Selton Mello preferiu fazer esta entrevista de forma semelhante àquela que usou para produzir sua autobiografia, Eu Me Lembro, lançada neste mês de dezembro: a partir de mensagens de áudio, como se estivesse pensando alto, em depoimentos que soam quase como um desabafo, com grande franqueza em suas falas. Com 50 anos de vida e mais de 40 de carreira, decidiu que sua história seria um livro aberto (ele completa 51 neste sábado, dia 30). Para Eu Me Lembro, o ator e diretor de cinema e televisão convidou 40 pessoas importantes em sua trajetória para lhe fazerem perguntas – sem qualquer orientação ou linha a ser seguida –, que foram respondidas, uma a uma, sem restrições. Ali estão seus pensamentos, eternizados. Intérprete de tantos personagens fascinantes, com esse projeto ele também se torna um deles. A seguir, ele responde sobre o livro, a carreira e, sobretudo, sobre sua vida, a qual ele próprio classifica como “dura, maluca, difícil, mas, no fim das contas, bem bonita”.
De onde surgiu a ideia de fazer uma autobiografia?
Surgiu na pandemia. Trancado em casa, com medo de tudo. O mundo acabando, eu pensando que iria morrer dessa doença, me perguntando: “Onde está a vacina?”. Naquele momento, o que eu tinha para fazer era arrumar gavetas, mexer em caixas, ajeitar a estante, guardar livros. E, assim, achei fotos e coisas da infância. Foi quando me dei conta dos 40 anos de carreira. Eu me amarro em astrologia, digo que é o meu ascendente em virgem que me levou a essa comemoração agora, mas a verdade é que eram 43 anos de carreira, porque comecei com sete anos. Só que é mais estético, digamos assim, demarcar "50 anos de vida e 40 de carreira". Agora, falei no livro coisas que eu nunca havia dito e que as pessoas nem imaginam que a gente passa. Minha mãe tem Alzheimer há mais de 10 anos. Na pandemia, fiquei muito chateado de não poder ir lá abraçá-la. E também estava preocupado com meu pai. Era muita coisa. Era a vontade de lembrar. Basicamente, acho que foi assim: uma mãe perdendo a memória e um filho tentando salvar as memórias de uma família, não só as minhas, mas de uma família brasileira, em que, por acaso, dois filhos são atores (referência a Danton Mello). Mas somos filhos de uma dona de casa e de um bancário. Gente simples, do interior de Minas (Gerais).
A parte do livro em que você conta que Dona Selva, sua mãe, vive com Alzheimer é emocionante. Esse trabalho, além de levá-lo a revisitar suas memórias, é motivado, também, pela vontade de ser lembrado?
Sim. Para quem tem Alzheimer na família, um pensamento muito recorrente é: “Será que eu também vou ter?”. Faço check-up anualmente. Nos exames deste ano, meu médico disse: “Cara, estou cuidando de um colega médico de 56 anos que tem Alzheimer”. Então, será que eu vou ter também? Será que o fato de eu trabalhar com algo que exercita muito a memória vai ajudar nesse sentido? Não dá para ter ideia. A gente fica muito mexido. Agora, a minha mãe está em um lugar de paz. Ela está, na verdade, já fazendo a sua passagem. Está, aos poucos, se desligando deste mundo material. Está ali, eu vou, falo com ela. Ela não vai se lembrar, mas eu vou. Ela sente que eu vou, que passei por lá, ela sente que está em casa, na casa dela. Não coloquei minha mãe em uma casa de repouso. Fiz todos os esforços, é caro e tudo mais, para oferecer a ela o conforto de viver isso tudo no quartinho dela. Já é uma cama de hospital, e, hoje em dia, duas acompanhantes se revezam para cuidar dela. E ainda tenho que ficar ligado no meu pai. Ele está bem, são, mas está vendo tudo isso e sofre, fica indignado. Este livro também é uma grande celebração da importância da minha mãe e do meu pai na minha vida.
Por que você optou por essa grande sabatina, com perguntas de outras pessoas, para contar sua história?
