Antes de chegar à outra ponta da América do Sul, Pietra Possamai, 28 anos, dava sinais de que sua vida estava entrelaçada nos ramos das videiras. Se no presente virou ofício, muito foi graças ao passado, já que o gosto pelas uvas ajudou a moldar sua infância. Nascida e criada em Bento Gonçalves, na serra gaúcha, a enóloga podia não conhecer o vinho de forma profissional, mas era impossível negar que ele estava por todo lado. Com a família, aprendeu como a bebida era digna de momentos especiais.
— Meus pais e meus amigos sempre tiveram essa questão de comprar uma boa garrafa de vinho. Vamos fazer um jantar bonito, um almoço bonito, vamos comemorar essa situação abrindo uma boa garrafa de vinho — lembra a jovem. — Isso sempre esteve muito presente na minha família, de conscientemente considerar uma bebida merecedora de celebração — acrescenta.
É difícil para Pietra apontar o momento exato em que o seu caminho profissional tomou forma. Na infância, ela dizia ter uma loja de vinhos na casa da avó, onde brincava de vender garrafas cheias de bebidas de imaginação. Uma de suas tias lhe deu de presente um livro que discorria sobre os vinhos de cada região do mundo, e outra lhe incentivou a levar a paixão a sério e seguir os estudos.
Aos 14 anos, ela aceitou a sugestão da família e entrou no ensino médio técnico no Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), na sua cidade natal, para estudar Viticultura e Enologia. O que costumava ser apenas uma curiosidade foi lapidado até virar profissão. Quando o álcool virou objeto de conhecimento, Pietra definiu sua postura:
— Em toda a minha vida, eu encarei com muita seriedade e respeito o que é trabalhar com bebida alcoólica — conta a enóloga. — Eu era a “criança-uva”. Eu amava suco de uva, cuca de uva, era viciada em sagu, adoro quentão também — completa.
Primeiras safras
As aulas práticas plantaram na jovem o fascínio pela vitivinicultura durante a adolescência. O ensino técnico evoluiu para o curso de graduação na mesma área, também no IFRS de Bento Gonçalves. Estágios em vinícolas e uma passagem pela Embrapa expandiram suas experiências.
Independentemente de onde estava ou do que fazia, o vinho foi uma companhia constante na vida de Pietra, um gosto não imune ao tempo.
— O meu estilo de consumo de vinho está completamente atrelado com a fase da minha vida. Eu posso te dizer exatamente em que ano eu gostava mais de cada produto e o que eu vivia naquela época, quais eram minhas paixões e preocupações.
Nos seus anos formativos, a gaúcha não largava os brancos, em especial aqueles feitos das variedades sauvignon blanc e chardonnay. Com a idade, chegaram os focos dignos de fanáticos, e Pietra só bebia vinhos de regiões específicas ou que passaram por certos processos de elaboração – pelo tempo que a obsessão durasse.
A facilidade de vincular uma bebida a uma história também aparece na hora de recomendar rótulos. Ela tanto vê o vinho como uma forma de arte que se pega pensando na música que combina com cada sabor. Não foram poucas as vezes que seus amigos pediram dicas do que comprar e saíram com uma garrafa embaixo do braço e um álbum novo nos fones de ouvido. Decidir o que indicar vira sinônimo de diversão, como na playlist que criou para ilustrar uma das suas bebidas autorais (confira abaixo).
— Eu adoro isso, para mim é o melhor jogo — brinca a profissional — Quando tu conhece a pessoa, tu pensa que vai ser fácil, mas é o contrário: quanto mais tu conhece alguém, maior é a tua responsabilidade, seja com o vinho que tu vai escolher ou com as músicas que tu vai colocar na playlist.
