Neste momento, Rafinha Bastos está em turnê pela Europa. Saído de Porto Alegre ainda nos anos 2000, o artista fez carreira em São Paulo e foi projetado para o Brasil encabeçando a primeira leva de comediantes de stand-up. Fez filmes, séries e programas de TV. Atualmente, vive em Nova York, nos Estados Unidos. E foi para lá sem pensar que poderia não dar certo — "Fui para fazer acontecer". E está conseguindo.
Hoje, ele é integrante regular de um dos mais celebrados clubes de comédia do mundo, o Comedy Cellar — onde divide o palco com lendas do stand-up como Dave Chappelle e Chris Rock. Também já se apresentou com Jerry Seinfeld, um dos grandes expoentes do gênero e ídolo do humorista gaúcho. Não é pouca coisa. Ainda mais para quem precisa fazer piadas em uma língua estrangeira.
Rafinha — que no Exterior assina como Rafi Bastos, por conta da dificuldade da pronúncia do "nha" para os gringos — conversou com GZH e contou como está sendo esta nova fase da carreira, que já lhe rendeu mais de 1 milhão de seguidores na conta do Instagram focada para o público estrangeiro e teatros lotados mundo afora. Confira abaixo.
Como foi a decisão de investir na carreira internacional?
Senti que tinha feito tudo o que eu queria ter feito no Brasil. E sempre tinha, lá no fundo, essa vontade de tentar uma carreira internacional fazendo stand-up comedy. Nunca tinha me apresentado em inglês, era uma novidade para mim, mas já tinha assistido a muita coisa, tinha curiosidade pelo desafio.
E já fui em 2018 para morar nos Estados Unidos, da mesma maneira quando me mudei de Porto Alegre para São Paulo. São duas viradas muito parecidas na minha vida. Já fui com o intuito de começar uma carreira. Foi devagar, aos poucos.
Hoje, como você avalia esta decisão?
Está dando muito certo. Estou em turnê na Europa, com turnê marcada na Índia. Acabei virando um comediante mundial. O meu objetivo inicial era me desafiar e criar uma carreira nos Estados Unidos. Só que, com o tipo de material que eu produzo, acabei me conectando com pessoas do mundo inteiro.
Hoje, no meu Instagram, tenho muita gente da Itália, da Índia, da Turquia, da Austrália. A galera toda me segue e está me dando a oportunidade de fazer show no mundo inteiro. Já fiz show no Oriente Médio, em Dubai, em Omã, no Bahrein e no Canadá. É uma oportunidade muito bacana de fazer algo que nunca fizeram. Primeiro brasileiro a fazer isso. É um orgulho muito grande.
E a dificuldade de encarar um palco falando em inglês?
O português só se fala em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Portugal e Brasil. Ou seja, são muito limitadas as oportunidades que um comediante brasileiro tem de fazer uma turnê pelo mundo. Se o cara fala um espanhol, já abre muito, tem Espanha, México, Argentina, toda a América do Sul. E a gente não, ficamos muito isolados com o nosso idioma.
Então, fazer inglês me deu a oportunidade única de me conectar com o mundo, porque o mundo inteiro fala essa língua. Hoje, faço show em países que sequer são de língua inglesa e consigo lotar o teatro de gente que quer ver.
Nas redes, você publica muitas piadas sobre as diferenças entre as culturas brasileira e norte-americana. Você adaptou o seu tipo de humor para abraçar o público estrangeiro?
Não tem tanto a ver com adaptação do conteúdo. Quando você chega em um outro país, obviamente, tem um olhar externo, de quem não está acostumado com aquela realidade. É natural que o comediante estrangeiro chegue nos Estados Unidos e comece a fazer piadas sobre o idioma. Eu talvez dê um pouco esta impressão porque o meu Instagram tem muito disso, porque foi o que me viralizou.
Descobri um caminho para crescer as minhas redes e invisto bastante nisso. Tive a oportunidade de construir um público internacional muito por causa das minhas piadas sobre a língua inglesa, mas o show não é assim, é mais sobre a minha vida, do mesmo jeito que sempre fiz. Tem as minhas piadas com o mesmo peso de sempre.
Acabei virando um comediante mundial.
RAFINHA BASTOS
Como você analisa a sua trajetória, desde os anos 2000, quando trabalhava no ClicRBS com a Página do Rafinha, até agora, apresentando-se nos maiores clubes de comédia do mundo?
Não paro muito para pensar. Por que, imagina, eu trabalhava na RBS em 2000. Isso já faz 24 anos. Então, é muita coisa que aconteceu. Às vezes, nem lembro direito. O que aconteceu na minha vida é que tive duas viradas muito grandes: quando saí de Porto Alegre e quando saí de São Paulo e fui para os Estados Unidos. Então, a vida dá meio que um recomeço.
