restaurante se resumia a algum prato que era remexido, muitas vezes a contragosto, para excluir a carne. Com o tempo, as opções vegetarianas foram aparecendo, mesmo que a passos lentos. Além disso, ela viu o surgimento simultâneo dos restaurantes veganos e vegetarianos, que se somavam aos tradicionais Govinda e Prato Verde.
– Antes, principalmente para os veganos, você não podia contar com muita coisa para comer na rua. Acho que, na prática, essa é uma grande diferença de como é não comer carne hoje em comparação com alguns anos atrás.
As pessoas sabem o impacto que a alimentação tem para o meio ambiente. Quando o termo está tão “na boca do povo”, é uma coisa sem volta e a gente acolhe, não é passageiro.
MÔNICA BUAVA
gerente de campanhas da Sociedade Vegetariana Brasileira
Esse é um ciclo virtuoso: quanto mais facilidades, mais vegetarianos, e quanto mais vegetarianos, mais opções disponíveis, vale reparar que esses estabelecimentos não ficam lotados apenas por pessoas que não comem carne.
– A maioria do nosso público é de onívoros, mas a fim de consumir coisas diferentes, seja pela qualidade da gastronomia ou pela informação que se tem hoje em torno da indústria da carne – analisa Gunter S. Filho, proprietário do La Rouge Bistrô, que abriu as portas em Porto Alegre em 2012, com uma gastronomia vegana e gourmet.
São pessoas que também participam do movimento Segunda Sem Carne, que existe desde 2009, mas ficou popular por meio das redes sociais.
– É um convite à substituição da proteína animal pela vegetal. Só em 2017, foram servidas 48 milhões de refeições sem carne por causa do movimento. A ideia é que as pessoas se abram para novos sabores e acabem optando por cortar esse tipo de proteína da alimentação. Mesmo assim, só a redução já está valendo: cada passo deve ser comemorado – avalia Mônica Buava.
Esse contato com a comida vegetariana, mesmo que eventualmente, facilita a vida de quem decide parar de comer carne, “porque todo mundo entende mais e cobra menos”, como destaca Cíntia Selbach. Em 2006, depois de assistir a um documentário que mostrava o sofrimento de animais na indústria pecuária, decidiu seguir uma alimentação baseada em vegetais, grãos, ovos e leite.
Cíntia conta que só conseguiu mesmo em 2008, depois de quase dois anos tentando. Na época, além da irmã mais nova que evitava carne desde os sete anos, a única outra pessoa que conhecia era um colega de trabalho. Cinco anos mais tarde, quando decidiu tirar de vez toda proteína de origem animal da alimentação, o processo foi mais rápido e menos solitário.
– Apesar de ser uma dieta com muito mais restrição, virar vegana foi bem mais fácil do que simplesmente parar de comer carne. Já conhecia mais pessoas que eram ou que estavam tentando ser, a internet tinha várias informações, desde questões de saúde a receitas diferentes. Além disso, as redes sociais são um incentivo, com vários grupos de debate, apoio e troca. É mais fácil quando você sente que está inserido em um grupo e não fazendo uma coisa dessas sozinho.
A educadora ambiental Alessandra Quadros, de Santa Cruz do Sul, adotou o vegetarianismo há três anos, quando estava com 42. A mudança ocorreu depois que percebeu que a carne, especialmente a vermelha, atrapalhava na prática de yoga. A epifania se deu em grupo, assim como a transição: a turma inteira decidiu abolir a carne, e ela reconhece que fazer essa mudança coletivamente foi decisivo para levar o projeto adiante. Da mesma forma, ela própria foi um fator determinante na decisão do marido de parar de comer carne.
– No início, pode ser que tenha bastante impacto porque somos preparados para fazer qualquer coisa que tenha carne. Depois disso tu te programas para ir atrás de formas mais saudáveis: não consumir a carne mas também tentar consumir alimentos orgânicos, pão feito em casa. Desencadeia uma outra relação de aproximação com o alimento.
