Por Ronaldo Cagiano
Escritor mineiro radicado em Portugal, autor, entre outros, de “Eles Não Moram Mais Aqui” (2016) e “Cartografia do Abismo” (2020)
Das várias leituras que podemos fazer de O Avesso da Pele, do professor e escritor Jeferson Tenório, a reflexão sobre o racismo e a denúncia da violência policial são o ponto de partida e a inspiração desse romance que mapeia o cenário trágico com que, endemicamente, se defrontam as comunidades negras e pobres do país. Obra mais do que necessária e atual, agudiza a discussão de um tema tão relevante nas demandas da sociedade, sobretudo num momento em que se acentua drasticamente a explosão do ódio e dos preconceitos, na esteira de um governo que tem em sua gênese a perversidade e como projeto autoritário a implosão de conquistas e avanços inclusivos, desenho do fascismo que a cada dia se consolida e corrói as instituições, instaurando uma atmosfera de medievalismo e barbárie.
A ficção traz um recorte do quadro desolador que se repete cotidianamente nas cidades brasileiras e em sua frontalidade nos lembra Bergman, para quem “a realidade continua pior do que o pesadelo”. Narrado em segunda pessoa por Pedro, um jovem que perdeu o pai Henrique Nunes, professor de escola pública da periferia de Porto Alegre, assassinado aos 52 anos pelas forças policiais numa abordagem de rotina, a trama espelha o terrível estigma por que passam os negros, sempre o primeiro alvo de qualquer ação da segurança pública e vistos como ameaça, porém vítimas de uma tragédia maior: o abismo entre classes, fermento da pobreza e da desigualdade, esse passivo social que culmina numa rede de injustiças e opressão sobre parcelas vulneráveis da população, atavicamente usurpadas e violadas em seus espaços, subjetividades e identidades.
Num enredo delicado e contundente, a teia de fatos é detonada pelo gatilho da memória do filho onisciente, cujo olhar escrutinador e perplexo funciona como alter ego da personagem, mas também como repositório do inconsciente do próprio autor, ele mesmo atingido em sua experiência existencial por esse sofrimento coletivo. Ao visitar a casa do pai após a sua morte, rastreia o que sobrou de sua vida entre recordações e pertences, tomando como ponto de partida um ogudá depositado num alguidar. Esse encontro mítico o catapulta ao passado de ausência do pai e ao percurso difícil da mãe, Martha, deflagrando uma pungente cartografa física e sentimental do rude cotidiano da família.
A evocação da figura paterna se dá por um “você” que se repete como um mantra ou súplica, conferindo à obra um caráter epistolar e um tom de diálogo catártico. Entre o desabafo e a perplexidade, Pedro deslinda as nuances de uma caminhada íngreme premida desde a infância pelas circunstâncias da adversidade, tendo no racismo contra o qual o pai lutou o liame que os aproxima: “a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo”.
O Avesso da Pele recompõe esse imaginário povoado pela cultura da segregação e procura esmiuçar os condicionamentos que operam no bojo das relações e projetam o estopim de conflitos insuperáveis que a cada dia aguçam a violência e o luto. Como o que se viu há pouco em Porto Alegre, quando o cidadão João Alberto Freitas foi espancado até a morte por seguranças do Carrefour estigmatizado por ser negro, num esboço crucial do nosso apartheid, a negação do direito de ser, estar e viver sem algemas.
Tenório emula uma escrita essencialmente provocativa e de sondagem do humano e comunica plenamente esse horror atávico que irriga a formação da nacionalidade brasileira, cujas mazelas expõem a miséria, o atraso e o declínio civilizacional de um país à deriva. Inventivo e original, O Avesso da Pele transcende o espectro literário para impor-se como documento de investigação antropológica e torna-se leitura obrigatória para que se possa compreender o atribulado processo de formação da identidade nacional, pois desnuda as feridas abertas e as cicatrizes irremovíveis insculpidas na epiderme e na história dos negros que emprestam suor, lágrimas e sangue à argamassa da construção da diversidade e da riqueza econômica e cultural do Brasil. Como disse Kafka, esse é um daqueles necessários “livros que se abatem sobre nós como a desgraça, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos’’.