Vou perdendo um pouco o contato com a minha vida anterior. Tenho dificuldade de fazer estas análises, de olhar para trás e falar: "Puta, olha o que eu fiz". A minha vontade sempre foi, de verdade, fazer algo muito grande. Descobri na internet uma maneira de me comunicar com mais gente. E percebi muito rápido que talvez a televisão não fosse um lugar para mim. Estou sempre buscando.
E até onde será que vai essa busca?
Sempre fiquei preocupado que fosse ficar velho e não tivesse limite. Qual é o limite? Às vezes, as pessoas me perguntam: "Onde você quer chegar? O que você quer?". Não sei. Quero fazer o que me deixa feliz. Não estou fazendo comédia nos Estados Unidos e show pelo mundo para conquistar o planeta, mostrar alguma coisa. É algo que realmente me satisfaz.
Na minha vida, fiz muita coisa que não me deixava tão feliz. E o palco sempre foi um lugar que me deixou muito completo. Tive de abandonar por um certo tempo, porque fazia dois programas de televisão. Aí, uma hora, quando dei uma sossegada, parei para pensar no que realmente me faz feliz, porque estava fazendo um monte de coisas que construíam a minha carreira, mas que não necessariamente me deixavam satisfeito.
E, hoje, tenho a oportunidade única de dividir o palco com caras que admirei a vida inteira. As coisas vão acontecendo, e o público vem me acompanhando. A galera do Rio Grande do Sul se sente orgulhosa pelas coisas que fiz, pelos caminhos que tomei. Tenho orgulho de representar muita gente.
Você estará no festival Netflix Is a Joke, em Los Angeles, ao lado de grandes nomes da comédia mundial. Como foi isso?
Em 6 de maio, tenho o meu show lá. Tem um monte de comediantes fazendo shows de elenco e tem alguns fazendo estes shows de headliner, com o marketing em cima do comediante. E sou um dos caras que eles escolheram para ter o próprio show lá.
Recentemente, o POA Comedy Club, único clube de comédia da Capital, fechou as portas. Como você enxerga a cena no Brasil atualmente?
Começamos o movimento do stand-up, um grupo comigo e mais umas cinco pessoas, em 2004. É muito recente. São 20 anos. Ainda é uma semente que vai se desenvolvendo. Os caras em Nova York fazem isso desde os anos 1940, subindo no palco para fazer stand-up antes das bandas de jazz. Isso faz parte da cultura norte-americana, mas vem se estabelecendo na cultura brasileira.
Hoje em dia, as pessoas já usam a expressão stand-up — "eu vou ver um stand-up". Em 2004, eu jamais imaginaria que esta palavra iria fazer parte da vida das pessoas. É um processo. E é muito difícil ter um negócio no Brasil, ainda mais ser dono de um clube de comédia.
Você mesmo teve o Comedians, em São Paulo, que era referência, mas acabou fechando.
Sim, o Comedians abriu em 2010 e fez muito sucesso, por muito tempo. Fechou no começo da pandemia. A gente pensou: "Vai ser muita despesa. A gente já está com a cabeça em outros negócios. O nosso ciclo de 10 anos aqui se fechou, vamos comemorar que deu tudo certo e ir embora antes de começar a perder dinheiro".
Realmente, estava caindo toda a cena. Acho também que o stand-up comedy no Brasil ganhou muita antipatia, de muita gente, de veículos de comunicação.
Você acredita que não tem espaço na mídia?
Sou um comediante de stand-up que estou fazendo isso há 20 anos. Saí de Porto Alegre, fui para São Paulo, criei uma carreira na televisão, cara precursor e o caralho, fui para os Estados Unidos. É a primeira entrevista que dou para a Zero Hora (Rafinha deu uma longa entrevista para ZH em 2018, para o Com a Palavra).
E aí tu me pergunta se o pessoal valoriza? Não, não valoriza. Nem dentro de casa valoriza, vão valorizar na Paraíba? É difícil estabelecer uma cena. Talvez o público que não tenha tanto interesse por isso, mas acho que não, porque os teatros estão lotados. Toda vez que eu vou para Porto Alegre, faço show para 2 mil pessoas.
Os comediantes também precisam estar mais unidos para fazer a cena toda crescer. Acho também que a gente está vivendo um momento do país politicamente muito dividido que às vezes é muito complicado, em que o cara já quer enquadrar o artista, se ele é de esquerda, de direita. Vira uma loucura. Então, muitos fatores fazem com que o stand-up não tenha tanta força, mas tem força.