Novo endereço, novas perspectivas
Poder trabalhar em um espaço que permitisse deixar a criatividade fluir já era uma meta de Pietra quando ela arriscou romper as barreiras geográficas. Uma combinação de “sorte, acaso e estar no lugar certo na hora certa”, nas suas próprias palavras, fez com que olhos de diferentes regiões e nacionalidades estivessem apontados na sua direção no final de 2018.
Uma breve visita ao Peru para conhecer as terras e o mercado do país vizinho lhe rendeu uma proposta de emprego meses depois. A jovem fez as malas para aterrissar no Vale do Pisco e trabalhar como enóloga na Bodega Murga, em 2019. O empreendimento, resultado de sonhos e paixões de um grupo de amigos peruanos, propunha-se a realizar um feito ousado: transformar uma região acostumada a fazer pisco, o destilado de uva, em uma produtora de vinhos.
O risco valeu a pena. Em apenas uma década, os fermentados da Murga passaram a ser vendidos em diversos locais do Peru e do mundo. É possível encontrar as bebidas em alguns dos restaurantes mais finos de Lima, como o Central, eleito o melhor do mundo pelo ranking 50 Best em 2023, além de endereços em Cusco, Miami, Nova York, Madrid, Barcelona, Zurique, Tóquio e Dubai. As uvas que passaram séculos sendo usadas quase que somente para aguardente provaram guardar um potencial para as mais variadas combinações, desde que alguém olhasse para elas com inspiração.
Nos cinco anos em que Pietra está à frente da produção de vinhos da bodega, seus rótulos autorais ganharam fãs e até prêmios. A equipe conquistou o primeiro lugar na lista dos melhores brancos peruanos de 2023, no Descorchados, um dos maiores guias de vinicultura da América Latina. No ranking, quatro dos 10 melhores nacionais eram da Murga.
Mesmo com as conquistas, trocar o Atlântico pelo Pacífico não foi nada simples. Foi a primeira vez que a gaúcha saiu da casa dos pais, fora um período em que passou em Santa Catarina, mas que, pela proximidade, não considera como realmente morar fora. Para piorar, ela não sabia uma palavra em espanhol, se não fossem as cantadas pelo uruguaio Jorge Drexler. O conhecimento de italiano, acumulado ao longo de oito anos de aulas em Bento Gonçalves, precisou dar lugar a outro idioma latino.
— Hoje, se tu me escuta falando espanhol, nem acredita que eu sou brasileira. Mas meu italiano está enferrujado e aposentado — complementa.
Na lista dos sonhos realizados no Peru está o encontro com o ídolo musical que lhe apresentou a língua. Drexler estava no país e resolveu provar os famosos vinhos da Murga. Entre os escolhidos, estavam duas criações de Pietra: o Agathodemon e o Albilla + Italia. O último, nomeado a partir das duas uvas presentes na composição, precisou trocar de título para marcar o momento.
— Depois que ele tomou, eu rebatizei esse vinho com o nome de uma das canções dele, “Duermevela” — conta a enóloga — Eu não tenho muitos ídolos, mas adoro o cara, adoro o que ele escreve. Nunca imaginei na minha vida que isso iria acontecer.
Quando a gaúcha chegou às terras peruanas, as parreiras tinham poucos anos de vida. O projeto, as uvas e os vinhos são tão jovens quanto Pietra, que não considera levar seu trabalho para fora do Vale do Pisco, pelo menos não por enquanto. A vida, a produção e o lugar estão completamente entrelaçados.
— Não é sempre que um enólogo tem o privilégio de ver o trabalho dele se desenvolver ao mesmo tempo que a videira. Isso se traduz de maneira tão direta e tão bonita na evolução dos vinhos, que eu gosto de acompanhar, gosto de estar crescendo com o projeto.
Enquanto engarrafa suas criações, a jovem de Bento Gonçalves segue construindo pontes entre a terra e a mesa, mostrando que barreiras culturais, geográficas e linguísticas não são capazes de resistir frente a um vinho de excelência.
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*Produção: Caroline Guarnieri