Histórias de mudança de estilo de vida fazem parte do ritual de quem adota o vegetarianismo. Lívia Fossati, por exemplo, descobriu uma nova paixão: cozinhar. Para ela, chegar em casa do trabalho e preparar alguma receita diferente com ingredientes comprados na feira é quase terapia:
– Tu descobres outro mundo. Descobri que gosto de plantar meus temperos e comecei a ir com frequência à feira. Quando as pessoas perguntam o que eu como, realmente digo que só não como mais a carne e, por isso, como mais das outras coisas que estão a uma ida à feira de distância.
Foi assim também com a publicitária Luci Cobalchini, 33 anos:
– Comecei a ter interesse maior em fazer minha comida, prazer em testar receitas novas, combinações diferentes, entender como os sabores influenciam um nos outros.
Apesar de não ser mais difícil como antigamente encontrar opções vegetarianas nos cardápios, pensar no preparo das refeições acaba sendo um caminho importante para quem busca uma alimentação saudável. Como lembra a nutricionista Carla Piovesan, apenas tirar a carne e aumentar a dose de carboidratos não é a saída. Por isso, a base desse tipo de alimentação está, de fato, na feira. E quem faz feira sabe: uma nota de R$ 50 rende muitas frutas, folhas, vegetais e grãos. Esses espaços, inclusive, já fazem parte da configuração urbana da cidade: praticamente todos os dias é possível encontrar um ponto de venda direto das mãos do produtor em algum canto da cidade.
Uma pesquisa feita pelo Conselho Brasileiro da Produção Orgânica e Sustentável mostra que 15% da população urbana inclui algum tipo de alimento orgânico na sua dieta. E esse é um mercado em crescimento: estimativas da entidade indicam crescimento entre 20% e 25% ao ano até 2020. São números que andam juntos: mesmo que nem todo vegetariano se alimente de produtos orgânicos, o crescimento desse setor também reflete a mudança com relação ao alimento.
– Tenho pacientes, principalmente jovens, que, mesmo comendo carne, buscam diminuir a quantidade e conhecer outras fontes de proteína. Recebo muitas pessoas que comem peixes mas não carne vermelha, alguns motivados pela saúde e que buscam um estilo de alimentação baseado na dieta mediterrânea, outros motivados pelas informações sobre como a carne é produzida – explica Carla.
Mas o estilo de vida de quem deixa de lado os produtos de origem animal vai muito além da mesa. Está também nas roupas e produtos de beleza sem matéria-prima ou testes em animais e na própria relação com o consumo. Antes mesmo de se tornar vegetariana, Luci já controlava o que comprava: quando precisava de alguma roupa, tentava encontrar a peça em um brechó e sempre se certificava de que a maquiagem que estava usando não era testada em animais. Para Cíntia Selbach, ser vegana definiu até sua vida profissional: há três anos, abriu a El Gato, marca de leite vegetal que integrou o cardápio de Paul McCartney em sua última turnê por Porto Alegre.
– Senti necessidade de um trabalho que fizesse sentido com os meus valores e agregasse algo pra mim e para os outros – diz Cíntia, que também começou a se relacionar com pessoas mais afinadas ao seu jeito de ver o mundo, passando da única da turma da faculdade que não comia carne para uma entre os outros tantos vegetarianos e veganos da sua atual turma de amigos.
O passo além de vegetarianos e veganos é tentar desenvolver no outro uma consciência em relação aos animais, como explica Helisa Canfield, nutricionista e doutoranda em Antropologia pela UFRGS:
– Muitos vegetarianos e veganos viram ativistas, é um movimento social que tem força. Comer ou não comer carne deixa de ser uma escolha com implicações apenas individuais, mas uma escolha coletiva.
Mas tudo dentro do limite e da consciência de cada um. Depois de não resistir a um prato com camarão, Luci fez um acordo consigo mesma: desde janeiro, instaurou uma refeição livre por mês - geralmente sushi. Recentemente, o lanche vegetariano que pediu na tele-entrega veio trocado. Diante da opção de não comer porque tinha carne e aquele não ser seu dia livre, tendo de colocar a comida no lixo e fazer um novo pedido, fez as contas e viu o que causaria menos impacto no ambiente: comeu o lanche. E, no dia seguinte, seguiu rumo à feira.