Comecei a pensar em um formato e aí veio a dúvida: um texto em primeira pessoa vai ficar bom? Resolvi então fazer esse diálogo com pessoas que são queridas, que admiro, gente com quem eu trabalhei ou sou fã. Um exemplo é o Jeferson Tenório, daí da terra (escritor nascido no Rio de Janeiro e radicado em Porto Alegre), um cara por quem tenho admiração profunda. Eu pirei com O Avesso da Pele. Acho um dos grandes livros escritos nas últimas décadas no Brasil. É brilhante, necessário, sensível. Quando o li, procurei o Jeferson para conversar, e ele foi de uma enorme empatia. A gente trocou ideias, pensamos em, quem sabe, escrever algo em parceria. Ele me mandou perguntas lindas. Também recebi questões de grandes amigos que eu conhecia há mais tempo, como o Oberdan Júnior, que me conhece desde criança e também é um sobrevivente dessa coisa louca que foi ser um astro mirim. Então, tem uma mistura grande. Acabou ficando uma conversa como esta que estamos tendo nesta entrevista. Fui pensando alto, incitado pelas perguntas dos outros, e as pessoas foram me ajudando a transcrever. Falo do pessoal da editora, Jambô, que também é de Porto Alegre.
Cada colaborador do livro veio com algo diferente. Tem de tudo. E nossa memória vai e volta. Você lembra de uma coisa do passado mais distante, outra coisa de ontem. Não existe uma linha reta de raciocínio.
Como se deu essa parceria entre vocês?
Ofereci livro a todas as editoras do Brasil. As grandes, as médias, as pequenas. Fui sendo ignorado, ou não acharam que fazia sentido. Procurei todas as editoras do mercado. Nenhuma se interessou. A não ser a Jambô. E eu achei o máximo. É que nem quando eu escalo um ator. Prefiro um ator sedento, faminto por aquele trabalho, do que o cara que está ali só por estar. Que bom que foi uma editora que quis muito, porque tem depoimentos importantes, íntimos.
Como é uma grande sabatina, com os mais variados entrevistadores, você não tinha controle do caminho que a obra tomaria. O que achou do resultado?
Acho que foi ótimo, porque cada um veio com algo diferente. O Johnny Massaro (ator), por exemplo, me perguntou se eu já dei estrelinha. O (Rodrigo) Santoro me perguntou que bicho eu seria. Tem de tudo. E a nossa memória vai e volta. Você lembra de uma coisa do passado mais distante, outra coisa de ontem. Então, não existe uma linha reta de raciocínio. Outra coisa curiosa: muitas perguntas eu senti que eram mais sobre essas pessoas, ou coisas que elas sentiam – aí já é o meu psicanalista amador falando. Mas a muitas perguntas reagi assim: “Olha, acho que essa pessoa pensa isso da vida, por isso está me fazendo essa pergunta”. No fim, foi interessante, saboroso, emocionante, mexeu muito comigo e me fez relembrar muitas coisas. Além de parecer uma conversa – o que, me parece, aproxima o leitor. Quem é o leitor desse livro? Não tenho ideia. Acho que são os fãs do meu trabalho, pessoas que têm curiosidade de saber o que penso, o que vivi. Acho que também vai ter muito ator, estudante de artes cênicas, amante das artes em geral que vai ler o livro.
É difícil não ler as suas respostas imaginando sua voz. Sua voz que virou um ícone na cultura pop. É uma digital sua. O que você pensa sobre isso?
É verdade, minha voz é marcante, mesmo (risos). Entrei em um táxi, esses tempos, e falei assim: “Copacabana, por favor”. E o motorista: “Ah, Selton Mello, eu adoro o seu trabalho”. Eu sentei atrás dele, ele não me viu. Ele me falou: “Te reconheci pela voz”. Isso é curioso. Imaginar a minha voz nas respostas faz sentido. E é divertido.
Sua vida virou um livro aberto. Deu medo de se expor assim?
Não, não deu. Acho que é bonito. E tenho recebido mensagens lindas. Pessoas emocionadas desde o anúncio do projeto. E, agora, começaram a chegar os primeiros feedbacks das pessoas que já leram. Tem muita gente se emocionando, se divertindo, porque há coisas hilárias. E tem um poder curativo, também. Já tem gente me escrevendo coisas como: “Obrigado pelo seu livro, porque o meu pai tem Alzheimer e eu não estava sabendo lidar com isso”, “o jeito que você falou sobre sua mãe me abriu aqui um insight do diálogo que eu posso ter com meu pai”. Outros temas que trago no livro, como inspiração para atores, também têm repercutido.
É interessante que o livro traz para o público um pouco mais de pessoas como Paulo José, Aracy Balabanian e Pedro Paulo Rangel, que já não estão entre nós. São as suas memórias entrelaçando com outras.