Como você acredita que os comediantes podem ajudar a avançar com a cena?
Hoje, sou um dos regulars do Comedy Cellar, o mais pica dos Estados Unidos. Há seis meses, entrou um outro latino-americano, do Chile. Entrei em 2019. Então, por muito tempo, fui o único latino-americano. Por quê? O bloqueio do idioma. Seria bom se o brasileiro fosse se expor um pouco mais, sair um pouco mais. E, no que eu puder ajudar, ajudo. Os brasileiros que estiverem dispostos a abrir para mim nos Estados Unidos, eu sou superaberto. A gente precisa mostrar o que a gente faz. O stand-up no Brasil é muito bom.
Você já sofreu cancelamento antes mesmo do termo ser conhecido. Como é ser comediante nos dias de hoje, com o patrulhamento ainda mais intenso e instantâneo?
Acho que dificulta para o comediante é que o que a gente faz em cima do palco não tem uma máscara. Às vezes, você está falando absurdos só com o intuito de fazer rir e isso pode ser descontextualizado. Pode-se pegar aquelas frases e usar como aspas em uma matéria, em uma revista, como já aconteceu comigo. Aí, realmente, uma piada fora de contexto vira uma agressão gratuita.
O Chico Anysio, quando fazia um personagem e dava polêmica, o que ele fazia? Aposentava o personagem e trocava por outro. O Jô Soares fazia o Capitão Gay — "Ah, o Capitão Gay não é mais engraçado por causa do movimento gay" —, aí tira o Capitão Gay do ar e, na semana seguinte, ele estava fazendo o Super Gordo. É mais fácil neste sentido.
Às vezes, as pessoas me perguntam: "Onde você quer chegar? O que você quer?". Não sei. Quero fazer o que me deixa feliz.
RAFINHA BASTOS
E isso prejudica o processo criativo?
Se isso vai atrapalhar o processo criativo do comediante, é uma escolha dele. "Não dá mais para trabalhar, não dá mais para fazer as piadas que fazia". Dá sim, meu irmão, é você que não tem coragem. É diferente. É a tua escolha de não querer se incomodar. Ok, respeito, está tudo certo.
Não é a maneira como penso. Acho que só é cancelado quem é visto. Tem muita gente que fala isso: "Fui cancelado". Aí, você fala: "Ah é? Onde?". "No Twitter". Sabe o que você pode fazer? Não entra mais. Pronto, resolvido o problema. Às vezes, passa na televisão, na imprensa: "Fulano recebeu ameaças de morte". Ameaça de morte? Botaram uma arma na cabeça da pessoa? Jogaram uma bomba na casa dela? Não, não, 12 tuítes. Mas aí também vai do comediante deixar isso afetar o processo criativo dele. Eu sou contra. Acho que o cara tem que cagar. Até para os elogios.
Até para elogios?
Tem um monte de amigos meus, não só comediantes, que o público fica dizendo: "Que cara incrível". Vai olhar o que o cara está produzindo, é só merda. Mas o público fica: "Ê, legal". Não é legal. Nem os elogios podem direcionar o seu processo criativo.
Você tem de ser livre para fazer o que acha que é legal e, obviamente, que o público goste. Tem de achar um equilíbrio e trabalhar neste lugar, navegar nisso. Tem gente inteligente fazendo merda a vida inteira porque é o que o público gosta. Aí, o cara morre sem ter produzido nada do que ele gostaria. As escolhas que fiz na minha profissão me fizeram perder muita coisa, mas, no fundo, durmo muito tranquilo com o meu travesseiro, produzo o que eu acho bacana.
A vida me levou para caminhos dos quais eu sou muito orgulhoso, mas passei por encruzilhadas. "Rafinha, segura a mão aqui", se tivesse feito isso, estaria hoje no Luciano Huck. Fazendo o quê? O Luciano Huck faz o que qualquer ser humano seria capaz de fazer. Mas é isso. Será que o cara é feliz quando deita a cabeça no travesseiro por mostrar um cara na cadeira de rodas fazendo malabarismo? Não sei.
Quando vem fazer turnê no Brasil?
Por enquanto, estou com turnês marcadas em vários lugares do mundo. Estou nessa neste momento. Acho que inevitavelmente, mais para a frente, vou querer escrever sobre isso, sobre estas vivências todas. Mas, por enquanto, estou mais focado em escrever uma piada que funcione em inglês, tanto para o americano quanto para o brasileiro e para o cara da Arábia Saudita. É uma temática complicada, mas que está dando certo.