Em 15 anos de trajetória, existe uma crença que acompanha o Destemperados até hoje: a gastronomia é feita de pessoas para pessoas. Neste cenário, são inúmeros os personagens ativos. Pessoas apaixonadas por comer e beber bem que fizeram outras também se apaixonarem.
Seria injusto relembrar os últimos 15 anos sem homenagear influenciadores e produtores de conteúdo. Quem usou da sua criatividade para falar, ensinar e, até mesmo, fotografar pratos e receitas, fazendo com que outros passassem a se interessar pelo assunto também.
Por muitos anos, as principais referências vinham das revistas e da televisão, por meio de chefs, cozinheiros ou especialistas. Agora, vivemos a era das redes sociais, na qual a comida é tema em diferentes formatos, produzidos por quem simplesmente gosta de gastronomia.
Ao passo que o número de brasileiros presentes nas redes sociais praticamente duplicou em seis anos, de acordo com o Ibope, os influenciadores digitais também ganharam espaço na vida das pessoas. Mais de 50% dos internautas do país seguem, pelo menos, um influenciador. E, claro, a gastronomia é um dos nichos que entra nessa estatística. São diversos perfis e personalidades que tornaram a comida uma pauta do dia a dia.
Conversamos com dois nomes de relevância no cenário gastronômico do Sul, que tiveram influências em épocas totalmente diferentes. De um lado, uma das primeiras mulheres a ensinar uma receita na televisão gaúcha. De outro, um chef que viralizou compartilhando seus conhecimentos de forma descomplicada na internet.
Aninha Comas, antes mesmo do Instagram existir, já impactava o público com o seu amor pela culinária. Iniciou sua história com a gastronomia quando o lugar de mulher só poderia ser na cozinha de casa. E foi de lá que ela criou seu negócio e se tornou umas das principais cozinheiras do Estado.
Na outra ponta da mesa está Raphael Despirite. Sua relação se passa em outros tempos, com a presença das redes sociais e da busca por uma experiência gastronômica completa. Foi nesse cenário que usou do período da pandemia para difundir suas receitas cotidianas em vídeo e ressignificar o conceito de jantar fora com o seu próprio negócio, o Fechado para Jantar: uma iniciativa que promove jantares inéditos em diferentes cidades do Brasil.
DESMISTIFICANDO A COZINHA
Definir Aninha Comas em algumas palavras é uma tarefa difícil. Afinal, são mais de 40 anos atuando na gastronomia como cozinheira, professora, apresentadora, escritora e empreendedora. Muitos nomes a caracterizam, mas “chef’’ não é um deles. Ela ressalta inúmeras vezes que se autodenomina cozinheira. Não somente porque nunca chegou a cursar uma faculdade de Gastronomia, mas porque as técnicas e o glamour não definem sua cozinha. Se poucas palavras fossem usadas para resumir seu estilo, seria “alucinada pela praticidade’’, assim como ela mesma define.
Unindo a habilidade natural de se comunicar com a paixão pela comida, Aninha sempre prezou por desmistificar a culinária. Se o modo de preparo indicava três panelas para diferentes etapas, ela testava tudo em uma só e via que o resultado era o mesmo. Foram truques assim que a levaram a ministrar cursos de culinária em sua própria casa.
O sucesso foi tanto que um convite para um grande desafio chegou: apresentar um programa de culinária para o Rio Grande do Sul. Era o início da Televisão Guaíba quando Aninha Comas assumiu o quadro do programa Guaíba Feminina, na década de 1980. Ao vivo, ela reproduzia receitas do jeito mais sincero possível — imprevistos como queimar o prato ou errar o ponto eram driblados na hora, assim como na vida real.
A sua verdade também estava estampada em sua imagem, que não usava toucas ou luvas para preparar os pratos, por exemplo, por ser muito vaidosa. Virou sua marca registrada, unindo elegância e culinária. Muitas telespectadoras a agradeciam por mudar a imagem estereotipada da mulher na cozinha e diziam que passaram a se valorizar e a serem valorizadas pelos seus importantes papéis à frente das panelas.