Manter quem já morreu fez parte das escolhas finais. Esses nomes citados, mais o Rolando Boldrin, partiram depois de participarem do livro. Eu não quis tirá-las, ou trocar a forma de apresentação desses raciocínios, porque foram pessoas importantes na minha vida. Passaram pela minha vida e vão receber a mensagem em algum lugar. E as pessoas vão ler, vai causar um encantamento. Acho isso bonito. Meio machadiano, eu falando com uma pessoa que já foi. Estou gostando de toda essa experiência.
Você é muito ligado em astrologia, como dá para ver em suas entrevistas, no livro e nas redes sociais. Como você enxerga a influência do místico em sua vida?
Adoro astrologia, sempre fui muito ligado nesse tema. Nos projetos com os quais me envolvo fico falando: “Esse aí deve ser geminiano. Olha lá, fala pra caramba, cheio de história. Deve ter gêmeos no mapa”. Gosto de tentar adivinhar. Tudo de místico, da ordem do misterioso, me atrai. Não sei se sou religioso, mas sou muito espiritualizado. Acho que herdei isso da minha mãe. Ela é aquela que preparava banho para proteção, que acendia vela para agradecer. Tenho esses hábitos em mim, também.
Você passou boa parte da sua vida sob os holofotes. O que ganhou com isso?
Essa pergunta é importantíssima. Algumas vezes, já me dei conta de que estou filmando um negócio e dá aquela brecha, aí vou para o canto do estúdio, na cama do personagem, dou aquela deitada, assim, para dar uma cochilada, porque estarei em uma nova cena só daqui a um bom tempo. Já aconteceu de eu dar essa deitada, olhar para o teto e ver aquele monte de refletor e pensar: “Caramba, é a imagem que eu mais vi na minha vida: refletores no teto”. Aí fico a fim de sair desse estúdio, ir para a praia, para o mato, viajar, viver mais a vida. Acho que é isso: eu trabalhei demais. Falo que tenho um cansaço de outras vidas. Não estou cansado da pauleira que foi este ano; estou cansado desde o trabalho como calouro infantil. Hoje em dia, estou muito ligado em: “Como pego um barco para passear lá não sei onde? Qual lugar do Sul ainda não conheço? E do Nordeste?”. A arte, que eu amo, é parte fundamental da minha vida, mas, agora, quero viver mais a vida e menos o trabalho.
A pergunta seguinte seria sobre o que você perdeu nessa trajetória, mas meio que já foi respondida...
Pois é, acho que perdi isso, esses espaços entre um trabalho e outro. Sempre emendei, assim, como se eu quisesse tapar um buraco. Na verdade, nossa vida é esburacada. A arte preenche muitos desses buracos. Ultimamente, estou gostando de dizer: “Não vou preencher, não. Quero só sentir. Deixa eu ver o que vem de bom e de ruim, deixa eu vasculhar esse ruim, senti-lo também. E depois ir para a terapia, tentar entender, elaborar”. Quero me conhecer melhor.
Nossa vida é esburacada. A arte preenche muitos desses buracos. Ultimamente, estou gostando de dizer: ‘Não vou preencher, não. Quero só sentir. Deixa eu ver o que vem de bom e de ruim, deixa eu vasculhar esse ruim, senti-lo também. E depois ir para a terapia, tentar entender, elaborar’. Quero me conhecer melhor.
Você narra inclusive as dificuldades, como adolescente, de se encaixar nos padrões da televisão – o que o levou às dublagens, para só depois voltar para a TV. Como foi esse processo?
Não posso falar muito para não tirar o prazer de quem vai ler o livro. Foi dificílima essa volta. Achei que nem era capaz, porque foi um trauma tão grande ter sido escanteado que eu achava que não era capaz. Lembro da novela que passei ao voltar, com 18, 19 anos, lembro de chorar com os meus pais, falando, mesmo passando no teste: “Eu não vou aceitar, porque eu acho que eu não sei fazer”. Foi doloroso, mas também foi um momento em que eu aprendi muito. Aprendi, inclusive, que podemos ser escanteados. A partir dali, desenvolvi uma carcaça e um entendimento grande sobre os fracassos e os sucessos. Cresci sabendo não me iludir com o sucesso, nem me achar o pior do mundo com o fracasso.
Como artista, você já fez de tudo. O que ainda pretende fazer?