O caráter disruptivo de Aninha começou desde cedo, quando decidiu aprofundar seus conhecimentos por vontade própria, em uma época em que era exigido da mulher os dotes culinários para o casamento. Transformou o seu gosto de infância em seu negócio e, naquela época, foi pioneira ao abrir uma loja de comida congelada em Porto Alegre.
Os frutos da influência de Aninha Comas podem ser vistos através da vida da chef Carla Pernambuco, que, desde criança, assistia aos seus programas na TV. Até hoje, a ex-apresentadora é surpreendida por admiradores ao ser reconhecida na rua. Seguidamente toca o telefone: é alguém pedindo aquela receita antiga que se perdeu nos papéis de casa.
GASTRONOMIA É PAPO PARA TODOS
Antes mesmo de aprender a cozinhar, Despirite aprendeu a comer. Ele é a quarta geração de uma família com restaurantes especializados na culinária francesa. Os encontros de domingo giram em torno de saber qual vai ser o cardápio do almoço. A gastronomia está enraizada como uma parte muito importante da sua vida e da sua rotina.
Depois de estudar gastronomia na França, em 2012, Raphael abriu seu próprio negócio no Brasil: o Fechado para Jantar. Uma iniciativa que une comida e bebida em lugares inusitados do país, como uma estação de trem abandonada. A gastronomia simplificada, que gera encontros e histórias, se tornou uma marca de sua cozinha.
Com a pandemia, o chef usou o Instagram e o YouTube como palco desses encontros. Ensinava receitas do seu dia a dia para aproximar quem estava do outro lado da tela. Nas redes, conquistou uma comunidade de aprendizes e de curiosos com seus vídeos de preparos fáceis e sem glamour, carregados de bom-humor.
Ele não dá os créditos a si mesmo quando o assunto é levar a comida à vida das pessoas. Sua profissão gera encontros e identificação por conta de uma virtude da própria gastronomia, que é ser comum a todos. Afinal, “todo mundo gosta de comer”, brinca. O estereótipo do chef crítico e exigente com as técnicas não combina com Despirite, já que gastronomia é assunto para toda hora e para todo mundo. Por isso, usou das suas redes para tornar a comida um conteúdo despretensioso feito por quem ama o que faz.
EXPERIÊNCIAS AO REDOR DA MESA
Nos últimos 15 anos, Lela Zaniol e Diogo Carvalho também fizeram parte deste grupo de pessoas que tornaram a gastronomia mais acessível. Dois amigos que tinham o amor pela culinária em comum começaram com um blog, no qual contavam suas experiências em torno da comida. A iniciativa se desenvolveu até chegar na multiplataforma que impacta milhares de leitores todos os dias.
Nesse caminho, surgiram outros personagens que usavam de suas próprias linguagens para falar a diferentes públicos. Cada um deles cumpre o papel indispensável de aproximar a gastronomia do cotidiano — não como uma necessidade humana, para sobreviver, mas como cultura, lazer e informação.
Tudo começa quando a comida vira pauta de uma conversa. Uma roda de amigos comenta sobre o novo restaurante que abriu. Alguém compartilha uma receita que aprendeu, e o outro retribui com uma sugestão de cafeteria. Agora, os diálogos também estão nas redes sociais, em posts e em vídeos. E, quanto mais se fala, mais pessoas passam a se interessar.
— As pessoas vêm consumindo mais, e os criadores de conteúdo têm um papel muito importante nessa democratização da gastronomia — reflete Lela.
Vivemos em um período de retomada do setor, depois de dois anos difíceis para grandes e pequenos negócios. Os criadores de conteúdo são peças fundamentais para manter esse ecossistema vivo. Vai muito além dos impactos econômicos.
É pela construção de memórias ao redor da boa mesa.