Realizei muitos sonhos, mas restam outros. Os maiores sonhos têm a ver com a vida pessoal, morar em um lugar diferente, passar um período em um lugar que não conheço. Passei um tempo grande no Sul fazendo O Filme da Minha Vida, meu último longa-metragem. Rodei na região de Bento Gonçalves. Lindo lugar, lindo livro do (Antonio) Skármeta, que inspirou o filme. E com o Vicent Cassel, que é um baita de um ator e que topou fazer este filme. Até então, é o único filme dele em português. Chique! Fui muito feliz aí. Minhas primeiras lembranças do desejo de fazer cinema foram no Festival de Gramado, que eu acompanhava in loco nos anos 1990, como convidado. Nem fazia cinema, mas ficava olhando aquela gente, os filmes e, caramba, eu queria fazer parte daquilo. Na época, eu só fazia televisão. Então, tenho uma ligação com o Sul. Pretendo voltar.
Em 2023, você protagonizou o audiodrama França e o Labirinto, um enorme sucesso no Spotify, além de finalizar e lançar o livro. Em 2024, chega O Auto da Compadecida 2, além de outros projetos. como você vê o momento atual da sua carreira?
Estou fazendo um monte de coisas, mesmo. França e o Labirinto foi sensacional. Tudo que tem a voz me interessa, porque me lembra o período da dublagem. Em 2024, além de O Auto da Compadecida 2, tem dois outros grandes filmes: Ainda Estou Aqui, que marca o retorno do (diretor) Walter Salles ao Brasil, para realizar seu primeiro longa em português depois de muitos anos, e também um filme que eu amo, que entra naquela categoria “filmes peculiares que o Selton sempre faz”, tipo O Cheiro do Ralo, A Erva do Rato. Chama-se Enterre Seus Mortos, um filmaço dirigido pelo Marco Dutra. É um filme de terror, e eu nunca tinha feito esse gênero. Pois adorei. Fiz muitas outras coisas que ainda vão estrear, mas, a partir de agora, pretendo não fazer mais tanto. A não ser que o Globoplay me dê o sinal verde para fazer a sexta temporada de Sessão de Terapia, que já está escrita e a gente só não começou porque eles ainda não liberaram o dinheiro para filmar.
Fiz muitas outras coisas que ainda vão estrear, mas, a partir de agora, pretendo não fazer mais tanto.
Você tem em Chicó um dos personagens mais famosos de sua carreira. Como foi voltar a ele? O que esperar de O Auto da Compadecida 2?
Sem dúvida, o Chicó é uma entidade. Tanto que foi fácil voltar para ele. Deu medo, tive um monte de pensamentos antes: “Ai meu Deus, melhor não, cancela!”. Mas, na hora, coloquei uma roupa e fiz. Sem esforço. Parece que o Chicó existe, sou só um veículo para ele surgir. É impressionante a força desse personagem. Eu e Matheus (Nachtergaele), a gente nunca havia trabalhado juntos e foi lá fazer João Grilo e Chicó, que são heróis nacionais. O Auto da Compadecida 2 é fabuloso. O público vai adorar.
Por que você recusou um convite para participar de Além da Escuridão: Star Trek (2013)? Muitos artistas adorariam ter esta oportunidade, mesmo em um papel pequeno, afinal, é Hollywood...
(Risos.) Boa memória, a sua. Esqueci de colocar isso no livro, inclusive. Pediram um teste, eu fiz, falaram que adoraram e disseram: “Vem”. Mas eu falei: “Para fazer o quê?”. Aí eles: “A gente não pode dizer. É segredo”. E eu: “Mas como assim?”. Eles: “Não podemos falar. Você tem que vir, fica 30 dias em um estúdio e a gente vai escrevendo aqui, te conhecendo, improvisando”. Só que eu já tinha uma carreira linda, não falava bem o inglês... Hoje já falo melhor, mas, na época, eu não me garantia para começar a improvisar a ponto de chamar a atenção dos roteiristas para eles falarem: “Nossa, ele está inventando coisas maravilhosas, vamos colocar no filme”. Então, me deu medo de me jogar em uma aventura e ficar lá em um canto, assim, meio figurante, sabe? Não sei, o que eu tenho aqui no Brasil é tão poderoso que eu quero fazer coisas fora, quero atuar em inglês, em espanhol, mas só se for algo relevante, como o que faço aqui. Quero o que me faça sentido.
Com 50 anos, você já tem uma carreira mais extensa que alguns artistas de 70. É por isso que vai pisar no freio?
(Risos) É verdade. Eu piso no freio, solto, aí piso de novo. Assim vou indo. Acho que é por isso que já tenho uma biografia com 50 anos.